Artigo Destaque dos editores

As organizações não governamentais brasileiras no contexto das ações coletivas

Exibindo página 3 de 3
Leia nesta página:

4. CONCLUSÃO

Ao longo da história, principalmente a partir do advento do capitalismo, sempre existiram organizações de iniciativa do próprio povo voltadas para finalidades altruísticas, tendo como móvel apenas o espírito de solidariedade e mantidas apenas com recursos obtidos junto à própria população. Hoje, no entanto, o termo ONG está mais relacionado às organizações sem fins lucrativos pertencentes ao denominado Terceiro Setor, cujo escopo é a realização de serviços públicos mediante financiamento do Estado, de ONGs estrangeiras ou de agências de financiamento da ONU (e raramente com recursos angariados perante a população), principalmente nas áreas de educação, saúde e assistência social.

A associação do termo ONG à modalidade de organização mantida por financiamento estatal ou proveniente da ONU e de ONGs internacionais, por um lado, deve-se à circunstância de que foi aquele organismo internacional quem, ao utilizar pela primeira vez a expressão “Organiazações Não-Governamentais” e ao defini-las como “entidades sem fins lucrativos, de direito privado, que realizam trabalhos em benefício de uma coletividade”, instituiu a possibilidade do financiamento oficial aos projetos dessas entidades. Mas foi o advento do Neoliberalismo quem efetivamente incutiu a vinculação do termo ONG à noção de entidade do Terceiro Setor, ao (praticamente) impor ao Terceiro Mundo o receituário que, entre outras reformas, prega a diminuição do tamanho do Estado e sua abstenção de atividades tidas como não essenciais e que, em tese, poderiam ser realizadas melhor pela própria sociedade civil (a qual passou a ser considerada como equivalente ao Terceiro Setor) do que pelo Estado ou pelas empresas.

As ONGs proliferaram na América Latina a partir dos anos 1960, mirando nos financiamentos internacionais. Por estas bandas, ante a presença de governos ditatoriais, tais instituições assumiram uma postura de atuação contra o Estado ditatorial, que nesse caso  consagrava as piores formas de repressão aos civis. Assim, no caso do Brasil, as primeiras ONGs se dedicaram primeiro a apoiar a resistência popular contra a ditadura militar (anos 1970) e, superada essa, num segundo momento se voltaram para apoiar os movimentos pela conquista dos direitos sociais no período de redemocratização do país (anos 1980). Em todo esse período, a fonte de financiamento das ONGs brasileiras foram as cooperações oriundas das ONGs do Primeiro Mundo e das agências de financiamento da ONG, a título de ajuda ao desenvolvimento.

Após a promulgação da Constituição de 1988, tendo sido esta impregnada de aberturas à “participação popular”, as ONGs foram alçadas à condição de parceiras do Estado e passaram a ser incumbidas da realização de políticas públicas. Nesse ensejo, todo um marco legal foi construído, como visto, para viabilizar a entrega de diversos serviços públicos, especialmente nas áreas de assistência social, saúde e educação superior, à exploração privada, especialmente às entidades do Terceiro Setor.

A crise econômica e mesmo o fato de haverem se agravado os problemas sociais na própria Europa, com a queda do comunismo no Leste Europeu e a reunificação da Alemanha, além do agravamento dos problemas sociais na África, tornou prioritários os financiamentos às ONGs dessas regiões, reduzindo-se significativamente o envio de recursos às ONGs da América Latina, o que ainda se agravou mais nesta região do mundo, porque houve no mesmo período um enorme aumento na quantidade de ONGs criadas na perspectiva de acesso ao  financiamento externo.

Com a adesão do Brasil ao Consenso de Washington, uma parcela considerável dos serviços públicos passou a ser delegado ao Terceiro Setor. Invocando sua história de luta nos anos 1970 e 1980, respectivamente, quando apoiaram os movimentos sociais contra a ditadura e na luta pela redemocratização do país, as ONGs hoje reivindicam seu reconhecimento social como “novos atores sociais”. Nessa pretensão, contudo, as ONGs não tem conseguido a almejada ressonância, pois sua dependência financeira em relação ao Estado as tornam reféns dos Governos e destituídas, portanto, de autonomia e legitimidade.


REFERÊNCIAS:

ABREU, Rafael Ventura; DYSMAN, Maria Carolina e CALDAS, Emmanuel Antonio Rapizo Magalhães. Sociedade civil e Estado: um estudo dos convênios entre o Governo Federal e as ONGS. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências sociais – IFC/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 33-44, Semestral, 2009. Disponível em: www.habitus.ifcs.ufrj.br.

ATACK, Ianin. Four criteria of development NGO legitimacy. World Development. Vol. 27, n. 5, 1999. p. 855-864.

BRESSER PEREIRA, Luís C. A reforma do Estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Brasília, Ministério da Administração e Reforma do Estado, 1997.

CABRAL, Adilson. Movimentos sociais, as ONGs e a militância que pensa, logo existe. 2011. Disponível em: http://www.emailsocial.com.br/index.php/movimentos-sociais-as-ongs-e-a-militancia-que-pensa-logo-existe/ .

CAMPOS, José Roberto Bassul. Organizações Não-Governamentais nas Áreas Ambiental, Indígena e Mineral. 1999. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/artigos/OrganizacoesNaoGovernamentais.pdf

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

COUTINHO, Joana A; GOMES, Ilse. Estado, movimentos sociais e ONGs na era do liberalismo. Revista Espaço Acadêmico nº 89, out. 2008. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/089/89gomes_coutinho.pdf .

DELGADO, Maria Viviane Monteiro. O Terceiro Setor no Brasil: uma visão histórica. In: Revista Espaço Acadêmico, n. 37, jun. 2004. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/037/37cdelgado.htm .

DUPAS, Gilberto. Economia Global e Exclusão Social: pobreza, emprego, estado e o futuro. São Paulo, Paz e Terra: 2000.

FONTES, Virgínia. Verbete “sociedade civil”. Dicionário de Educação Profissional em Saúde. Fundação Oswaldo Cruz: Escola Polítécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2009. Disponível em: Http://www.epsjv.fiocruz.br/ Dicionário/verbetes/socciv.htm .

HERCULANO, Celene C. ONGs e movimentos sociais: a questão de novos sujeitos políticos para a sustentabilidade. Revista Meio Ambiente: questões conceituais, Rio de Janeiro, UFF/PGCA-Riccor, 2000, PP. 123-155. Disponível em: http://www.professores.uff.br/seleneherculano/publicacoes/ongsemovimentos.htm .

LANDIM, L. Experiência Militante: histórias das assim chamadas ONGs. Lusotopie, n.1, 2002, p. 215-239.

MENESCAL, Andréa Koury. História e gênese das Organizações não-governamentais. In: Organizações não-governamentais: solução ou problema. Hebe Signorini Gonçalves, org., 1ª ed., São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social. Crítica ao padrão emergente de intervenção social. 5ª ed. São Paulo, Cortez Editora, 2008.

RUA, Maria das Graças. Políticas Públicas. Florianópolis: Departamento de Ciências da Administração/UFSC; [Brasília]; CAPES, 2009.

SGUISSARDI, V.; SILVA JR., J.R. A nova lei de educação superior: fortalecimento do setor público e regulação do privado/mercantil ou continuidade da privatização e mercantilização do público? Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 29, maio/ago. 2005c. Disponível em: .http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-24782005000200002&script=sci_arttext .

SOUZA, H. As ONGs na década de 90. Comunicações do Iser, ano 10, n. 41, Rio de Janeiro, Iser, 1991.


Notas

[1]    Com o decorrer do tempo, o termo “ONG” foi assimilado inclusive em normas internas de diferentes países. Na Alemanha, por exemplo, o emprego do termo “ONG” começou de dentro do governo, na década de 1960, quando o Ministério da Cooperação Econômica e Desenvolvimento (BMZ) começou a repassar subsídio da chamada “ajuda para o desenvolvimento” para organizações não estatais (ONGs), em geral ligadas às igrejas católica e evangelista (CAMPOS, 1999).

[2]    As ONGs apelidadas de “Trangos” são as (do Norte) de cooperação para o desenvolvimento, surgidas a partir da criação do PNUD (Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas) e que lidam com um fluxo de ajuda Norte-Sul da ordem de bilhões de dólares. Por seu turno, as alcunhadas de “Quongs” assim o são por terem como finalidade movimentar as cotas mais relevantes da ajuda pública para o desenvolvimento, proveniente dos impostos, sendo criadas por instituições como as igrejas, os partidos políticos e as centrais sindicais. Por último, as apelidadas de “Bingos” são as ONGs que têm ligação direta com bancos, governos e “mass media”, as quais têm uma visão assistencialista e uma ação de sustentáculo dos grandes partidos políticos europeus (HERCULANO, 2000, p. 4).

[3]    Frise-se, todavia, que, conforme advertência de Campos (1999, p. 1), grande parte das ONGs africanas foram criadas pelo próprio governo, mas, no âmbito dos movimentos sociais, são consideradas ONGs.

[4]    Registra-se antecipadamente o equívoco deste conceito, pois, conquanto inclua esse setor, a sociedade civil também se refere às participação cidadã num sentido mais amplo; ela é a representação de vários níveis de como os interesses e os valores da cidadania se organiza em cada sociedade, para encaminhamento de suas ações em prol de políticas sociais e públicas, protestos sociais, manifestações simbólicas e pressões políticas, na definição de Scherer-Warren (2006).

[5]    O IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas é a ONG fundada por Herbert de Souza, o “Betinho”, a qual é associada da ABONG desde a fundação desta, em 1991.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Marco Aurélio Lustosa Caminha

Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Ex-Procurador Regional do Trabalho. Professor Associado de Direito na Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, Argentina). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. As organizações não governamentais brasileiras no contexto das ações coletivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4789, 11 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51300. Acesso em: 25 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos