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A (in)utilidade da pena de prisão: o jus puniendi e a vindita social

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16/09/2016 às 14:48
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O sistema punitivo Constitucional

Na redação do artigo 5º da Constituição Federal, em seus setenta e oito incisos, desejou o constituinte a proteção do indivíduo e da sociedade, sem perder de vista o direito do estado de punir.

Em substituição da vingança individual, que já há muito fora delegada ao Estado na missão do jus puniendi, manteve-se o sistema de penas, individuais e proporcionais à natureza e gravidade do delito.

Assim dispõe o inciso XLVI do artigo 5º da Constituição de 1988:

A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos.

O dispositivo constitucional que não limita numerus clausus, as modalidades de sanções. Preferiu o constituinte valer-se da exemplificação e da exclusão (art. 5º, XLVII):

Não haverá penas: 

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; 

b) de caráter perpétuo; 

c) de trabalhos forçados; 

d) de banimento; 

e) cruéis.

Assim, como se vê, a privação de liberdade é apenas uma das modalidades de pena prevista no ordenamento jurídico brasileiro, não sendo a única. Não obstante, há, pelo próprio ordenamento penal brasileiro recepcionado pela Constituição, ou produzido após 1988, um privilégio a perda da liberdade como forma de punição. A pena de prisão é a regra, adotando as demais como “penas alternativas”.

De tal forma que, no âmbito do Direito Penal, a pena dominante é a privativa de liberdade, incutindo no ideário popular que só há sanção quando há prisão. Até mesmo nos delitos onde o encarceramento não é o remédio punitivo recomendado, tem-se o tempo prisional como elemento balizador da reprimenda.

Tomando como exemplo a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92) esta, por sua natureza civil, trouxe consigo uma gama de sanções (art. 12) a que o legislador chamou de “penas” (parágrafo único), onde não figura a hipótese de prisão, embora tenha caráter sancionador.

A doutrina tem-se debruçado sobre a natureza das sanções por improbidade administrativa, que tem visível caráter punitivo, embora de tramitação processual cível, e que não ilide ação penal por disposição constitucional, mas que afeta duramente o infrator por meio de cominações outras, que inibem a prática delituosa sem resultar em encarceramento.

São disposições atinentes a determinadas condutas que, tipificadas como crimes, não se previnem ou se reparam com o encarceramento do infrator, mas surte melhor efeito com a suspensão temporária de direitos, a reparação civil, a perda da função pública ou a Inabilitação para ocupar determinados cargos.

Quando somadas às disposições de outras normas congêneres (a Lei das Inelegibilidades – Lei Complementar 64/90 e a Lei da Ficha Limpa – Lei Complementar 135/2010, por exemplo) as sanções da Lei de Improbidade Administrativa resultam em gravames severos à vida pública do infrator, mais relevante, talvez, no seu aspecto pedagógico do que as penas que resultem em encarceramento.


Considerações Finais

O aspecto “gessado“ de nossa lei penal, objetivando, em primeiro plano, a pena de prisão como “essencial” ao cumprimento do jus puniendi deu ao Brasil o título de terceira população mundial de encarcerados, não obstante, aos olhos da sociedade, permanece uma sensação de impunidade, pela forma de execução da pena, que permite, por exemplo, a disposição em regimes mais brandos, a substituição por outra modalidade de pena, a suspensão condicional e até mesmo a leniência em alguns casos.

Outras modalidades de sanção, a exemplo do que se encontra previsto na Lei de Improbidade Administrativa, como o perdimento dos bens, a perda da função pública, a reparação civil, a suspensão dos direitos políticos, a proibição de contratar com o poder público, por exemplo, resultariam em maior eficiência e visibilidade da mão severa do Estado a punir o transgressor dos crimes de menor poder ofensivo (sem violência), mas que causam desconforto na sociedade.

Ao optar pela espetacularização da pena o sistema corretivo-penal acaba por olvidar os propósitos da sanção, de reeducação e reinserção social, perdendo-se na premissa de que só a classe desprivilegiada é capaz de delinquir e a cadeia é capaz de recuperá-la para a vida em comunidade.

Diante dos crimes cometidos por uma casta superior abastada, imiscuída nos governos e ocupando posições dominantes, a proposta de uma prisão “ressocializadora” cai no vazio da inutilidade, já que tais infratores dispensam o processo de re-educação proposto pelo Estado sancionador.

A cadeia, que nunca fora instrumento eficaz de preparação para vida em sociedade, diante dessa nova legião de encarcerados soa como uma maneira cruel do Estado em mostrar força, pela humilhação do detento, ignorando o sistema os direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana que a Constituição garantiu até mesmo ao mais reles meliante.

Encontrar uma forma de sanção que possa ser de fato, pedagógica e preventiva, sem se mostrar leniente para com o infrator talvez seja um desafio que se apresenta aos legisladores que, por ora, temem a mão poderosa do Estado que representam e os grilhões dos cárceres que os ameaçam.

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Referências:

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BRASIL, 1990. Lei Complementar 64/90 - Lei das Inelegibilidades. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp64.htm> Acesso em 20. Jul. 2016

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 26. Ed. Vozes, 2000.

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WEBER, Max. A Política como vocação. In: Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Ed. Martin Claret. 2003


Notas

[1] http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf

[2] Súmula Vinculante 56 do STF: “Não havendo vaga, o preso não pode ficar no regime prisional mais severo, devendo ir para situação menos gravosa”. Repercussão Geral no RE 641320 em maio/2016.

[3] http://www.justica.gov.br/sua-seguranca/seguranca-publica/analise-e-pesquisa/download/pop/investigacao_criminal_homicidios.pdf

[4] http://www.forumseguranca.org.br/storage/download/atlas_da_violencia_2016_ipea_e_fbsp.pdf

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Sobre o autor
Israel Quirino

Advogado, professor de Direito Constitucional; Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. Especialista em Administração Pública. Escritor membro efetivo da Academia de Letras Ciências e Artes Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUIRINO, Israel. A (in)utilidade da pena de prisão: o jus puniendi e a vindita social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4825, 16 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50843. Acesso em: 25 abr. 2024.

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