3. O MARCO LEGAL DA PARCERIA DO ESTADO BRASILEIRO COM AS ONGS
É fato que uma enorme parcela dos recursos públicos que o Estado Brasileiro gasta nas áreas da assistência social, da saúde e da educação, bem ou mal, é hoje aplicada (quando não desviada), via convênios e parcerias com Organizações não-governamentais. Esse dado justifica a dedicação de um tópico deste trabalho ao levantamento do aparato normativo que possibilita a parceria do Estado com o Terceiro Setor no Brasil.
No início da década de 1990, o Brasil aderiu ao Consenso de Washington e a política econômica passou a ser baseada firmemente nos ditames da OMC, do FMI e do Banco Mundial, bem como do capital financeiro volátil e das empresas multinacionais, os quais determinam limites muito rígidos para a política social em todos os níveis. Com isso, a legislação infraconstitucional foi bastante modificada com vistas a transferir para a iniciativa privada a exploração de uma grande fatia dos serviços públicos, tanto na área da assistência social, via “Terceiro Setor”, como nas áreas da previdência, da saúde e da educação, especialmente de nível superior.
Comecemos pela área da educação. Nesse setor, as providências voltadas para a privatização até agora foram mais nítidas no ensino superior, tendo sido efetuadas tanto pela via legislativa como por meio de medidas ostensivas de restrição do crescimento do setor público federal e de incentivo à expansão do setor privado (SGUISSARDI, V.; SILVA JR., 2005). Também contribuíram para a abertura desse setor à iniciativa privada, notadamente nos oito anos do Governo de Fernando Henrique Cardoso, posturas ou medidas como a negação da autonomia das universidades, o congelamento salarial, a redução de vagas docentes e de funcionários e o drástico corte do financiamento das instituições federais de ensino superior.
No plano legislativo, direta ou indiretamente serviram para diminuir a atuação do Estado no ensino superior e ampliar a participação privada as seguintes normas: a) lei no 10.861, de 14/4/2004, que cria o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES), regulamentada pela portaria do Ministério da Educação (MEC) no 2.051, de 9/7/2004; b) lei no 10.973, de 2/12/2004, que dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências; c) lei no 11.079, de 30/ 12/2004, que institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público/privado (PPP) no âmbito da administração pública; d) lei no 11.096, de 13/ 1/2005 (Medida Provisória – MP no 213, de 10/9/ 2004), que institui o Programa Universidade para Todos (PROUNI), regula a atuação de entidades beneficentes de assistência social no ensino superior, altera a lei no 10.891, de 9/7/2004, e dá outras providências.
Com relação à Previdência Social, os avanços incorporados no período anterior à Constituição de 1988 por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Seguridade Social, de 1987, e que haviam sido mantidos pela nova Carta e ratificados na legislação que a regulamentou (Lei nº 8.212 [custeio] e nº 8213 [benefícios], ambas de julho de 1991), passaram a sofrer sucessivas mudanças regressivas a partir de 1992. A alteração começou já pelo primeiro decreto destinado à regulamentação das referidas leis, pois, enquanto a previsão legal estabelecia que o orçamento da Seguridade Social seria formado por receitas da União, de contribuições sociais e de outras fontes, o Decreto nº 356 modificou essa norma, para estabelecer que a União só seria responsável pela cobertura de eventuais insuficiencias financeiras da Seguridade Social. Depois, sucessivas reformas constitucionais e alterações legislativas infraconstitucionais promoveram aumento de alíquotas de contribuição para servidores, tributação de servidores passivos, ampliação de tempo de serviço (e contribuição) dos servidores públicos e mesmo a privatização de alguns seguros, o que implicou na entrega de uma enorme fatia do setor previdenciário à exploração pelas instituições financeiras.
Enquanto as medidas tendentes à mercantilização da previdência têm sido tomadas via alterações na própria Constituição, destinadas à diminuição dos benefícios e ao aumento das alíquotas das contribuições e do tempo de serviço exigido para aposentadoria, nas áreas da assistência e da saúde isso foi possível mediante simples leis adotadas com base nas aberturas que já havia na Constituição. Vejamos um pouco a respeito disso.
As diretrizes principais da Seguridade Social estão na Constituição da República, nos arts. 194 (Seguridade Social como um todo), Saúde (arts. 196 a 200), Previdência Social (arts. 201 e 202) e Assistência Social (arts. 203 e 204). O citado artigo 194 define a Seguridade Social como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da Sociedade, destinadas a assegurar os direitos à Saúde, à Previdência e à Assistência Social e à Assistência Social”. (Negritamos).
A Saúde,encontra-se definida no art. 196 da Constituição como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. A abertura para a terceirização dos serviços públicos de saúde consta no art. 197, o qual diz que são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Por seu turno, o art. 198 inclui entre as diretrizes para a organização das ações e serviços públicos de saúde a participação da comunidade.
Mais uma abertura aparece no art. 199, segundo o qual a assistência à saúde é livre à iniciativa privada. No seu § 1º, esse dispositivo diz que as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos; no § 2º, veda a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos; e no § 3º veda a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, abrindo exceção para os “casos previstos em lei”. A regulamentação da saúde no plano infralegal deu-se mediante a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 (LOS), que dispôs sobre o Sistema Único de Saúde.
No que concerne à Assistência Social, o artigo 203 da Constituição da República Federativa do Brasil dispõe que ela será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, estabelecendo, nos respectivos incisos (I a V) os seus objetivos.
E, por último, o art. 204, ao estabelecer que as ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social e de outras fontes, coloca entre as diretrizes com base nas quais aquela será organizada: I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social; II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.
No plano infraconstitucional, a Assistência Social é regida pela Lei nº 8.742 (Lei Orgânica da Assistência Social ou LOAS), de 7 de dezembro de 1993, com as modificações promovidas pela Lei nº 9.720, de 30 de novembro de 1998. No seu art. 1º, a LOAS expressa que “a assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.” (Destacamos).
Em seguida sobreveio a legislação que, direta ou indiretamente, regulamenta a constituição e atividade das entidades que compõem o denominado “Terceiro Setor”, a saber: 1) Lei nº 9.608, de 18 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre o Serviço voluntário e o define como atividade não remunerada prestada por pessoa física a entidade pública, não gerando vínculo empregatício nem obrigação trabalhista e previdenciária;
2) Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998, que qualifica como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde;
3) Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, que qualifica pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), e institui e disciplina o termo de parceria. Esta lei foi regulamentada pelo Decreto nº 3.100, de 30 de junho de 1999, que, por seu turno, o foi pela Portaria MJ nº 361, de 27 de julho de 1999.
Importa, desta vez, citar as normas que disciplinam/autorizam a transferência de recursos públicos para o “Terceiro Setor”. São elas:
1) O art. 150, VI, da Constituição da República, porquanto estabelece a isenção de impostos sobre o patrimônio, renda ou serviço às instituições de educação e assistência social, sem fins lucrativos. As isenções fiscais estão regulamentadas, ainda hoje, no Decreto nº 91.030, de 5 de março de 1985 (Regulamento Aduaneiro), o qual, na parte em que regula as isenções fiscais, beneficia entidades sem fins lucrativos que promovam atividades com fins culturais, científicos e assistenciais;
2) Lei nº 9.732, de 11 de dezembro de 1998, que concede às entidades sem fins lucrativos educacionais e as que atendam ao Sistema Único de Saúde, mas não pratiquem de forma exclusiva e gratuita atendimento a pessoas carentes, a isenção da contribuição patronal devida à Previdência Social, prevista nos arts. 22 e 23 da Lei nº 8.212, de 1991.
Comporta neste tópico, mais, mencionar as modalidades e respectivos mecanismos pelos quais o Estado presta o apoio financeiro ao Terceiro Setor, o que fazemos com apoio em Montaño (2008, p. 204-205):
1) Auxílios e contribuições: o auxílio é concedido via lei de orçamento anual e a contribuição mediante lei especial;
2) Subvenções sociais: concedidas para a cobertura de despesas de custeio de entidades públicas ou privadas, sem fins lucrativos, para a prestação de serviços de assistência sócial, médica ou educacional;
3) Convênios, acordos ou ajustes: são empregados para a execução de serviços de interesse recíproco, em regime de mútua cooperação;
4) Contratos de gestão: formulados com apoio na Lei nº 9.637, por meio deles o Estado destina recursos a uma entidade privada sem fins lucrativos, sem licitação, para que a mesma realize atividades públicas;
5) Termos de parceria: têm suporte na Lei nº 9.790. Por meio deles o Estado transfere recursos públicos para a entidade “parceira” em situação na qual a entidade deve substituir (não complementar) a responsabilidade do Estado com a resposta às demandas sociais;
6) Isenção de impostos (renúncia fiscal): o Estado abre mão de tributar entidades declaradas como instituições filantrópicas ou de interesse público, de conformidade com leis que assim autorizem, como é o caso da Lei nº 9.732, já citada.
Vejamos, ainda, as exigências e o respectivo aparato normativo atinentes aos benefícios que o Estado disponibiliza para as ONGs.
Primeiramente, para a obtenção de vantagens fiscais e financeiras (doações dedutíveis do Imposto de Renda, benefícios fiscais por meio da Lei Rouanet, parcerias e convênios com o Poder Público, isenção da quota patronal para o INSS e isenção pra o FGTS), deve a entidade ser reconhecida como de Utilidade Pública pelo governo, no âmbito federal, estadual ou municipal, ou ainda nos três níveis da administração pública. As exigências para esse reconhecimento constam da Lei nº 91/1935 e a forma para se postular o documento que consubstancia esse reconhecimento no âmbito federal (o denominado Título de Utilidade Pública Federal) consta do Decreto nº 50.517/1961, que regulamenta aquela norma.
Por sua vez, as instituições de filantropia, para efeito de parcerias ou obtenção de benefícios devem ter registro no Conselho Nacional de Assistência Social, assim como um certificado denominado Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos. Os requisitos para o registro no CNAS e para a obtenção do Certificado estão contidos, respectivamente na Resolução nº 31/1999 e na Resolução nº 32/1999 do CNAS.
Caso se trate entidade de fundação particular, ainda deve ter (e comprovar) inscrição no Registro Civil das Pessoas Jurídicas (art. 16 do Código Civil) e que seu estatuto foi aprovado pelo Ministério Público.
Por último, ainda convém um registro sobre a modalidade de pessoa jurídica com que as ONGs podem se constituir para poderem se habilitar ao recebimento de verbas governamentais, a qual deverá ser sempre a de pessoa jurídica de Direito Civil, tendo seu registro em cartório de registro civil de pessoas jurídicas e não na Junta Comercial como ocorre com as empresas que visam o lucro. Poderá a entidade constituir-se sob uma das três formas possíveis à luz do art. 44 do Código Civil: associação, sociedade (civil) ou fundação privada.