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O poder de polícia (ou limitação administrativa à liberdade e à propriedade) como instrumento de desenvolvimento econômico e social

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26/10/2016 às 12:10
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Estuda-se a natureza jurídica dos conselhos de fiscalização profissional, o regime aplicável aos seus empregados, bem como o papel do poder de polícia exercido por essas autarquias.

Resumo: O presente artigo pretende trazer à lume algumas reflexões sobre a real natureza jurídica, o regime aplicável aos empregados dos Conselhos de Fiscalização Profissional, bem como o papel do Poder de Polícia exercido pelas autarquias de fiscalização como meio para a consecução do desenvolvimento nacional.

Palavras-chave: Conselho de Fiscalização Profissional. Poder de Polícia. Instrumento de Desenvolvimento.

Sumário: 1. Introito. 2. Natureza Jurídica dos Conselhos de Fiscalização Profissional. 3. Regime Jurídico Aplicável aos Conselhos de Fiscalização Profissional. 4. O Poder de Polícia como instrumento de desenvolvimento social e econômico. 5. Conclusão.


1.  INTROITO

Hodiernamente o País se encontra em um momento de análise sobre as consequências deletérias do desempenho econômico nacional[1], cuja expectativa é de retração de 2,5% em 2016, segundo o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento. Neste cenário, considerando a importância do Poder Público como instrumento de desenvolvimento nacional, o estudo sobre seu papel como fomentador das práticas econômicas se mostra de grande importância.

Jurgen Habermas, em uma de suas obras, procurou analisar textos a partir dos contextos históricos[2] em que foram escritos. A partir disso, e sem nenhuma pretensão de nos igualarmos ao grande filósofo, nos surgiu a reflexão sobre o momento em que nossa economia se encontra e as possíveis perspectivas para seu alavancamento.

Neste diapasão, o presente estudo tem por escopo trazer uma reflexão sobre o desempenho dos Conselhos de Fiscalização Profissional enquanto instrumentos de intervenção do Estado para o adequado desenvolvimento econômico e social.

A despeito da redução intervencionista do Estado na economia, ocorrida em meados do século XX, sob o amparo das aspirações libertárias, ainda foram percebidas benesses resultantes da expansão da regulação pormenorizada das regras de produção e prestação de serviços, principalmente após a reforma da Gestão Pública iniciada pelo então Ministro Bresser Pereira em 1995.

Atualmente, quase um século depois, ainda se faz necessária a atuação, direta[3] ou indireta[4] do Estado, conforme determina a Constituição Federal, em todas as áreas da sociedade, por meio de seus órgãos ou entidades públicas.

Neste contexto, dentre os instrumentos adequados ao exercício dessa regulação/interferência estatal, estão os Conselhos de Fiscalização Profissional, que atuam como ferramentas de ordenação, cujas naturezas jurídicas são de autarquia federal, e têm por objetivo intervir, organizar ou limitar a atividade dos particulares em prol da sociedade, consagrando a denominada regulação social[5], por intermédio do Poder de Polícia.

O Poder de Polícia está previsto no artigo 78 do Código Tributário Nacional da seguinte forma, in verbis:

“Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.”

Destacamos que a doutrina mais recente demonstra a impropriedade do termo “Poder de Polícia”, preferindo denominá-lo “limitação administrativa à liberdade e à propriedade”[6], consoante se extrai dos ensinamentos de Agustín Gordillo:

“Por de pronto, es de recordar que el aditamento ‘poder’ es inexacto, por cuanto el poder estatal es uno solo, y ya se vio que la llamada divisíon de tres ‘poderes’, por un lado, em una divisíon de ‘funciones’ (funciones legislativa, administrativa, jurisdicional), y por el outro en una separación de órganos (órganos legislativo, administrativo y jurisdicional). En tal sentido, la polícia o el ‘poder de polícia’ no son órganos del Estado, sino uma facultad o más bien una parte de alguma de las funciones mencionadas”[7]

Não obstante, a despeito da divergência sobre o termo correto a ser empregado, e com o escopo de facilitar a compreensão do texto, adotaremos a expressão “poder de polícia” para demonstrar sua importância como fator de desenvolvimento nacional.


2. NATUREZA JURÍDICA DOS CONSELHOS DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL

Em que pese muitos Conselhos de Fiscalização Profissional terem sido criados antes do advento da Carta Magna de 1988, sua natureza autárquica exige que isso ocorra exclusivamente por meio de lei[8], em atenção ao artigo 37, inciso XIX, cujo teor dispõe:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(...)

XIX - somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação;”

Neste ponto, muito se discutiu sobre a natureza jurídica dos referidos entes com o advento da Lei nº 9.649/1998, cujo artigo 58 imprimiu às autarquias fiscalizadoras do exercício da profissão, o status de pessoa jurídica de direito privado. No entanto, colocando fim à discussão, de maneira acertada, o Colendo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.717-6 entendeu ser indelegável a um ente privado a possiblidade de exercício do poder de polícia, a tributação (cobrança de anuidades) e a punição de profissionais, declarando, por via de consequência, a inconstitucionalidade do mencionado dispositivo.

Os votos prolatados na mencionada ADI foram elucidativos, mas entendemos que algumas outras questões devem também ser abordadas a fim de se consolidar a indelegabilidade do poder de polícia a pessoas jurídicas de direito privado por duas razões: a uma, o artigo 174 da Constituição Cidadã é expresso em dispor que “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei,” a função de fiscalização, ou seja, dispõe que a atividade de fiscalização é sua, impondo, por via de consequência, o influxo das normas de direito público, as quais lhe outorgam a posição de autoridade em suas relações jurídicas[9]; a duas, porque algumas funções estatais estão intimamente a ele imbricadas, conforme registra com hialina clareza o insigne Norberto Bobbio, nos idos de 1977, em um jornal italiano, ad litteram:

“Quem já teve uma certa familiaridade com a história da formação do Estado moderno ou do Estado tout court (se entendermos por ‘Estado’ o conjunto de aparelhos que caracterizam os ordenamentos políticos nascidos da dissolução da sociedade medieval) sabe que os poderes principais dos novos ordenamentos políticos que fazem deles um Estado no sentido moderno da palavra são o poder coercitivo, que exige o monopólio da força física, considerado, de Hobbes a Max Weber, como o caráter fundamental do Estado, o poder jurisdicional (não apenas o poder de fazer leis, pelo fato de as normas jurídicas poderem ser produzidas quer pelo costume quer pelos próprios juristas, mas o de aplicá-las, ou seja, o poder de julgar a razão e a sem-razão, o justo e o injusto) e o poder de impor tributos, sem os quais o Estado não pode desenvolver nenhuma de suas funções essenciais. O Estado tem esses poderes porque é indispensável que ele desenvolva certas funções. E as funções que correspondem a tais poderes são as funções mínimas do Estado, quer dizer, as funções sem as quais o Estado não será mais Estado. Todas as outras funções que o Estado moderno se tem atribuído, desde a função de providenciar o ensino até a função assistencial, caracterizam o Estado não enquanto tal, mas certos tipos de Estado.[10]”

Por conseguinte, pode-se aplicar o conceito de autorregulação pública[11]:, do eminente Professor Português Vital Moreira, aos Conselhos de Fiscalização Profissional:

A auto-regulação pública é aquela protagonizada por organismos profissionais ou de representação profissional dotados de estatuto jurídico-público. A auto-regulação é legalmente estabelecida: os organismos auto-regulatórios dispõem de poderes típicos das autoridades públicas. As normas de regulação profissional são para todos os efeitos normas jurídicas dotadas de coercibilidade.

A auto-regulação pública pode resultar de dois movimentos totalmente distintos. De um lado, pode ser consequência da publicização de formas de auto-regulação privada preexistente; do outro lado, pode resultar da entrega de funções reguladoras originariamente estaduais a organismos de auto-regulação propositadamente criados para o efeito.

Nos sistemas de direito administrativo continental, o exemplo mais típico de auto-regulação profissional é a das ordens profissionais que são organismos de regulação das chamadas profissões liberais. O seu nome e número varia de país para país. Mas, para além dessas diferenças, subsiste um conjunto de características comuns essenciais: a natureza jurídico-pública, como ‘corporações públicas’ (exceptuado o caso controvertido da França); a filiação obrigatória, como condição do exercício da profissão; o poder regulamentar; a regulamentação e/ou implementação das regras de acesso à profissão e do exercício desta; a formulação e/ou aplicação dos códigos de deontologia profissional; o exercício da disciplina profissional, mediante aplicação de sanções, que podem ir até a expulsão, com a consequente interdição do exercício profissional.”


3.REGIME JURÍDICO APLICÁVEL AOS CONSELHOS DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL

Importa ressaltar que, na referida ação (ADI nº 1.717-6), outros aspectos não foram analisados por questões prejudiciais, como por exemplo o regime jurídico de seus empregados. Assim, manteve-se a aplicação da Consolidação das Leis do Trabalho, nos termos do §9º do artigo 58 da Lei nº 9.649/98, porquanto à época houve a promulgação da Emenda Constitucional nº 19/98, a qual permitiu a contratação de servidores tanto sob a forma de cargo quanto de emprego público[12].

Não obstante, no ano de 2007 o Colendo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.135-4, concedeu medida cautelar para suspender a eficácia do artigo 39 da Constituição Federal, com efeitos ex nunc, em virtude da ausência de aprovação da proposta de emenda constitucional tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal em dois turnos de votações, com a aprovação de pelo menos 3/5 dos parlamentares em cada uma das casas.

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Ato contínuo, foi retomada a discussão sobre a aplicação do Regime Jurídico Único (Lei nº 8.112/90) aos empregados dos Conselhos de Fiscalização Profissional, sempre observando o marco temporal das contratações (antes ou após a decisão prolatada na ADI nº 2.135, em sede de medida cautelar), conforme se pode extrair dos arestos abaixo transcritos:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSELHO DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL. NATUREZA JURÍDICA DA AUTARQUIA. FISCALIZAÇÃO. ATIVIDADE TÍPICA DE ESTADO. ESTABILIDADE DO SERVIDOR. APLICABILIDADE DO ARTIGO 19 DO ADCT. REINTEGRAÇÃO NO CARGO. RECURSO CONTRA ACÓRDÃO DO STJ. CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL SURGIDA NA INSTÂNCIA ORDINÁRIA. INADMISSIBILIDADE DO RE.

1. O recurso extraordinário contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça proferido em recurso especial só é cabível quando a questão constitucional objeto da controvérsia for diversa da decidida pela instância ordinária. Nesses casos, só é admissível o apelo extremo que a suposta violação constitucional tiver sido, originariamente, apreciada pela Corte Especial. Precedentes: RE 750.300-ED, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 6/9/2013, ARE 644.906-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe de 12/4/2012.

2. In casu, o acórdão extraordinariamente recorrido assentou: "ADMINISTRATIVO. CONSELHO DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL. REGIME JURÍDICO. OBSERVÂNCIA DA LEI DE REGÊNCIA EM CADA PERÍODO. RECORRENTE CONTRATADA EM 7.11.1975 E DEMITIDA EM 2.01.2007. VIGÊNCIA DA LEI Nº 9.649/98, ART. 58, PARÁGRAFO 3º. REGIME CELETISTA. DESNECESSIDADE DE PRÉVIO PROCESSO ADMINISTRATIVO. DECISÃO DO STF NA ADI Nº 2.135-MC COM EFEITOS EX NUNC. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.”

3. Agravo regimental DESPROVIDO.

(Agravo.Regimental no Recurso Extraordinário 704386, Relator Ministro. Luiz Fux, j.  23/09/2014, Primeira Turma, DJe 20-10-2014)

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SERVIDORES DE CONSELHOS DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL. SUBMISSÃO AO DISPOSTO NA LEI Nº 8.112/90, EM RAZÃO DA NORMA DO ART. 39, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, EM SUA REDAÇÃO ORIGINAL. PRECEDENTES.1. Ao servidor de órgão de fiscalização profissional admitido ainda na década de 50 é de ser reconhecido o direito de aposentar-se nos termos da Lei nº 8.112/90, em razão do disposto no art. 39 da Constituição Federal, em sua redação original.

(...)

3. Agravo regimental não provido.”

(Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 549211, Relator Ministro. Dias Toffoli, j. 10/04/2012, Primeira Turma, DJe 10-05-2012)

Com a devida vênia ao entendimento do C. Supremo Tribunal Federal nos arestos acima destacados, partilhamos da compreensão de que a aplicação da Lei nº 8.112/90 às autarquias fiscalizadoras das profissões não é juridicamente possível por enquanto, pois, consoante escólio do eminente Professor Carlos Ari Sundfeld[13], existem duas realidades distintas, muitas vezes esquecidas, quais sejam, a natureza pública, de um lado, e a estatal burocrática de outro.

Sob o pálio desta argumentação, não se está a afirmar a imunidade às normas de direito público, como a obrigatoriedade de licitar a aquisição de bens e serviços, a submissão à fiscalização do Tribunal de Contas da União[14] e a realização de concurso público para a contratação de seus empregados[15], mas sim que as entidades de fiscalização profissional possuem personalidade de direito público, mas estão apartadas da estrutura burocrática estatal[16].

Necessário enfatizar que a reflexão aqui exposta não busca defender a natureza não estatal das autarquias fiscalizadoras de profissões regulamentadas, mas tão-somente a inexistência da supervisão ministerial, porquanto verifica-se que desde o advento do Decreto-Lei nº 968/69, os Conselhos Profissionais possuem características distintas das autarquias federais:

"Art. 1º As entidades criadas por lei com atribuições de fiscalização do exercício de profissões liberais que sejam mantidas com recursos próprios e não recebam subvenções ou transferências à conta do orçamento da União, regular-se-ão pela respectiva legislação específica, não se lhes aplicando as normas legais sobre pessoal e demais disposições de caráter-geral, relativas à administração interna das autarquias federais.

Parágrafo único. As entidades de que trata este artigo estão sujeitas à supervisão ministerial prevista nos artigos 19 e 26 do Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, restrita à verificação da efetiva realização dos correspondentes objetivos legais de interesse público." (parágrafo revogado pelo Decreto nº 2.299, de 1986)

A exegese do dispositivo permite concluir que não se lhes aplicam as normas legais sobre pessoal e demais disposições de caráter geral, relativas à administração interna das autarquias federais.

Diante disso, dessume-se que a edição do Decreto-Lei nº 968, de 1967, e do Decreto-Lei nº 2.299, de 1986, promoveram gradativa exclusão dos Conselhos de Fiscalização Profissional da administração pública indireta a que alude o Decreto-Lei nº 200, de 1967.

Carlos Ari Sundfeld enumera alguns exemplos que demonstram a separação de tais entes da estrutura estatal, ipsis litteris:

“Uma das mais relevantes diz respeito ao sistema concebido para a escolha dos dirigentes. Não há qualquer participação do Estado na definição dos membros que irão compor a direção desses organismos de fiscalização profissional. A escolha é, por definição legal, atribuída à própria categoria a ser regulada e deve recair, necessariamente sobre seus membros. Ao contrário do que ocorre na Administração Indireta, o Estado (seja Executivo ou Legislativo) não interfere na indicação dos dirigentes. Não existe, também, qualquer mecanismo que permita à Administração centralizada destituir esses dirigentes. Há, portanto, completa independência funcional em relação à Administração Pública.

Outra característica marcante da autonomia das corporações de fiscalização profissional envolve suas receitas. Há previsão legal instituindo a cobrança de anuidade dos profissionais em favor da entidade. É comum, inclusive, a previsão expressa do direito dessas entidades se valerem do processo de execução fiscal para viabilizar a cobrança de tais valores. Tais características fazem com que essas receitas sejam consideradas públicas.

Todavia, o fato de parte das receitas das entidades de fiscalização ser considerada pública não identifica plenamente seu regime jurídico com o aplicável às receitas de entidades que integram a Administração. Os entes corporativos fazem jus apenas a esse tipo de receita pública, cuja incidência se restringe aos membros da própria corporação. Os entes que compõem a Administração Pública, além das receitas autônomas que lhes sejam atribuídas especificamente pela lei de criação, podem ainda contar, a cada ano, com destinação de recursos provindos das diversas fontes arrecadadoras do Estado (inclusive derivadas de impostos). Basta que, para tanto, haja previsão na lei orçamentária. Nada disso se concebe em relação às entidades corporativas de fiscalização profissional. Não há destinação de recursos de origem estatal a tais entidades. Essas entidades, noutras palavras, não dependem do orçamento público. Aliás, suas receitas e despesas não são inseridas na lei orçamentária anual, como são as referentes às entidades que integram a Administração direta ou autárquica.

(...)

Todas essas diferenças de regime jurídico retratam uma realidade que o mero senso comum já identifica. Quem se depara com uma entidade de fiscalização profissional (OAB, CRM, CREA, CRF etc.) não reconhece nelas a figura do Estado e sim a de uma corporação incumbida da regulação respectiva categoria profissional. Ou seja, a OAB não é confundida com o Estado, nela se enxerga uma entidade que congrega os responsáveis pela regulação do exercício da advocacia; (...) o CRF, os farmacêuticos; e assim por diante. Não se constata perfil de órgão estatal, identificado com a Administração Pública, em qualquer desses entes.[17]

Por conseguinte, dessume-se que os Conselhos de Fiscalização Profissional são entes públicos, mas não integram totalmente a estrutura da Administração Pública Federal, na medida em que ausente supervisão ministerial, além da distância de qualquer semelhança com, por exemplo, as autarquias de regime especial, denominadas “agências reguladoras”, cujos Diretores são nomeados pelo Chefe do Poder Executivo, e os cargos são criados por lei.

A corroborar a natureza sui generis dos Conselhos de Fiscalização Profissional, mister ressaltar que, nos termos do artigo 61, §1, inciso II, da Lex Legum, a criação de cargos e empregos públicos na Administração direta e autárquica, por meio de lei, é de iniciativa privativa do Presidente da República.

No mesmo diapasão é a lição do ilustre Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, ad litteram:

“Cargos são as mais simples e indivisíveis unidades de competência a serem expressadas por um agente, previstas em número certo, com denominação própria, retribuídas por pessoas jurídicas de Direito Público e criadas por lei, salvo quando concernentes aos serviços auxiliares do Legislativo, caso em que se criam por resolução da Câmara ou do Senado, conforme se trate de serviços de uma ou outra destas Casas.[18]”

Não obstante, não há e nunca houve nenhuma lei disciplinando a criação de cargos públicos nas entidades de fiscalização do exercício profissional, à semelhança, portanto, dos empregos públicos nas empresas públicas e sociedades de economia mista, que ocorrem por ato administrativo da entidade, vigorando a livre criação.

Ademais, impende esclarecer que os empregos nos Conselhos de Fiscalização Profissional (regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho), tais como os das empresas públicas e sociedades de economia mista, não possuem lei dispondo sobre sua criação e muito menos as atribuições, ou seja, não são cargos públicos criados pela lei, o que é exigido para aplicação do Regime Jurídico Único previsto na Lei nº 8.112/90, consoante inteligência extraída de seu artigo 3º, parágrafo único, ipsis litteris:

“Art. 3. Cargo público é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor.

Parágrafo único. Os cargos públicos, acessíveis a todos os brasileiros, são criados por lei, com denominação própria e vencimento pago pelos cofres públicos, para provimento em caráter efetivo ou em comissão.”

Corroborando toda a argumentação exposta, enfatizamos o posicionamento da Procuradoria Geral da República que, inclusive, ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 367, requerendo ao Supremo Tribunal Federal a aprovação de leis estruturando os cargos nas autarquias fiscalizadoras[19].

Destarte, diante de tudo o que anteriormente expomos, conclui-se ser inaplicável, até o presente momento, o Regime Jurídico Único da Administração Federal aos empregados dos Conselhos de Fiscalização Profissional.

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Sobre o autor
Roberto Tadao Magami Junior

Advogado. Especialista em Direito Público. Mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGAMI JUNIOR, Roberto Tadao. O poder de polícia (ou limitação administrativa à liberdade e à propriedade) como instrumento de desenvolvimento econômico e social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4865, 26 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51676. Acesso em: 23 abr. 2024.

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