RESUMO: A investigação histórica constitui fator extremamente relevante na busca da compreensão do presente, sobretudo quando se buscar analisar aspectos referentes ao Poder Judiciário brasileiro, cujas raízes remontam, indubitavelmente, ao contexto colonial em que esteve inserido o Brasil. Nesse aspecto, o presente trabalho procura estabelecer uma conexão com o passado, com o escopo de oferecer uma concepção crítica acerca da burocratização do sistema judiciário do Brasil-colônia, a partir das diversas estruturas lançadas pelo império português no período compreendido entre 1500 e 1822, as quais influenciaram, sobremaneira, os rumos da formação do poder judiciário brasileiro.
Palavras-Chave: Poder Judiciário. Período Colonial. Burocracia judiciária. Administração da justiça.
INTRODUÇÃO
A elaboração de uma Constituição, norma de regência de um Estado, considerada em síntese como uma carta política garantidora de direitos e limitadora do poder estatal, de modo a organizar estruturalmente um referido Estado, contempla o contexto vivenciado pela sociedade naquela conjuntura, atribuindo-se uma concepção dogmática, como ocorreu em 1988 no Brasil. Nesse ínterim, a Constituição Federal de 1988, a sétima[2] carta política brasileira, influenciada em sua elaboração pelo contexto vivenciado à época do regime militar (1964-1985), tratou de romper com o ordenamento jurídico anterior, consolidando em seu corpo fixo um catálogo robusto de direitos e garantias fundamentais. Ressalte-se, por oportuno, que além de contemplar um amplo rol de direitos, a Constituição atual estabeleceu uma série de normas programáticas e dirigentes que deveriam guiar a atuação do poder executivo.
Nesse diapasão, se observou, aprioristicamente, que o constituinte originário atribuiu ao legislativo a função de regulamentar diversos programas estabelecidos na Constituição, bem como ao executivo de concretizar essas diretrizes a fim de assegurar à sociedade a efetivação dos direitos nela estabelecidos.
No entanto, como ficou evidenciado ao longo do tempo, diante da ineficácia latente dos trabalhos do legislativo e executivo, implicando em lacunas que culminaram na síndrome da inefetividade das normas constitucionais, o poder judiciário foi ganhando cada vez mais importância no cenário brasileiro, principalmente no tocante a questão da jurisdicionalização das políticas públicas, conforme se protrai no tempo a omissão do poder executivo em efetivar tais políticas.
Nada obstante, apesar da Constituição de 1988 exteriorizar, a priori, o protagonismo ao poder legislativo, passou também a impulsionar e fortalecer o poder judiciário, na medida em que trouxe em interior um rol relevante acerca das garantias funcionais e institucionais. Nitidamente, uma das principais alterações nesse contexto foi o advento da autonomia administrativa, financeira e orçamentária, que, apesar de questionável, como se observa pela própria dicção da norma constitucional a que se refere o art. 99[3], já constituiu um grande avanço na busca do equilíbrio com os demais poderes constituídos.
Ademais, a edição da Emenda Constitucional nº 45, no ano de 2004, foi o ponto culminante para alavancar o protagonismo político do judiciário no cenário brasileiro. A reforma e moralização do sistema judiciário ganhou corpo, passando a receber um novo órgão, encarregado de funções administrativas e, sobretudo, correcionais, com atribuição de fiscalização da atividade judiciária e exercício funcional dos magistrados, o Conselho Nacional de Justiça.
Nesse contexto, o poder encarregado de solucionar litígios e garantir a pacificação social se eleva à posição de destaque, contemplando um verdadeiro cenário onde se travam batalhas com diferentes atores sociais, demonstrando, ainda hoje, um modelo processual adversarial que compromete, sobremaneira, a efetividade e a razoável duração das demandas pelo país, tendo em vista implicar em um modelo contraproducente ás finalidades essenciais das demandas.
Se por um lado, objetiva-se a concretização de direitos e políticas públicas que não são implementadas pelo poder legítimo em assegurá-las, é dizer, o poder executivo, por outro a sociedade passa cada vez mais a integrar-se em um sistema de “jurisdicionalização da vida”, ocasionando um inchaço demasiado sobre este importante poder estrutural do Estado, tendo em vista o alarmante volume processual em tramitação no Brasil[4]. Analisando essa caótica situação processual vivenciada pelo país, merece destaque as palavras do Desembargador Federal da 4ª Região, Paulo Afonso Brum Vaz:
“Na raiz dos problemas, temos a pressão que gera a litigiosidade crescente, cobrando cada vez mais produtividade. Experimentamos, nos últimos tempos, um vertiginoso crescimento da demanda social por justiça. A conflituosidade, que se multiplica em progressão geométrica, produz uma pletora invencível de processos para julgamento”(VAZ, 2011).[5]
Nessa perspectiva, se faz necessária uma investigação profunda acerca do atual momento do poder judiciário brasileiro, numa visão democrática, e, principalmente, institucional. A formação de seus quadros de magistrados, sua organização interna, sua independência, a repartição de poderes e atribuições administrativas integram alguns dos problemas a serem analisados (ATHAYDE, 2015)[6].
De fato, não se deve olvidar que o poder judiciário brasileiro possui notadamente, raízes estruturais marcadas pelo conservadorismo de outrora, tanto no que tange ao seu conteúdo político, como também no aspecto organizacional, com semelhantes traços que remete ao passado colonial, o que será amplamente abordado na análise do esquema burocrático do judiciário brasileiro da época.
Nesse diapasão, é indubitável a importância que o recurso histórico oferece, numa perspectiva de retorno aos primórdios da organização da justiça brasileira, a fim de se formar um arcabouço literário e crítico capaz de compreender os aspectos estruturais e políticos do poder judiciário brasileiro, ainda que seja o período a que se tenha dado menos importância no que tange a fonte de pesquisas e informações, privilegiando ainda mais a exploração do respectivo tema, de profunda importância para entendermos o atual modelo de justiça burocrática do Brasil (ATHAYDE, 2015).
1 BUROCRACIA DO IMPÉRIO LUSO: DOMÍNIO DA NAVEGAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA NAS TERRAS CONQUISTADAS
Numa primeira visão, necessário se faz apresentar o contexto histórico-político em que esteve inserido o império português anteriormente ao descobrimento de terras brasileiras, bem como a burocracia judiciária portuguesa, que já naquela época se mostrava profundamente estratificada, trazendo esse modelo de organização para suas colônias.
Inicialmente, cabe observar que o império português se consolidou precocemente como Estado politicamente unificado, sendo pioneiro nesse sentido, ainda em meados do século XIII, quando diversos povos ainda encontravam-se atrelados as consequências da mudança de panorama proporcionado a partir da Baixa Idade Média. Nesse ínterim, o país luso levou grande vantagem sobre os demais Estados que posteriormente viriam a se unificar, tendo em vista que propiciou condições estruturais, políticas e econômicas primordiais para a almejada expansão comercial.
Com efeito, é de conhecimento geral na comunidade historiográfica que Portugal ficou notabilizado, sobremaneira, pelo fato de ter sido o Estado pioneiro no que diz respeito a expansão marítima comercial conhecida como as grandes navegações. De fato, a reunião de diversos fatores influiu em demasia para o estabelecimento desse feito.
De imediato, observa-se que a unificação política precoce constituiu fator primordial, tendo em vista a estabilização política e o apoio da Burguesia. Além disso, insta mencionar a importância da criação da Escola de Sagres, utilizado como meio impulsionador para estudos náuticos, proporcionando um profundo conhecimento no que diz respeito as técnicas de navegação e construção de caravelas. Ademais, posição geográfica privilegiada se mostrou bastante aliada aos interesses portugueses.
Importa destacar, em outra vertente, que a administração da justiça sempre constituiu fator relevante para a organização do vasto império português criado a partir da expansão marítima. De fato, se criou uma burocracia por meio da qual a administração da justiça representava o atributo mais importante do governo, considerada uma verdadeira projeção da autoridade real no domínio colonial (SCHWARTZ apud Athayde,).
Nesse diapasão, costumou-se identificar que a administração da justiça portuguesa nas colônias seria a primeira responsabilidade do rei, conforme se pode constatar dos vários diplomas legais extraídos naquela época, como os forais e as cartas-régias[7]. Nessa ocasião, Schwartz aponta que “a administração da justiça é a chave para o entendimento dos impérios de Portugal e Espanha” (SCHWARTZ apud Athayde).
Não obstante, a historiografia judiciária aponta que em cada expedição marítima, a administração portuguesa enviava uma autoridade judiciária, como forma de demonstrar a projeção da autoridade real nas terras conquistadas. É nesse contexto que Mathias identifica com excelência que as primeiras duas missas realizadas na Terra de Santa Cruz tiveram como presidente um juiz, o antigo Desembargador do Paço (Tribunal de Graça português), Frei Henrique Soares de Coimbra (MATHIAS, 2009. P. 31).
A primeira grande autoridade da administração judiciária portuguesa, com verdadeiro poder judicante, no domínio colonial brasileiro foi Martim Afonso de Souza, cuja escolha se deu pelo fato do fidalgo, como era conhecido, pertencer a uma das famílias mais notáveis de Portugal conferindo a este, por meio de cartas-régias, amplos poderes para editar e aplicar as leis (MATHIAS, 2009. P. 32).
Destaque-se, pelas palavras de Mathias, alguns dos poderes conferidos ao governador e capitão-mor:
Martim Afonso, além de capitão-mor da armada e governador das terras já descobertas (e a descobrir), tinha inteira jurisdição sobre todas as pessoas que nelas se achassem, “com poder e alçada tanto no cível como no crime, dando as sentenças que lhe parecessem de justiça, até a morte natural sem apelo e sem agravo”, salvo se o réu fosse fidalgo. Foram-lhe conferidos poderes para “criar e nomear tabeliães e mais oficiais de justiça necessários, quer para tomar posse das terras, quer para as coisas da justiça e governança (MATHIAS, 2009, p. 33).
2 O REGIME DE CAPITANIAS E A CENTRALIZAÇÃO POLÍTICA DO GOVERNO GERAL
Nos primórdios do descobrimento das terras brasileiras pelo império luso, vislumbrou-se notadamente um desinteresse pela exploração das terras aqui encontradas. De fato, não se encontrou um campo fértil de retorno econômico para os portugueses, que se voltavam sobremaneira às expedições comerciais indianas, notadamente frutíferas em um primeiro momento, tendo em vista as riquezas alcançadas pelo comércio de especiarias.
Todavia, com o passar do tempo, o comércio indiano mostrou-se saturado e concorrido, tendo em vista a paulatina desvalorização das especiarias, não logrando o êxito comercial de outrora para o império português. Frise-se, por oportuno, que o Estado português demonstrava sinais de crise financeira e econômica, sobretudo em razão justamente dos gastos promovidos com a expansão marítima e comercial deflagrada ao início do século XVI, bem como para a manutenção das colônias.
Diante de tal contexto, decidiu o Rei João III, após a experiência comandada por Martim Afonso de Souza, deslanchar o processo efetivo de colonização das terras brasileiras, diante da adoção do modelo de capitanias hereditárias (MATHIAS, 2009, P. 37). Acrescente-se, que havia o receio, por parte do rei português, de invasão estrangeira nas terras brasileiras, assegurando-se, nesse sentido, a manutenção da posse dessas terras contra os rivais (SCHWARTZ, 2011, P. 42).
Na seara da administração da justiça, o império português adotou um regime semelhante ao modelo utilizado na passagem de Martim Afonso de Souza, com amplos poderes aos donatários oriundos da carta de doação. Sustenta Schwartz que “os poderes judiciais concedidos aos donatários enfatizavam os objetivos dos colonizadores” (SCHWARTZ, 2011, P. 43).
Com efeito, não cabia diretamente aos donatários o exercício da jurisdição propriamente dita, mas sim a administração e organização judiciária. Nesse ínterim, a carta de doação conferia ao proprietário ampla jurisdição civil e criminal, exercida somente àqueles que fossem nomeados por ele. Destaque-se as figuras do magistrado superior (ouvidor) e outros funcionários da justiça, como os escrivães e tabeliões. Poderia ainda ser nomeado um outro ouvidor nas capitanias de maior densidade populacional (SCHWARTZ, 2011 p. 43).
Contudo, ao passar dos anos, o sistema de capitanias hereditárias se mostrou totalmente ineficiente e despreparado. De fato, a extensão territorial da colônia impedia o exercício de um controle mais eficaz por parte da coroa real, sobretudo no que diz respeito ao receio de invasões estrangeiras, o que contribui em demasia para o fracasso dos donatários.
Frise-se, por oportuno, que o modelo adotado inicialmente como baliza para o restabelecimento de uma fonte econômica portuguesa, não gerou qualquer resultado nesse sentido, tendo em vista a prosperidade apenas de duas capitanias, dentre as quinze até então demarcadas: São Vicente e Pernambuco. A autoridade portuguesa não teve outra alternativa senão em adotar a centralização política, através do sistema de governo-geral.
A centralização política da colônia na figura do governador-geral representava uma espécie de longa manus do rei e implicou na primeira grande mudança no sistema de colonização do Brasil, transformando aspectos organizacionais da estrutura colonial, bem como na criação de uma nova legislação de ordem administrativa, e, sobretudo, judiciária (MATHIAS, 2009, P. 43).
A administração era estratificada conforme os ramos de atuação. O provedor-mor detinha funções de natureza fazendária e militares, conquanto realizava inspeções nas capitanias ainda existentes em conjunto com o governador-geral. O capitão-mor, por sua vez, atuava na defesa do território. Já o ouvidor-mor realizava as atribuições judiciárias, investidos como autoridade superior de justiça em toda faixa colonial (MATHIAS, 2009, p. 45).
Em linhas gerais, vislumbra-se que o sistema judiciário adotado na colônia já apresentava traços de estratificação e burocracia notáveis. Em primeira instância, se observa os ouvidores de capitania, exercendo jurisdição apenas local. Em segunda instância, exercendo autoridade judicial em toda a colônia, verificava-se o ouvidor-mor. Por fim, como órgãos máximos da justiça real portuguesa, encontrava-se no topo da hierarquia judiciária a Casa de Suplicação e o Desembargo do Paço[8].
Convém destacar, por oportuno, que os relatos de escândalo de prevaricações envolvendo magistrados já se mostrava marcante no período colonial. Destaque-se, nessa esteira, que o primeiro ouvidor-geral aqui estabelecido, Pero Borges, nomeado pelo então governador-geral Tomé de Souza, já tinha sido condenado a devolver à Fazenda portuguesa um dinheiro que desviara das obras de construção de um aqueduto. A mesma sentença ainda o suspendeu por 3 anos do exercício de cargos públicos, porém, ainda assim, foi nomeado para o cargo de suma importância no modelo judicial colonial (COMPARATO, 2015, p. 7).