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O funcionamento do Judiciário no Reino Unido

07/08/2016 às 15:28
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O Reino Unido apresenta três sistemas jurídicos distintos: o direito inglês, aplicável na Inglaterra e no País de Gales; o direito norte-irlandês, aplicável na Irlanda do Norte; e o direito escocês, aplicável na Escócia.

O Reino Unido é uma união política formada por quatro países: Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales. Além desses quatro países, fazem parte da monarquia constitucional do Reino Unido quatorze territórios ultramarinos, remanescentes do Império Britânico, exercendo ainda influência sobre diversos países que no passado eram de domínio britânico, que no conjunto formam uma confederação conhecida como comunidade das nações (commonwealth).

O Reino Unido apresenta três sistemas jurídicos distintos: o direito inglês, aplicável na Inglaterra e no País de Gales; o direito norte-irlandês, aplicável na Irlanda do Norte; e o direito escocês, aplicável na Escócia. O primeiro e o segundo são considerados sistemas de common law, enquanto o terceiro é tradicionalmente visto como um sistema misto, congregando elementos tanto de civil law quanto de common law.

O sistema de direito da common law tem como sua principal característica ser um direito judiciário, ou seja, ter sido construído eminentemente por juízes por meio de decisões judiciais, os precedentes (judge-made law).

De fato, o Poder Judiciário inglês, ao proferir decisões, desempenha duas atividades concomitantes, mas separadas na essência. Em primeiro lugar, a decisão promove a pacificação social pela resolução definitiva dos casos concretos que, pela regra da res judicata, não poderão ser rediscutidos pelas mesmas partes no processo. Em segundo lugar, ao proferir decisões, o juiz contribui para o desenvolvimento do direito, uma vez que, consoante a regra da stare decisis, a decisão judicial tem valor de precedente, cuja fundamentação ultrapassa e atinge até pessoas que não participaram do processo.

A aceitação do precedente como fonte formal de direito só foi possível em razão da profunda interação existente entre Parlamento e Judiciário e do reconhecimento da autoridade dos juízes para fazer regras jurídicas, a law-making authority, que se entende pela capacidade que o juiz inglês detém de, ao decidir o caso concreto, não só determinar o direito aplicável para aquele caso como também estabelecer o conjunto de regras que deverão ser observadas pela sociedade, pela própria corte e pelas cortes inferiores.

O precedente constitui verdadeira fonte criadora do direito, cujas razões (ratio decidendi) produzem eficácia vinculante direta e geral sobre os sujeitos de direito e sobre os demais juízes e tribunais incumbidos da solução de controvérsias futuras[1].

Quanto a sua estrutura, conforme ensina René David[2], há na Inglaterra uma distinção entre o que se pode chamar de “alta justiça”, que é aquela exercida por Tribunais Superiores, e “baixa justiça”, exercida por jurisdições inferiores ou por organismos “quase que judiciários”.

Antes dos Judicature Acts de 1873-1875, a estrutura dessa “alta justiça” era bastante complexa, formada por diversos Tribunais Superiores que mantinham competências distintas em razão das matérias que apreciavam e em decorrência do sistema por eles adotado, common law ou equity[3].

Os Judicature Acts de 1873-1875 simplificaram tal estrutura e suprimiram formalmente a distinção entre ambas as jurisdições, consolidando-as num novo tribunal superior único, o Supreme Court of Judicature[4], que atualmente é formado pelo High Court of Justice, o Crown Court e o Court of Appeal.

Ao primeiro compete em primeira instância apreciar os casos de alto valor e alta importância e também tem competência de supervisão sobre os órgãos jurisdicionais subordinados. É composto pela: seção do Banco da Rainha (Queen’s Bench Division), responsável por temas como contratos e responsabilidade civil e exerce a função de supervisão sobre os demais órgãos de hierarquia inferior; a seção da Chancelaria (Chancery Division), à qual cabe a apreciação de questões de direito empresarial, insolvência e é responsável pela aplicação da equity; e a seção de Família (Family Division), que trata de assuntos como divórcio, crianças, sucessões e tratamento médico.

Em cada seção existem juízes especializados e regras processuais para o exame dos diferentes tipos de assuntos. Segundo René David[5]:

“O High Court of Justice comporta, no máximo, nos termos da lei, setenta e cinco puisne judges, chamados Justices, aos quais se acrescentam o Lord Chief Justice, que preside à seção do Banco da Rainha, o Vice-Chancelier, que preside à seção da Chancelaria, e o President, que preside à seção da Família. Todos estes juízes são recrutados entre os advogados para os quais a elevação à dignidade de Justice de Sua Majestade constitui o coroamento do sucesso profissional e social.”[6]   

Ao Crown Court, criado pelo Courts Act de 1971, compete o julgamento de causas criminais. O julgamento é feito segundo a natureza da infração ou por um juiz do High Court Justice, ou por um circuit justice (um juiz profissional que exerce a atividade em tempo integral), ou por um recorder, um advogado que exerce em tempo parcial as funções de juiz[7].

A Court of Appeal, por sua vez, é uma segunda instância dentro do Supreme Court of Judicature. Formada por dezesseis Lords Justices e presidida pelo Master of the Rolls, é responsável pelo julgamento colegiado de recursos contra as decisões de primeiro grau.

Até 2009 a função de cúpula do Judiciário britânico era exercida pela Câmara dos Lordes (House of Lords), órgão formalmente pertencente ao Poder Legislativo. Competia à Câmara dos Lordes julgar recursos interpostos contra decisões do Court of Appeal.

De acordo com Neil Andrews[8], a extinção da House of Lords como Corte Judicial foi a consequência final de uma série de acontecimentos que se iniciaram com o Appellate Jurisdiction Act 1876 que alterou a função jurisdicional da House of Lords, que passou a julgar apenas recursos extremos (equivalentes aos nossos recursos especiais e extraordinários). Posteriormente, pelo Administration of Justice (Appeals) Act 1934 passou-se a exigir como pressuposto para se recorrer à House of Lords uma espécie de permissão, colhida diretamente na Câmara dos Lordes ou na instância originária. Em 2003 foi manifestado o desejo do Governo em transferir as funções jurisdicionais da House of Lords para uma Suprema Corte, que acabou sendo instituída pela Reforma Constitucional de 2005. Em outubro de 2009 entrou em funcionamento a Supreme Court of England, que assumiu as funções antes exercidas pela Câmara dos Lordes, inaugurando um novo período de separação entre Legislativo e Judiciário[9].

A Supreme Court of England, formada por doze juízes (justices), passou a servir como a instância mais elevada para todos os casos civis e criminais da Inglaterra e País de Gales, da Irlanda do Norte, e para todos os casos civis da Escócia[10].

Além disso, a Suprema Corte do Reino Unido também assumiu a competência antes exercida pela Comissão Judiciária do Conselho Privado (Judicial Committee of the Privy Council), que era composto por juízes da Câmara dos Lordes e juízes do ultramar e responsável pelo julgamento de recursos interpostos contra decisões dos Supremos Tribunais dos territórios britânicos de além-mar ou dos Estados da commonwealth que ainda não aboliram esse tipo de recurso (Austrália, para certos assuntos, Nova Zelândia, Gâmbia, Serra-Leoa etc.)[11].

Tal como já sucedia na House of Lords desde 1934, para se interpor um recurso perante a Suprema Corte britânica é necessária a obtenção de uma licença (permission) para recorrer. Cabe à Suprema Corte decidir quais casos pretende julgar, a não ser que o Tribunal a quo haja concedido a permissão, o que faz com que seja reduzido o número de casos julgados anualmente. Como cita Vladimir Passos de Freitas trazendo dados do The Supreme Court Anual Report and Accounts, entre “1º de abril 2011 a 31 de março de 2012 foram recebidas apenas 249 apelações, julgadas 64, rejeitadas 156 e cinco tiveram decisões diversas”[12].

As decisões da Suprema Corte constituem precedente de observância obrigatória, com caráter vinculante para os demais órgãos do Judiciário[13].

Contudo, não houve com a instituição da Suprema Corte “intenção de se criar uma Corte Constitucional; isto é, uma Corte que se desincumbiria de proceder à judicial review de atos do legislativo, em contraposição a atos do executivo. Assim, não se pretende que a nova Corte invalide leis por considera-las inconstitucionais”[14], o que na visão de Neil Andrews é “positivo, pois protege o Judiciário britânico da pretensiosa suposição de que eles seriam os ‘guardiões do povo’, mais do que o Parlamento eleito”[15].

Além do Supreme Court of Judicature há na Inglaterra uma gama de jurisdições inferiores, pelas quais grande parte dos assuntos acaba sendo regulada. Os County Courts (Tribunais de Condado), composto pelos circuit judges, são responsáveis pelo julgamento em matéria civil, apreciando habitualmente causas de menor valor econômico[16], habitualmente recusadas pela High Court of Justice[17].

Em questões criminais as infrações menores são julgadas por cidadãos aos quais é concedido o título de justice of the peace, denominados como magistrates. Além das contravenções, aos magistrates cabe também a condução do processo preliminar de infrações penais de maior porte e decidir se há ou não indícios suficientes de culpabilidade para apresentação do acusado para julgamento perante do Crown Court[18].

Por fim, há ainda “em matéria administrativa e para as dificuldades surgidas na esfera de certas leis, diversos organismos, denominados Boards, Commissions ou Tribunals” que detêm uma “competência ‘quase judiciária’, devendo ser os litígios apreciados por eles antes de poderem ser submetidos ao Supreme Court of Judicature”[19].


Referências bibliográficas

ANDREWS, Neil. A Suprema Corte do Reino Unido: reflexões sobre o papel da mais alta Corte Britânica, in. Revista de processo, ano 35, n. 186. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, trad. Hermínio A. Carvalho, 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

FREITAS, Vladimir Passos. A Suprema Corte do Reino Unido. Disponível em: http://www.ibrajus.org.br/revista/artigo.asp?idArtigo=279. Acesso em 21.11.2015.

________. Os resultados da nova Suprema Corte do Reino Unido. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-mar-03/segunda-leitura-resultados-suprema-corte-reino-unido. Acesso em 21.11.2015.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, 1ªed. São Paulo: Saraiva, 2010.

SOARES, Guido Fernando da Silva. Common law: Introdução ao Direito dos EUA, 2ª ed.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

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Notas

[1] Elival da Silva Ramos, “Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos”, p. 104.

[2] “Os grandes sistemas do direito contemporâneo”, pp. 416-417.

[3] A equity é um sistema complementar ao direito comum que nasceu da jurisdição exercida pelo Chanceler, membro do Conselho Real, que tinha delegação do rei para o julgamento de apelos a ele diretamente formulados. Criou-se a partir disso uma espécie de justiça paralela aos Tribunais de Westminster, responsáveis pela common law, o Tribunal de Chancelaria, que decidia os casos por equidade.

[4] Segundo Guido Fernando da Silva Soares: “Mesmo unificados os órgãos de aplicação da Common Law e da Equity, conservaram eles suas características originais e suas regras próprias; o princípio, que sempre foi dominante e que, em certa medida, continua, tanto na Inglaterra como nos EUA, é de que a utilização da Equity só é possível quando inexistir remédio na Common Law; na atualidade, tal princípio nem tanto quer significar a aplicação da Common Law ou da equity em função do remédio pretendido, mas muito mais pela classificação do instituto jurídico neste ou naquele direito. Assim, hoje, na Inglaterra, pertencem, ao domínio da Common Law as seguintes matérias: o direito criminal, todo o direito dos contratos (originalmente originário na Equity) e o da responsabilidade civil (torts), nos quais se especializaram os common lawyers e nos quais a atuação do jury é de sua essência. Ao domínio da Equity pertencem as matérias relacionadas aos direitos da real property, dos trusts (contratos fiduciários, pelos quais o settlor transfere uma propriedade móvel ou imóvel, já vimos que, a alguém, o trustee, para que este administre em favor de um beneficiário, o cestui que trust) das sociedades comerciais, das falências (bankruptcy) das questões de interpretação de testamentos e da liquidação de heranças” (Common Law: Introdução ao Direito dos EUA, p. 35-36).

[5] Ob. cit., p. 418.

[6] Como também explicita o autor, antigamente o juiz era assistido por um júri quando se tratava de questões referentes à common law, o que se tornou excepcional, assim como a regra de que o veredito deveria se dar por unanimidade dos jurados. Desta forma, na esfera civil, o julgamento por júri acabou ficando restrito a raríssimos casos.

[7] Ibidem, p. 418.

[8] “A Suprema Corte do Reino Unido”, in. Revista de Processo, pp. 299 e ss.

[9] Notícia de 23 de julho de 2009 sob o título: “From House of Lords to Supreme Court”. Disponível em: http://www.parliament.uk/business/news/2009/07/from-house-of-lords-to-supreme-court. Acesso em 22.11.2015.

[10] A High Court of Justiciary da Escócia continua a ter competência sobre casos criminais do país (Neil Andrews, ob. cit., p. 307).

[11] René David, ob. cit., p. 420.

[12] “Os resultados da nova Suprema Corte do Reino Unido”.

[13] Até 1966 a força vinculante dos precedentes não gerava efeito apenas para os órgãos de jurisdição inferior. Os precedentes da House of Lords eram seguidos estritamente por ela própria. Somente a partir de então foi que a Corte passou a permitir que seus juízes se afastassem das decisões anteriores em casos em que mesmo havendo plena adequação das questões de fato ou de direito a um precedente ocorra uma mudança de percepção do que é certo para o caso, entendendo assim o Tribunal que o resultado obtido pela aplicação do precedente seja injusto. É a prática conhecida como overruling, pela qual é feita a superação de um precedente.

[14] Lord Neuberger apud Neil Andrews, ob. cit., p. 307.

[15] Ibidem, p. 310.

[16] Duas mil libras esterlinas.

[17] René David, ob. cit., pp. 420-421.

[18] Idem, ibidem, p. 421.

[19] Idem, ibidem, p. 421.

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Sobre o autor
Fernando Awensztern Pavlovsky

Juiz de Direito no Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAVLOVSKY, Fernando Awensztern. O funcionamento do Judiciário no Reino Unido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4785, 7 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51162. Acesso em: 24 nov. 2024.

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