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As organizações não governamentais brasileiras no contexto das ações coletivas

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As ONGs passaram por uma transformação em sua natureza e seus objetivos, desde sua origem, quando tiveram um autêntico papel na política, até os dias atuais, em que se apresentam como entidades do terceiro setor.

RESUMO: Este artigo trata das origens das Organizações Não Governamentais (ONGs), focando especialmente a transformação pela qual passaram sua natureza e seus objetivos, desde sua origem, quando tiveram um autêntico papel na política, até os dias atuais, em que se apresentam como entidades do “Terceiro Setor”. O artigo também contempla uma abordagem sobre o marco legal das ONGs.

Palavras-chave: Estado. Política. Atores. Organizações não-governamentais. Terceiro Setor.


1. INTRODUÇÃO

Com o advento da crise do capitalismo deflagrada no início dos anos 1970, as Organizações não-governamentais (designadas, abreviadamente, de ONGs) (re)surgem no cenário político, apresentando-se como uma alternativas  de exercício de cidadania e como atores políticos necessários para se alcançar o desenvolvimento sustentável, baseado em justiça social e equilíbrio ambiental. No entanto, nos últimos anos, tornou-se parte do cotidiano dos brasileiros ler ou ouvir, nas diversas mídias, reportagens investigativas sobre escândalos relacionados com o uso das ONGs como instrumento para desencaminhar recursos públicos que deveriam ser empregados na execução de políticas públicas nos mais diferentes setores, mas que são desviados para os bolsos de políticos, de empresários e dos próprios gestores de muitas dessas citadas organizações.

Obviamente, a primeira ideia que nos vem à mente diante dos fatos citados é a de que as ONGs são nocivas ao interesse público e sua atuação como ator político ou como agente de políticas públicas deve ser banida. Ocorre, todavia, que é também com grande frequência que a imprensa nos dá conhecimento de bons serviços prestados por inúmeras ONGs, não só no Brasil, mas, principalmente, no âmbito internacional e internamente em diversos países. Também nos revela a história recente da América Latina que, em todo este continente, a partir da segunda metade da década de 1960, as ONGs muito apoiaram os movimentos sociais contra as formas tradicionais de poder (ditaduras, oligarquias, coronelismo etc.). No caso do Brasil, as ONGs inclusive teriam sido, na prática, “(...) a existência possível dos movimentos sociais em tempos de ditadura militar, equacionando uma fachada de escola comunitária com uma clandestinidade sempre proporcional à radicalidade de suas ações” (CABRAL, 2011).

Esses dados, às vezes tão contraditórios entre si, ensejam muitos questionamentos em torno das ONGs e de seu verdadeiro papel e utilidade social, tais como: O que são mesmo as ONGs? Que tem as ONGs a ver com o chamado Terceiro Setor e com a sociedade civil?  As ONGs parceiras do Estado se submetem  a  este ou tem autonomia?      

Assim, o móvel deste artigo é reunir elementos que auxiliam na formulação de respostas para esses e outros questionamentos do mesmo gênero. Para tanto, este texto, além de sua conclusão (item 4) está organizado mediante os seguintes tópicos: 1. Gênese e Conceito das Organizacões Não-governamentais; 2. As ONGs Como Novos Atores Sociais; e 2. O Marco Legal da Parceria do Estado Brasileiro com as ONGs. 


1. GÊNESE E CONCEITO DAS ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS           

O primeiro uso da expressão “ONGs - Organizações não-governamentais” (ou  Non governamental organizations [NGO], no idioma original) deu-se no âmbito da Organização das Nações Unidas – ONU, mais especificamente na Ata de Constituição dessa organização internacional, em 1946[1], em cujo artigo 71 ficou consignada a permissão para que seu Conselho Econômico e Social - ECOSOC celebrasse acordos adequados de consultoria com aquelas organizações. No citado texto, as ONGs foram definidas como “entidades civis sem fins lucrativos, de direito privado, que realizam trabalhos em benefício de uma coletividade” (HERCULANO, 2000, p. 4). À luz desse conceito, seriam não-governamentais todas as instituições privadas (portanto, não criadas pelo Poder Público) e constituídas sem o objetivo de lucro, tais como partidos políticos, universidades constituídas sob a forma de fundações privadas ou de sociedades civis, igrejas, associações profissionais, sindicatos etc.

Importa assinalar que, antes mesmo do advento da citada definição, já existiam várias organizações com as características das atuais ONGs, como, por exemplo, as organizações ambientalistas americanas Sierra Club, World Wildlife Federation – WWF e a National Audubon Society, fundadas, respectivamente, em 1892, 1951 e 1905 e que hoje fazem parte do rol das grandes ONGs.

No conceito de ONGs, hoje, incluem-se: a) as ECF (entidades internacionais de co-financiamento), que, baseadas no Primeiro Mundo, captam recursos e os carream para a execução de programas de ação no Terceiro Mundo. Estas ONGs costumam ser apelidadas, conforme o caso, como Trangos (seriam ONGs transnacionais), Quongos (quase ONGs) ou Bingos (“big” ONGs)[2]; b) institutos e fundações do Terceiro Mundo, que recebem recursos da rede de solidariedade das ONGs do Primeiro Mundo, e que buscam o desenvolvimento social, a animação e organização de atores políticos coletivos (compreendem as ONGs chamadas de APDs ou SMPs, que significam, respectivamente, associações privadas de desenvolvimento  e associações a serviço do movimento popular); e c) associações civis de cidadãos independentes, em torno de questões de interesse público (HERCULANO, 2000, p. 2).

Nos países do denominado Terceiro Mundo, as ONGs remontam  principalmente aos anos 1950, quando se mantinham basicamente com recursos recebidos das ONGs de países do Primeiro Mundo (“Trangos”, “Quongos” e “Bingos”). Caracterizam-se essas ONGs por serem entidades privadas[3] dotadas de personalidade jurídica e reconhecimento legal, por não terem fins lucrativos e por terem atividades orientadas em favor do desenvolvimento participativo e em benefício de pessoas e grupos distintos dos seus próprios membros. Essas entidades “(...) buscariam melhorar as condições de vida dos setores populares, a satisfação de suas necessidades básicas ou, mais além, a transformação total das estruturas econômicas e sociais existentes” (HERCULANO, 2000, p. 7).

No Brasil, as ONGs com as características retrodescritas proliferaram na década de 1970. Na descrição de Herbert de Souza, elas estavam ligadas à luta política da sociedade civil contra o regime autoritário que se implantou para servir ao grande capital em 1964. As ONGs do período entre 1960 e 1980 nasceram contra o Estado e de costas ou à margem do mercado, caracterizando-se, aliás,  por uma existência quase clandestina. Estavam ligadas aos movimentos sociais de base, às igrejas, aos movimentos sindicais e populares, executando tarefas fundamentalmente nas áreas de educação, saúde, habitação e consultoria aos denominados “movimentos populares”. A sustentação dessas ONGs era baseada na solidariedade internacional (a chamada cooperação internacional ao desenvolvimento), via ONGs do Norte (SOUZA, 1991).

As características das ONGs até aqui descritas passaram por uma marcante mudança a partir dos anos 1970, com o advento da crise estrutural do capitalismo e devido à reação a essa crise, que se baseia nas idéias neoliberais e tem como vigas mestras a reestruturação produtiva e a diminuição do tamanho do Estado, o que compreende o desmantelamento dos sistemas de proteção social, entre outras reformas. Na retórica reformista, os Estados-nações passam por uma crise de legitimidade na mediação política (crise do Estado de bem-estar social) e uma das alternativas no enfrentamento dessa crise passa pela transferência dos serviços sociais do Estado para o chamado “Terceiro Setor”, composto pelas ONGs (DUPAS, 2000, p. 192).

Especialmente no Brasil, esse processo de privatização dos serviços sociais agregou a estratégia de cooptação e neutralização dos movimentos sociais, mediante um discurso em princípio do Governo, mas que foi incorporado por parte dos próprios militantes das ONGs, de equiparação dessas organizações à sociedade civil (GOMES e COUTINHO, 2011). Para ambos, as ONGs seriam o “terceiro setor” que, por sua vez, seria a própria sociedade civil. Por essa noção, as ONGs seriam organizações formais sem fins lucrativos e não-governamentais com interesse público (SCHERER-WARREN, 2006)[4]. 

Do quanto foi até aqui exposto, constata-se as ONGs não apresentam exatamente as mesmas características em todo o mundo e que elas também têm sofrido modificações nos seus papéis ao longo do tempo. Talvez por isso mesmo, Landim (2002) argumenta que a categoria ONG não é um termo jurídico, sendo, na verdade, fruto de um processo de identificação comum; enquanto Atack (1999) sustenta que a pouca precisão na definição do termo “ONG” teria sua causa na grande heterogeneidade e variedade das ONGs de desenvolvimento, diversidade essa que depende de uma vasta gama de fatores, tais como a base geográfica (norte ou sul), tamanho, tipo de atividade (operacional, educacional, campanhas etc.), e  motivação ideológica.

Assim, não se podendo pretender alcançar um conceito válido universalmente para as ONGs, convém apenas reproduzir alguns dos conceitos formulados por diversos analistas do assunto.

Assim, segundo Landim (2002, p.238), ONGs são:

“Organizações com razoável grau de independência em sua gestão e funcionamento, criadas voluntariamente, sem pretender caráter representativo e sem ter como móvel o lucro material, dedicadas a atividades ligadas a questões sociais, pretendendo a institucionalização, a qualificação do trabalho e a profissionalização de seus agentes, tendo a fórmula ‘projeto’ como mediação para suas atividades, onde as relações internacionais – incluindo redes políticas e sociais e recursos financeiros – estão particularmente presentes. Organizações nas quais, finalmente, o ideário dos direitos e da cidadania é a marca de peso, permeando e politizando atividades variadas (muitas vezes formalmente as mesmas que caracterizam o campo dito assistencial)”.

Já Domingos Bernardo de Sá (apud CAMPOS, 1999, p. 4) define ONG, simplesmente, como “pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, prestadora de serviço público”.

Há também os conceitos daqueles que advogam a inclusão das ONGs entre os atores das transformações sociais, sendo digno de transcrição o adotado pelo Fórum das ONGs e Movimentos sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em 1992, segundo o qual ONGs seriam “espaços públicos por fora da esfera do Estado, responsáveis pela instituição de novos valores, normas e padrões de comportamento que questionam profundamente o atual modelo de desenvolvimento” e que por isso “são hoje, talvez, os atores potencialmente mais capazes de romper com a lógica individualista e predatória” (HERCULANO, 2000, p. 3).

Vale citar também, para finalizar este tópico, a noção plantada pelo Governo, de caráter funcional às reformas neoliberais no Brasil, a partir da década de 1990, da lavra de Bresser Pereira, para quem ONG seria “(...) a forma por meio da qual a sociedade se estrutura politicamente para influenciar a ação do Estado” (BRESSER PEREIRA, 1997, p. 69-70).

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2. AS ONGs COMO NOVOS ATORES SOCIAIS

Tendo em conta a origem e a transformação pela qual tem passado as ONGs no Brasil, há autores que as enxergam como “novos atores sociais” ou “novos atores políticos” (ABREU, Rafael V. et. all, 2009), sendo esse discurso frequente também entre os militantes dessas organizações. Importa, então, conhecermos os argumentos utilizados como fundamento desse discurso e a crítica que a respeito dele tem feito vários autores.

Inicialmente, vale registrar que, em matéria de políticas públicas, atores políticos (ou atores sociais) são todas aquelas pessoas ou instituições cujos interesses podem ser afetados, positiva ou negativamente, pelo rumo tomado por uma determinada política pública; e que são capazes de influenciar, de alguma maneira, no processo que vai desde a colocação de uma questão na agenda de políticas públicas até a sua implementação e avaliação. Desse modo, incluem-se entre os atores políticos tanto integrantes do Governo (Presidente da República, altos burocratas, políticos com mandato etc.) quanto atores não governamentais, que podem consistir de grupos de pressão, instituições de pesquisa, acadêmicos, organismos internacionais, a mídia, as ONGs, além de outros (RUA, 2009. p. 39-45). 

Por sua vez, “novos políticos” (ou “novos atores sociais”) são aqueles que já existiam no subsistema político, mas não eram suficientemente organizados; e que, quando passam a se organizar para pressionar o sistema político, aparecem como novos atores políticos (RUA, 2009, p. 69).

Como vimos na primeira parte deste texto, as ONGs surgiram no Brasil na clandestinidade e apoiando os movimentos sociais contra os governos autoritários. Com o fim do regime autoritário e a redemocratização do país, todavia, essas organizações vivenciaram algo como uma crise existencial, um impasse (CABRAL, 2011; HERCULANO, 2000).  Com efeito, “podendo mostrar sua cara e atuar abertamente, que objetivos traçar, por qual ideário se orientar? Iriam desaparecer? Iriam se tornar para-governamentais? Poderiam ser centros – assessoria – aos movimentos ou seriam atores diretos?” (HERCULANO, 2000).

A opção tomada foi a de reivindicar o reconhecimento como um novo ator político. Para tanto, incorporaram um discurso de autonomia face ao Estado, às Igrejas, aos movimentos populares, partidos e à Universidade.

Especificamente quanto aos movimentos sociais, as ONGs agregaram ao discurso da autonomia o fato de não tomarem parte nas decisões dos mesmos. Argumentavam as ONGs que, ao longo de sua história, ao apoiarem os movimentos sociais, comprometeram-se com as suas causas, desenvolveram trabalhos com eles, mas não puderam dirigi-los politicamente, nem participar de suas decisões, diferentemente das respectivas entidades representativas, tais como sindicatos e associações de moradores.

Assim, ressaltando princípios de conceituação elástica como “democracia” ou “cidadania”, as ONGs incluíram no seu discurso também a tese de que são entidades desprovidas de origem partidária ou mesmo ideológica e de que se sustentam com receita própria, advinda da contribuição financeira às pesquisas e projetos que desenvolvem. Dessa forma, ainda em consonância com o argumento citado, o compromisso que as ONGs tinham era somente para com a sociedade civil organizada, como agentes de capacitação política, sem se comprometerem com a organização das estratégias dos movimentos. Portanto, se num primeiro momento as ONGs teriam surgido a partir dos movimentos sociais, a articulação  que fizeram – motivadas pela continuidade de suas ações – teria tido o mérito, segundo os defensores de sua autonomia, de lhes conferir um status de atores sociais dotados de um perfil específico que difere da ação dos  movimentos sociais. “Enquanto para esses a essência de sua existência é a da militância, para as ONGs o cerne de suas realizações é o trabalho” (CABRAL, 2011).

Outro passo dado pelas ONGs na busca de legitimidade como um ator social foi a criação da ABONG (Associação Brasileira de ONGs), a qual teria o papel de dar às ONGs a ela associadas um respaldo de uma instituição forte, semelhante ao que a Igreja Católica propicia às suas Comissões Pastorais. Ao discursar durante a fundação da ABONG, em 10/09/1991, no Rio de Janeiro, o Sociólogo Betinho pronunciou as seguintes palavras, que reproduzem bem o sentimento dominante entre os militantes das ONGs naquela ocasião histórica: “As ONGs estão emergindo no espaço público como atores e elas vão falar. O IBASE[5] quer deixar de ser o tapete por onde passam os movimentos e ser ele próprio um ator político” (HERCULANO, 2000).

No discurso das ONGs na sua busca por reconhecimento e legitimidade como um ator social, não menos importante, ainda, é a tática de retomarem o conceito liberal, que opõe a sociedade civil ao Estado. Arvorando-se de “sociedade civil”, as ONGs apresentam-se como se fossem distintas e contrapostas ao Estado (e aos governos), situando-se numa posição entre este e o mercado.

Todos os argumentos das ONGs até aqui descritos sucumbem diante dos próprios fatos, a começar pela tese de que as ONGs são dotadas de autonomia, tanto política (e ideológica) quanto financeira. Com efeito, historicamente, o que foram e o que fizeram as ONGs sempre variou muito mais em função do modo como poderiam angariar recursos do que em função do ideal de transformação social: primeiramente (anos 1970 e 1980), a busca por recursos das ONGs internacionais e das agências de financiamento da ONU; num segundo momento (dos anos 1990 aos dias atuais), recursos do Estado, especialmente devido à diminuição da ajuda internacional concomitante com a explosão do número de ONGs concorrendo ao recebimento da mesma.

Por conseguinte, o que as ONGs são ou deixam de ser, em termos de objetivos, resume-se a uma questão de captação de recursos. Dificilmente sua atuação não estará condicionada por quem as financia. Essa também é a percepção de Montaño, ao sentenciar que:

“Como as ONGs, em regra, não geram receitas suficientes para se manter em operação, elas tem extrema necessidade de captar recursos fora de suas atividades fundantes. Isto conduz as ONGs a uma falta de auto-sustentabilidade tal que a captação de recursos (ou fundraising) se torna não apenas uma atividade essencial das mesmas, mas pode passar a orientar a filosofia e a condicionar sua atuação (MONTAÑO, 2008, p. 207).

Esse dado é corroborado quando se analisa o fluxo das ONGs ao longo de sua história no Brasil. Com efeito, da mesma forma que o surgimento do PNUD (Programa da ONU para o Desenvolvimento) foi o detonador da criação de elevado número de ONGs de desenvolvimento a partir de 1961, o surgimento mais recente da operacionalização do PNUMA (Programa da ONU para o Meio-Ambiente) e seu Fundo de Meio-Ambiente (GEF) provocaram o surgimento de um enorme número de ONGs “ambientalistas” (HERCULANO, 2000, p.13).

Enfim, a relação de dependência das ONGs em face do Estado que a financia se torna hierarquizada. Ademais, relacionada com e financiada pelo Estado, a ONG tem sua ação política totalmente comprometida, restando perdido o contato com as bases e, portanto, tornando ausente a legitimidade de que necessitariam para poderem almejar uma posição de mediadora na relação da sociedade civil com o Estado e o mercado.

Por sua vez, a oposição da sociedade civil ao Estado não é nada mais do que a tese liberal, relançada com alguma maquilagem, mas com o mesmo objetivo de outrora: ignorar a luta de classes. Assim, enquanto o liberalismo tradicional adotava uma divisão bipolar (Estado vs sociedade civil), os neoliberais propõem uma divisão tripolar, segundo a qual coexistem três setores (mundos ou esferas) estanques na vida social: sociedade civil (voluntária e virtuosa), mercado (competitivo) e Estado (burocracia). Com essa compreensão, objetiva-se o abandono da compreensão da totalidade da vida social e, portanto, a dinâmica das relações sociais sob o capitalismo, que crescentemente unificava sob seu comando o conjunto da existência (FONTES, 2009).

Conforme assinalaram Marx e Engels, o pensamento liberal, mais do que compreender o Estado burguês, tomava parte na luta burguesa contra as formas de Estado precedentes e as antigas classes dominantes. Sustentando que as características predominantes na sociedade burguesa faziam parte da “natureza humana, os liberais desconsideravam o processo histórico que levou à instauração dos Estados. Assim, os referidos autores não vislumbraram nenhuma separação entre Estado e sociedade, ao contrário, demonstraram que o Estado resulta da relação entre classes sociais e que, portanto, ele encontra sua razão de ser nessa relação. Os filósofos a serviço da burguesia em ascensão legitimaram e reforçaram a aparência de separação, pois era exatamente dessa forma que a ideologia operava (MARX e ENGELS, 2007).

Na versão neoliberal, a sociedade civil é identificada com o “Terceiro Setor”, por isso, a defesa das ONGs, como bem descortinado por Montaño (2007), visa (e alcança) três objetivos:

 1.Contribuir para a eliminação das conquistas populares no interior do Estado (redução das políticas públicas universais), reclamando recursos públicos para tais entidades privadas;

2. Fazer a apologia das “qualidades” de eficiência eficiência e eficácia do mercado quando devotado ao “bem público”; e,

3. Admitir a propriedade privada como inseparável do Estado.

Por fim, segundo a visão de Gomes e Coutinho (2011, p. 4), o que se passa é uma apropriação oportunista do termo “sociedade civil”, pois este, até então tinha  sido empregado em toda a América Latina para contrapor ao Estado, principalmente no período dos golpes militares, tendo a idéia-força de “(…) um agente para limitar os governos autoritários, fortalecer os movimentos sociais, reduzir os efeitos  do mercado e melhorar a qualidade da governância” (GOMES e COUTINHO, 2011, p. 4). Com isto, as ONGs “(...)se transformam em uma ferramenta ideológica a serviço de uma agenda neoliberal. Abandonaram o discurso e as práticas dos anos 1970 e se colocam na qualidade de 'parceiras' do Estado e do mercado (e do grande capital, é bom frisar)” (ibidem).

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Sobre o autor
Marco Aurélio Lustosa Caminha

Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Ex-Procurador Regional do Trabalho. Professor Associado de Direito na Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, Argentina). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. As organizações não governamentais brasileiras no contexto das ações coletivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4789, 11 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51300. Acesso em: 25 abr. 2024.

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