RESUMO: Este trabalho apresenta elementos importantes para o Direito dos Transportes e o Direito do Seguro relativamente ao Código de Processo Civil em vigor desde 18 de março de 2016 e a nova dinâmica processual, notadamente no que diz respeito aos litígios envolvendo contratos internacionais de transportes marítimos de cargas. O objetivo principal é defender a não incidência da regra que trata da preferência da convenção de arbitragem quando prevista em contrato de adesão (normalmente, a convenção de arbitragem conecta-se com a eleição de foro). Considerando que os contratos internacionais de transportes marítimos de cargas são tipicamente de adesão, tais disposições passam a ser abusivas, porque despidas da necessária voluntariedade. Sem a voluntariedade, não existe verdadeiro foro estrangeiro de eleição, muito menos convenção arbitral, mas imposições dos transportadores aos consignatários de cargas, inibindo a plena incidência das regras processuais relativamente a tais figuras. A situação revela-se ainda mais grave em se tratando de seguradora legalmente sub-rogada na pretensão do segurado e consignatário de carga, uma vez que não foi ou é parte do contrato de transporte, marítimo. A natureza abusiva de tais cláusulas contratuais, unilateralmente dispostas em instrumentos contratuais impressos e pré-ordenados torna-se ainda mais evidente quando busca a projeção de efeitos jurídicos a quem sequer participou do negócio propriamente dito. O foro estrangeiro de eleição, nesse sentido, assume condição inibidora da garantia constitucional de acesso à Justiça e, ainda, promove o esvaziamento indevido da soberania da jurisdição nacional. No caso da arbitragem, em especial, tem-se, ainda e além da ausência de voluntariedade, condição “sine quae non” para sua incidência, vício formal substancial insanável, qual seja, o descumprimento das disposições da própria lei brasileira de arbitragem. Os instrumentos contratuais adesivos de transportes internacionais de cargas não seguem as regras expressas de “lex specialis” brasileira, mas seus exclusivos alvedrios, antagônicos ao sistema legal brasileiro como um todo. O trabalho não se insurge contra as novas regras processuais propriamente ditas, mas contra a eventual aplicação de uma e/ou de outra, sobretudo a que trata da arbitragem, nos litígios envolvendo as matérias de Direito dos Transportes e, em especial, Direito Marítimo, ligadas aos contratos de adesão que o informam, sobretudo quando uma das partes da relação processual for seguradora legalmente sub-rogada na pretensão original do consignatário de carga (sempre convém repetir).
Palavras-chave: Cláusulas contratuais adesivas. Contratos de adesão. Imposições unilaterais dos transportadores de cargas. Ausência de voluntariedade da parte aderente. Seguradora legalmente sub-rogada não é parte da relação contratual original. Abusividade das cláusulas de foro estrangeiro de eleição e de compromisso arbitragem. Desrespeito às exigências da própria lei de arbitragem brasileira. Não incidência das regras processuais novas relativamente aos contratos de adesão.
INTRODUÇÃO
O novo Código de Processo Civil já se encontra em vigor desde 18 de março de 2016, instituindo, no plano instrumental, uma nova visão.
Evidentemente que um Código novo carrega consigo expectativas, positivas e negativas.
Muito papel e bastante tinta serão consumidos a respeito do Código e certamente os debates serão intensos e sucessivos, conforme as novas regras processuais forem aplicadas cotidianamente.
Afinal, um novo sistema se implanta, com figuras mais próximas ao “common law” do que ao “civil law”, rompendo-se tradição originária do Direito brasileiro.
De qualquer forma, nosso propósito é modesto, limitado a tratar do Código e das suas normas e regras apenas naquilo que tange ao Direito dos Transportes (Direito Marítimo, em especial) e ao Direito do Seguro.
Nesse sentido, ousamos comentar, ainda que sumariamente, sobre dois temas que se conectam à jurisdição nacional: foro estrangeiro de eleição e a convenção de arbitragem.
A parte que trata da eleição de foro estrangeiro será abordada num trabalho autônomo, sendo ora mencionada apenas como espécie de corolário do foco principal deste estudo: o compromisso arbitral em sede de contrato de adesão.
O objetivo principal é mostrar que essas regras não são aplicáveis aos casos (litígios) envolvendo contratos internacionais de transportes marítimos e/ou aéreos de cargas, porque típicos contratos de adesão.
Os transportadores marítimos cargas impõem cláusulas contratuais aos consignatários de cargas, usuários dos serviços de transportes.
Esses mesmos usuários não externam suas respectivas vontades, de tal modo que as referidas cláusulas são abusivas e ilegais, como o Poder Judiciário sempre reconheceu.
E sendo tais cláusulas abusivas e ilegais, impostas unilateralmente, não podem ser abraçadas pelas novas regras processuais que tratam do foro estrangeiro de eleição e da convenção de arbitragem.
A ausência da voluntariedade ampla e bilateral inibe a efetiva incidência das novas regras processuais relativamente aos contratos internacionais de transportes marítimos.
E dentro dessa concepção, como demonstrar-se-á ao longo deste trabalho, com mais razão tais cláusulas não são aplicáveis às seguradoras legalmente sub-rogadas nas pretensões dos segurados e consignatários de cargas, autoras de ações regressivas de ressarcimentos contra os mesmos transportadores, uma vez que sequer foram e são partes nos mesmos e criticados instrumentos contratuais abusivos.
Vale registrar, desde logo, que tudo o que se defender neste trabalho relativamente ao contrato de transporte marítimo de carga cabe perfeitamente ao congênere no modo aéreo de transporte, uma vez que os arquétipos práticos e jurídicos são rigorosamente os mesmos, existindo simetria plena entre os dois citados contratos.
Vejamos:
A cláusula de compromisso arbitral presente no conhecimento marítimo, o instrumento do contrato (internacional) de transporte marítimo de carga é manifestamente abusiva, porque alheia ao princípio da autonomia da vontade, relativamente à parte que foi obrigada a aderir às normas contratuais impostas pelo transportador.
Além disso, essa mesma cláusula, imposta unilateralmente, não segue a forma expressamente disposta pela lei de arbitragem brasileira para o compromisso arbitral em contrato de adesão.
Por tais e outras importantes razões, não há que se falar no caso concreto em eventual preferência do procedimento arbitral, segundo o artigo 3º, §1º.
Logo, antecipa-se a conclusão deste breve estudo e se afirma que em relação ao Direito Marítimo, sobretudo quando interligado ao Direito do Seguro, o novo Código de Processo Civil não mudou, tampouco mudará, algo, seguindo-se, pois, a orientação jurisprudencial de décadas.
Acrescente-se às sobreditas razões uma outra, absolutamente fundamental: a suposta convenção de arbitragem não é, a rigor, nos contratos internacionais de transportes marítimos e/ou aéreos de cargas, levada à efeito segundo a lei de arbitragem brasileira.
Com efeito, além de ser outra imposição presente num contrato de adesão, referida disposição atenta frontalmente contra a própria lei especial sobre a matéria.
Vale lembrar que o mesmo Código de Processo Civil reconhece a possibilidade e a validade da arbitragem desde que expressamente observada a forma legal, conforme dispõe o §1º do artigo 3º: “É permitida a arbitragem, na forma da lei”.
O que se infere da parte final do referido enunciado é simples e não comporta muita ilação a respeito, senão a óbvia: se a lei não for rigorosamente observada, não há que se falar em arbitragem!
E nos litígios relativos ao Direito do Transporte a convenção de arbitragem não é uma verdadeira convenção, mas outra inaceitável imposição dos transportadores em geral.
Em se tratando de contrato de adesão, a convenção de arbitragem tem que ser disposta num termo à parte, específico, anexo, assinado pelas partes e/ou disposto no próprio corpo do contrato, mas com letras destacadas e com a assinatura da parte aderente sobre o texto respectivo.
Nada disso costuma ser observado nos referidos contratos, de tal forma que nos sentimos bem confortáveis em invocar a jurisprudência consolidada a respeito:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. Carga transportada.Indenização. Ação regressiva decorrente de contrato de seguro. Cláusula de arbitragem instituída entre a prestadora dos serviços e a dona da carga. Inaplicabilidade à Seguradora, que não firmou nem anuiu na referida avença. Furto da carga. Fato que não caracteriza evento de força maior, pois perfeitamente previsível e evitável dentro das condições normais de transporte. Recurso provido para afastar a extinção do processo e, com base no disposto no artigo 515, § 3º, do CPC, julgar procedente a ação./. "A natureza jurídica da cláusula compromissória é de uma obrigação de fazer, com caráter personalíssimo, pelo que não pode ser transferido a terceiro."2. O furto de mercadoria transportada não pode ser considerado um fato desconexo ao contrato de transporte, e,sendo previsível e, em última análise, evitável, diante das cautelas exigíveis da transportadora, não se constitui em caso fortuito ou força maior capaz de excluir a responsabilidade do transportador.
(TJ-SP - APL: 990093738210 SP, Relator: Gilberto dos Santos, Data de Julgamento: 11/03/2010, 11ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/03/2010).
0031172-14.2007.8.19.0000 (2007.002.17947) - AGRAVO DE INSTRUMENTO . DES. ANA MARIA OLIVEIRA - Julgamento: 28/08/2007 - OITAVA CAMARA CIVEL
Agravo de instrumento contra decisão que rejeitou exceção de incompetência apresentada pela Agravante na ação regressiva de ressarcimento que lhe move a Agravada perante a 4ª Vara Empresarial da Comarca da Capital. Agravante que pretende o reconhecimento da competência de Cingapura, ou, caso assim não se entenda, das Comarcas de Contagem ou de Santos. Seguradora que busca o ressarcimento do valor de cobertura securitária paga em razão de inadimplemento de contrato de transporte marítimo internacional, sub-rogando-se no direito da segurada. Sub-rogação que não abrange a cláusula de eleição de foro pactuada em contrato do qual não participou. Precedentes do TJRJ. Competência que deve observar a regra geral do foro do domicílio do réu, tendo a Agravante filial na Comarca do Rio de Janeiro. Inexistência de prevenção do Juízo no qual tramitou o protesto interruptivo da prescrição. Desprovimento do agravo de instrumento.
0006273-83.2006.8.19.0000 (2006.002.14243) - AGRAVO DE INSTRUMENTO. DES. CARLOS SANTOS DE OLIVEIRA - Julgamento: 08/11/2006 - DECIMA TERCEIRA CAMARA CIVEL
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA FUNDADA EM FORO CONTRATUAL DE ELEIÇÃO. PRETENSÃO DE DECLÍNIO DA COMPETÊNCIA PARA A COMARCA DE MARSELHA, FRANÇA. AÇÃO PRINCIPAL QUE VERSA SOBRE SUB-ROGAÇÃO DA SEGURADORA NOS VALORES QUE PAGOU À SEGURADA. CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO INSITA NO CONTRATO MARÍTIMO, DO QUAL NÃO PARTICIPOU A SEGURADORA. ELEIÇÃO DE FORO QUE NÃO VINCULA A SEGURADORA. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DESPROVIMENTO DO RECURSO, PARA MANTER A DECISÃO QUE REJEITOU A EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA.”
Se o contrato de adesão não obedecer fielmente às disposições da lei de arbitragem não haverá o que se falar em validade e eficácia da respectiva convenção, sendo nula de pleno direito a cláusula respectiva.
Mesmo antes do novo Código de Processo Civil, o assunto já consumia nossa atenção, por conta do exercício profissional cotidiano.
Isso porque havia e há em curso uma tendência de se querer ampliar os efeitos jurídicos e práticas da cláusula de arbitragem, atingindo quem dela não é parte legítima e interessada.
Entendemos que essa tendência é equivocada e não terá força para seguir adiante, até porque o posicionamento jurisprudencial é claro e praticamente uniforme no sentido de a cláusula de arbitragem não projetar efeitos para quem dela não tomou parte voluntariamente.
Não se pode deslembrar que a voluntariedade é a qualidade por excelência da arbitragem, sem a qual ela não se fez meio legítimo de solução de litígios, mas imposição arbitrária e inconstitucional
No campo do Direito dos Transportes e, em especial, do Direito Marítimo, notadamente na parte que ele se justapõe ao Direito do Seguro, o tema assume especial relevância e merece ser abordado com seriedade.
A melhor forma de se evitar um erro inoculado de grave injustiça é combate-lo no seu nascedouro, na fonte de sua gênese.
Falamos, especialmente, do seguro de transporte de carga, do próprio transporte marítimo de carga e da sub-rogação, sendo que tudo aquilo que cabe ao modal marítimo de transporte, cabe, como já se disse, com igual simetria, ao modal aéreo.
A seguradora sub-rogada nos direitos e ações de um segurado, consignatário de carga, vítima de uma relação contratual de transporte frustrada pelo armador, transportador marítimo (e/ou pelo transportador aéreo), não pode ser obrigada a aderir ao procedimento de arbitragem imposto unilateralmente no corpo do conhecimento marítimo, o instrumento que configura o contrato de transporte marítimo de carga.
Existem razões de sobra para não se admitir a amplitude indevida da cláusula de arbitragem e elas serão expostas com certa riqueza de detalhes pelos autores doravante.
Nem mesmo a nova regra processual poderá impor isso, ao menos quando cotejada com os contratos de transportes marítimos e aéreos de cargas.
Muito aproveita enfatizar que no caso específico da cláusula de arbitragem presente no contrato de transporte internacional marítimo (no contrato de transporte aéreo, tal imposição é bem menos comum) de carga existem duas razões fundamentais para sua não aplicação, sendo uma geral e outra própria para o caso da seguradora sub-rogada.
Ei-las: a primeira e geral: a cláusula de arbitragem constante no anverso do conhecimento marítimo é redigida em dissonância com a Lei de Arbitragem do Brasil, razão pela qual é nula de pleno Direito. Mesmo o consignatário da carga, parte no contrato, não pode ser obrigado à obedece-la porque manifestamente abusiva e ilícita. Já a segunda causa, relativamente à seguradora sub-rogada, reside no já comentado atributo da voluntariedade, uma vez que a seguradora não é parte da relação contratual de transporte, não se lhe podendo, portanto, impor um ônus convencional, ainda que este fosse harmônico à lei da arbitragem. Ao contrário do que se ventila por aí, existem limites para a sub-rogação e estes são bem esquadrinhados pelo sistema legal como um todo.
O segurador legalmente sub-rogada não se vê, portanto, obrigado a respeitar normas contratuais assumidas ou unilateralmente impostas ao seu segurado e consignatário da carga.
Por mais que possa parecer aos olhos menos acostumados ao universo do seguro uma via de mão única, a verdade juridicamente defensável é que a sub-rogação se opera amplamente para os direitos e ações, mas de forma absolutamente restrita no que tange aos eventuais deveres e ônus.
Assim, além de considerações outras relativamente aos abusos contidos nas cláusulas unilaterais e adesivas dos contratos de transporte marítimo de carga, bem como nos próprios do modal aéreo, o segurador não se vê obrigado a observar as cláusulas de eleição de foro e de arbitragem, porque personalíssimas e somente ligadas ao embarcador e ao consignatário da carga.
Com efeito, se o segurador não tomou parte no contrato de transporte, não é justo e devido que ele seja eventualmente obrigado a aceitar as cláusulas do contrato de transporte, na medida em que sua manifestação de vontade não se viu em momento algum convolada na efetivação do contrato. Isso é especialmente evidenciado no caso da disposição arbitral, na medida em que a figura da voluntariedade não se faz presente.
Nos conhecimentos marítimos em geral, e, em especial, em alguns conhecimentos aéreos de transporte, a cláusula de arbitragem caminha lado a lado, de mãos dadas e almas, na mesma estrada do dirigismo contratual, do absoluto desrespeito ao elemento da voluntariedade.
Na esteira disso, temos ainda que repudiar a cláusula que impõe a arbitragem.
Não porque não tenhamos apreço pela arbitragem, muito pelo contrário.
Trata-se de uma forma salutar de solução de conflitos e que precisa ser incentivada e praticada no Brasil.
Mas, por causa da forma como a arbitragem é imposta no cenário das relações contratuais maritimistas.
Ela vem quase sempre a reboque da cláusula de imposição de foro estrangeiro, não competindo à parte interessada qualquer manifestação de vontade.
Além disso, a cláusula que a dispõe é irregular aos olhos do sistema legal brasileiro.
Com efeito, a lei de arbitragem brasileira dispõe que a cláusula que prevê a arbitragem num contrato de adesão tem que ser redigida em letras garrafais, destacada do texto geral e com expressa assinatura sobre seu conteúdo da parte supostamente interessada.
Outro modo é a previsão da arbitragem no texto apartado e anexado ao contrato de transporte.
Nada disso é observado pelo transportador marítimo (e, não raro, pelo transportador aéreo).
Ele simplesmente se limita a impor a arbitragem na mesma cláusula que determina a eleição do foro estrangeiro, o que a faz manifestamente ilegal, inválida e ineficaz.
Há de se considerar, ainda, que o contrato de transporte é uma estipulação em favor de terceiro, de tal modo que o consignatário da carga, embora parte da obrigação de transporte, não participou da celebração do contrato, muito menos o seu segurador, o que torna ainda mais sem efeito a cláusula de arbitragem.
Existem, como mencionado, dois elementos principais impeditivos, um formal e outro substancial.
Diante das razões e fundamentos aqui colocados, nos parece correto o entendimento jurisprudencial de não submeter de maneira compulsória os casos de ressarcimento ao crivo da arbitragem.
Trata-se de algo manifestamente ilegal, uma vez que a arbitragem prevista no conhecimento de transporte marítimo de carga, como visto detalhadamente nas considerações de ambos os autores é uma cláusula unilateral, disposta num contrato de adesão, sem aquiescência do consignatário da carga, segurado, quanto mais da seguradora, e redigida ao arrepio das formalidades substanciais exigidas pela Lei de Arbitragem brasileira.
Mais do que algo ilegal, a eventual aplicação da cláusula de arbitragem pare a seguradora sub-rogada que busca o ressarcimento em regresso contra o transportador marítimo que inadimpliu obrigação de transporte seria, será e é um grande e grave erro, suscitando até mesmo arguição de inconstitucionalidade, por ofensa à garantia fundamental de acesso à Jurisdição.
Por mais que a arbitragem possa ser um procedimento inteligente, saudável, afeto aos direitos disponíveis e de índole empresarial, como os que tangem ao transporte marítimo de carga, ela jamais se revestirá da dignidade que só a função jurisdicional do Estado tem e nunca poderá ser aplicada sem o signo da voluntariedade. Obrigar, por exemplo, alguém que não aderiu voluntariamente ao procedimento de arbitragem à dele tomar parte é algo perigoso e que põe dúvida quanto à lisura do próprio instituto.
Conforme debatido, a adesão para resolução da lide via arbitragem deve ser voluntária e com expressa manifestação de vontade das partes. É necessário frisar que nenhuma crítica é feita ao sistema de arbitragem em si, muito pelo contrário, trata-se de medida eficiente e com grande valor na condição de auxiliar do poder judiciário, porém, entendemos que seu aceite sempre será uma prerrogativa das partes anuentes, não podendo sob hipótese alguma ser compulsória ou determinada, seja pelo judiciário ou mesmo por meio de cláusula em contrato de adesão com manifestação unilateral a respeito da matéria. Trata-se de medida que visa trazer segurança jurídica plena e absoluta para todos os “players” do transporte marítimo de cargas, com condições claras e objetivas para que todos atuem com o menor número de conflitos possíveis.
Também nos cabe frisar que a possibilidade de cláusula de “oferta de arbitragem” deixa a possibilidade de escolha para todas as partes envolvidas, seja o transportador, dono da carga e também a seguradora para que decidam qual o caminho mais célere, economicamente viável, e mais interessante para as partes aderirem quando ocorrer lides envolvendo o transporte marítimo.
Terminamos essa conclusão da mesma forma que terminamos a introdução, ou seja, enfatizando que a cláusula de arbitragem no Direito Marítimo é nula de pleno Direito, porque manifestamente abusiva e ilegal. E em sendo nula de pleno Direito para o consignatário da carga, segurado e vítima do inadimplemento contratual do transportador, com mais razão o é para o segurador sub-rogado, uma vez que este não pode tomar parte de uma obrigação que, além de ilegal e abusiva, não contou em momento algum com sua expressa anuência, sendo verdadeira truculência jurídica qualquer entendimento em sentido contrário e com vistas a ampliar, indevidamente, os efeitos jurídicos da sub-rogação. Ela é um direito do segurador, um direito que se reveste de função social e impacto econômico geral, não um ônus.
Conclusão
Ora, diante de todo exposto, afirmamos sem constrangimento algum ou temor que a regra relativa à preferência da “convenção” de arbitragem não é aplicável aos contratos (internacionais) de transportes marítimos de cargas, porque:
1) disposta unilateralmente, por meio de cláusula impressa, no corpo de um instrumento contratual adesivo;
2) despida da livre manifestação de vontade da parte aderente;
3) há flagrante desconformidade com a própria lei de arbitragem;
4) a seguradora legalmente sub-rogada, sequer foi parte no contrato, não podendo ser obrigada a suportar os ônus pesados nele impostos.
Os vícios contratuais nos instrumentos que corporificam os transportes internacionais marítimos de cargas são muitos para serem premiados com as incidências de regras processuais não aplicáveis ao caso concreto.
O mesmo "Codex" por sua vez, contém norma fundamental que cabe como luva à mão à todo e qualquer litígio fundado em problema com o contrato de transporte marítimo de carga: “Art. 4o As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.”
Referido artigo dispõe sobre a "primazia da decisão de mérito".
As partes têm o direito público subjetivo, agora elevado ao status de norma fundamental, garantia processual-constitucional, a decisão de mérito.
E por mérito entenda-se, preponderantemente, o bem da vida de um litígio, seu núcleo.
Ao enveredar pela eleição de foro e/ou pela arbitragem em casos nos quais essas mesmas figuras são, no mínimo duvidosas, senão manifestamente indevidas e ilegais, depõe-se contra a norma fundamental da primazia da decisão de mérito e em muito se prejudica o jurisdicionado e, reflexamente, a própria soberania da Justiça brasileira.
De todo o modo, o que se tem que ter em alça de mira tanto num caso como no outro é a presença (ou melhor, a ausência) da voluntariedade.
Ora, se a eleição de foro estrangeiro e/ou a de procedimento arbitral não forem absolutamente voluntários, não haverá que se falar nos seus eventuais reconhecimentos, sob pena de ofensa do Direito.
No caso específico da seguradora sub-rogada legalmente a situação, como exaustivamente exposto, é ainda mais justificável, sendo inaplicável qualquer norma ou convenção contratual firmado entre seu segurado e um transportador sem sua prévia, formal e expressa anuência.
E tudo isso com muito mais razão em se tratando de contrato de adesão, caracterizado por cláusulas impressas e, algumas, manifestamente abusivas.
O respeito ao procedimento arbitral é algo correto e desejável, algo à ser contemplado e defendido pelo Direito em exercício, mas esse respeito passa, necessariamente, pela via da voluntariedade. Sem a voluntariedade, sem a concordância ampla, irrestrita e juridicamente perfeita, o respeito perde seu manto e passa a vestir outro, negativo, costurado com as linhas do abuso e do desequilíbrio contratual. Somente a voluntariedade autoriza o conceito de “pact sunt servanda”.
O contrato de adesão, por razões de ordem moral e de ordem jurídica, razões ontológicas mesmo, sempre foi interpretado e aplicado restritivamente pelo sistema legal brasileiro, constituindo essa forma de inteligência verdadeiro mecanismo de calibragem e benfazeja tradição jurisprudencial. Não temos motivo algum para acreditar que a situação mudará com o novo Código de Processo Civil, até porque sua gênese conecta-se ao fim do formalismo pelo formalismo, da visão literal da regra legal, premiando o Direito enquanto instrumento da Justiça e do bem comum.