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A responsabilidade subsidiária da administração pública tomadora de serviços, a ADC 16, o STF, o TST e o ônus da prova

Afinal de contas, o ônus de provar a (ir)regularidade da fiscalização e da contratação é do reclamante ou do ente público?

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02/01/2017 às 10:10
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3. DEVER DE O ENTE PÚBLICO TOMADOR DE SERVIÇOS ADOTAR AS CAUTELAS LEGAIS PARA CONTRATAR E DEVER DE FISCALIZAR A EXECUÇÃO DO CONTRATO ADMINISTRATIVO FIRMADO: FUNDAMENTOS E CONSEQUÊNCIAS DA INOBSERVÂNCIA

Prosseguindo a trilha do tema, importante frisar que o dever de o ente público adotar medidas que garantam a escolha de empresa idônea e capaz de executar o objeto do contrato administrativo decorre da necessária observância de procedimento licitatório por parte da Administração Pública (artigos 22, XXVII, 37, XXI, e 173, §1º, III, Constituição Federal), mais precisamente das disposições legais que exigem a habilitação jurídica, a qualificação técnica, a qualificação econômico-financeira e a regularidade fiscal e trabalhista da candidata à adjudicação do objeto licitado (artigos 27 a 33 da Lei 8.666/1993).

o dever de o ente público tomador de serviços fiscalizar o cumprimento, pela empresa prestadora, das obrigações trabalhistas atinentes aos empregados desta que prestam(ram) serviço em prol da tomadora decorre:

a)Do Princípio da Legalidade12 (que, por essa vertente, impõe que o Poder Público preze pela observância da legislação trabalhista por parte da empresa contratada - conforme raciocínio apontado no voto escrito da Ministra Cármen Lúcia na ADC 16, proferido antes de sua manifestação no sentido de que seguiria o voto do Ministro Cezar Peluso;

b)Do Princípio da Moralidade Administrativa13 (a exigência de fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas decorrentes da execução do contrato administrativo é necessária para garantir que o Poder Público não esteja, por exemplo, beneficiando-se da mão de obra de trabalhadores terceirizados que estão laborando sem receber salários, que não contam com equipamentos de proteção individual, que estão sem receber o pagamento de horas extras etc.; isso porque tal contexto catastrófico certamente afrontaria qualquer noção de ética e de adequação social do meio escolhido pela Administração para atingir a sua finalidade pública);

c)Dos artigos 55, XIII14, 58, III15, e 67, caput e §1º16, da Lei 8.666/1993.

A observância de tais deveres17 garante a escolha de empresa que, em tese, respeita e respeitará a legislação trabalhista e, ao mesmo tempo, assegura efetivamente – ou, na maior medida possível, tenta assegurar - a observância das normas trabalhistas por parte da empresa prestadora. Em última instância, tais deveres servem para proteger o valor social do trabalho (artigos 1º, IV, 170, caput, e 193, Constituição Federal) e, em concreto, os trabalhadores que prestam seus serviços em benefício do ente público por intermédio da contratada.

Nesse sentido, considerando, conforme já visto, que tais deveres integram a formação/execução do contrato administrativo e que visam proteger o trabalhador terceirizado, e levando em conta que o descumprimento de tais deveres, na linha preconizada pelo STF na ADC 16, configura inadimplemento da Administração Pública, conclui-se que, por uma interpretação sistemática, a responsabilidade subsidiária do ente público decorre do próprio art. 71, §1º, da Lei. 8.666/1993.

Isso porque tal dispositivo, ao exonerar o ente público tomador de qualquer responsabilidade, parte do pressuposto de que o inadimplemento da empresa prestadora não decorreu de ou foi possibilitado por qualquer ação ou omissão da Administração Pública. Ou seja, a norma exoneradora de responsabilidade parte do pressuposto de que o ente público teria cumprido e estaria cumprindo regularmente todas as obrigações e deveres atinentes ao contrato administrativo, de modo que, quando esse cenário hipotético não fosse verdadeiro, seria a Administração Pública passível de responsabilização pelos encargos trabalhistas, desde que sua conduta guardasse nexo com a inadimplência dos haveres trabalhistas por parte da prestadora. Afinal, não faria sentido a imposição de deveres com finalidades tão nobres sem que houvesse a devida e razoável sanção jurídica, sendo essa compreensão a que mais se harmoniza com os fins sociais e as exigências do bem comum, em obediência ao art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Dentro desse contexto, o parágrafo 1º do art. 71 da Lei das Licitações poderia ser reescrito do seguinte modo, a fim de melhor explicitar o entendimento ora propugnado (que atualmente é implícito e decorrente de toda uma harmonização do ordenamento jurídico):

A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis, desde que o ente público esteja cumprindo e tenha cumprido regularmente todas as obrigações e deveres atinentes ao contrato administrativo firmado. (acrescei o trecho grifado)

Mister ressaltar que o não cumprimento regular dos deveres de cautela na escolha e de fiscalização implica em conduta presumidamente dolosa/culposa da Administração Pública, pois tal postura implica em inadimplemento, conforme inclusive salientado pelo Ministro Cezar Peluso no julgado da ADC 16 pelo STF. E, justamente por se tratar de inadimplemento, este somente poderia ser considerado escusável na hipótese de caso fortuito ou força maior (art. 393, Código Civil, aplicável subsidiariamente aos contratos administrativos por força do art. 54 da Lei 8.666/1993). Ou seja, descumpridos os deveres de cautela na escolha e de fiscalização restam configuradas, respectivamente, as chamadas “culpa in eligendo” e “culpa in vigilando”.

Frise-se que o raciocínio desenvolvido parece se adequar com precisão aos fundamentos, externalizados ao longo dos debates, adotados pelo Ministro Cezar Peluso (voto vencedor) no julgamento ADC 16.

Elucidada a “fonte” da responsabilidade estatal, avancemos, finalmente, para o ônus probatório, principal aspecto processual do problema.


4. O ÔNUS DA PROVA DA CULPA IN ELIGENDO E IN VIGILANDO (ANÁLISE TEÓRICA)

O ônus da prova, no Processo do Trabalho, é regulado no artigo 818 da Consolidação das Leis do Trabalho: “A prova das alegações incumbe à parte que as fizer”. Tal regra, por sua excessiva simplicidade, costuma ser criticada pela doutrina. Nesse sentido, Schiavi (2015, p. 667-668):

O referido art. 818 da CLT, no nosso entendimento, não é completo, e por si só é de difícil interpretação e também aplicabilidade prática, pois, como cada parte tem de comprovar o que alegou, ambas as partes têm o encargo probatório de todos os fatos que declinaram, tanto na inicial, como na contestação.

Além disso, o art. 818 consolidado não resolve situações de inexistência de prova no processo, ou de conflito entre as provas produzidas pelas partes. O juiz da atualidade, diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF), não pode furtar-se a julgar, alegando falta de prova nos autos, ou impossibilidade de saber qual foi a melhor prova. Por isso, a aplicação da regra de ônus da prova como fundamento de decisão é uma necessidade do processo contemporâneo. [...]

Já o Código de Processo Civil de 2015, além de consagrar expressamente a possibilidade de inversão judicial do ônus da prova (§§1º, 2º e 3º do art. 37318), esmiúça melhor as regras gerais (“estáticas”) sobre ônus probatório:

Art. 373. O ônus da prova incumbe:

I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;

II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

[...]

Didier Júnior (2015, p. 111-113) nos ajuda a compreender o dispositivo:

O fato constitutivo é o fato gerador do direito afirmado pelo autor em juízo. Compõe o suporte fático que, enquadrado em dada hipótese normativa, constitui uma determinada situação jurídica, de que o autor afirma ser titular. Como é o autor que pretende o reconhecimento deste seu direito, cabe a ele provar o fato que determinou seu nascimento.

[…]

O fato extintivo é aquele que retira a eficácia do fato constitutivo, fulminando o direito do autor e a pretensão de vê-lo satisfeito – tal como o pagamento, a compensação e a decadência legal.

[…]

O fato impeditivo é aquele cuja existência obsta que o fato constitutivo produza efeitos e o direito, dali, nasça – tal como a incapacidade, o erro, o desequilíbrio contratual.

[…]

O fato modificativo, a seu turno, é aquele que, tendo por certa a existência do direito, busca, tão somente, alterá-lo – tal como a moratória concedida ao devedor.

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Apesar de a jurisprudência e a doutrina serem praticamente unânimes na aplicabilidade de tal artigo processual civil ao Processo do Trabalho, devemos, mesmo que sucintamente, analisar a possibilidade de integração de tal artigo ao Processo Laboral.

Seguindo o método defendido por Bruxel (2016)19, estamos diante de uma omissão parcial20 - a norma do Código de Processo Civil regula de forma mais completa o tema, sem contrariar a norma celetista – e, portanto, devemos analisar sua compatibilidade21 com o Processo do Trabalho. Nessa trilha, observa-se que a norma processual comum detalha o teor do artigo 818 da CLT, garantindo, ao distribuir diferenciadamente e de forma mais clara o ônus probatório entre as partes, que se possa julgar o feito com base nas regras sobre encargo probatório (a problemática norma celetista dá a entender que, se uma parte disser que o fato X ocorreu e a outra parte disser que o fato X não ocorreu, ambas terão o encargo de demonstrar suas alegações; caso ninguém prove nada, o artigo 818 da CLT não apresenta uma regra cristalina sobre qual parte arcaria com as consequências advindas da ausência probatória em torno do fato X). Desse modo, percebe-se que o artigo 373 do CPC assegura maior Efetividade da Jurisdição e ainda, por sua pormenorização, garante maior Segurança Jurídica (previsibilidade) às partes, sem causar prejuízos a outros fundamentos do Processo Laboral ou princípios processuais constitucionais, circunstância que demonstra sua compatibilidade com o Processo Trabalhista e atrai sua aplicabilidade a esta seara como reforço ao artigo 818 da CLT.

Definido isso, percebemos que, ao empregado que postula a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços ente público – supondo que tenha direitos trabalhistas a receber de sua empregadora (a empresa prestadora) - basta: a)comprovar, caso exista controvérsia a respeito, a prestação de serviços em prol da Administração Pública (fato constitutivo de seu direito, nos termos do art. 373, I, CPC); b)alegar o descumprimento, pelo ente público, dos deveres de cautela na escolha e de fiscalização.

Basta a alegação de descumprimento, pois o adimplemento (“pagamento”) de um dever/obrigação é um fato extintivo do direito da parte reclamante (art. 373, II, CPC) e, portanto, incumbe ao ente público (réu) comprovar que efetivamente adotou as cautelas na escolha da empresa prestadora e que regularmente fiscalizou o cumprimento dos haveres trabalhistas.

Entender de modo contrário seria atribuir ao autor um ônus que este não possui (se o adimplemento é fato extintivo, certamente não poderíamos entender que o inadimplemento seria um fato constitutivo, sob pena de cairmos no mesmo impasse criticado e possivelmente ocorrente quando aplicado exclusivamente o artigo 818 da CLT) e, o pior, significaria impor um encargo praticamente impossível (provar que a Administração não cumpriu seus deveres) e absurdo (o inadimplemento da empresa prestadora, por mais que não seja suficiente por si só para a responsabilidade subsidiária da tomadora, é no mínimo um provável e gigante indício de que esta não cumpriu com seus deveres contratuais).

Frisar que se trata de um ônus probatório “normal” (estático) do ente público tomador de serviços – e não um encargo decorrente da inversão do ônus da prova – é, ainda, um aspecto relevantíssimo, haja vista que evita maiores controvérsias e alegações em torno da temática ao longo do processo.

Analisemos agora como a questão tem sido tratada pela jurisprudência.

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Sobre o autor
Charles da Costa Bruxel

Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Mestre em Direito na área de concentração de Constituição, Sociedade e Pensamento Jurídico pela Universidade Federal do Ceará (2021). Especialista em Direito Processual Civil pela Damásio Educacional (2018). Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Gama Filho (2013). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2016). Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Ceará (2011). Analista Judiciário - Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (CE), exercendo atualmente a função de Assistente em Gabinete de Desembargador. Explora pesquisas principalmente o Direito Processual do Trabalho, Direito do Trabalho, Direito Processual Civil e Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRUXEL, Charles Costa. A responsabilidade subsidiária da administração pública tomadora de serviços, a ADC 16, o STF, o TST e o ônus da prova: Afinal de contas, o ônus de provar a (ir)regularidade da fiscalização e da contratação é do reclamante ou do ente público?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4933, 2 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51484. Acesso em: 19 abr. 2024.

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