3 FLEXIBILIZAÇÃO DE DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
3.1 DIFERENÇA ENTRE FLEXIBILIZAÇÃO E SUPRESSÃO
Já foi dito que os direitos e garantias individuais são conquistas adquiridas com muito esforço, resistência e mártires. Daí porque qualquer alteração no sentido de minimizar essas conquistas causarem enormes debates e resistências. Não olvidemos que o Direito, como ciência que é, acompanha a evolução da sociedade, com o fim maior que é o equilíbrio social em detrimento dos conflitos oriundos pela vida no contexto social. A eficácia ou não do Direito posto deixemos para o campo da sociologia, cumprindo entendermos que um tipo penal nasce para coibir determinada conduta não tolerada pela sociedade e que mereça a tutela do direito penal – última ratio.
A partir do momento que direitos e garantias não se prestam mais ao fim originariamente proposto, cabe sua reanálise.
Contudo, não confundamos flexibilização com supressão, aquela segue no sentido de diminuição de algo, temporária ou definitivamente, já a supressão nada mais é que a extinção, a retirada de uma realidade atual.
A flexibilização de um direito ou garantia seria uma menor incidência em favor de determinada pessoa que se insere em circunstância predeterminada. Vejamos como exemplo o prazo para conclusão do inquérito policial quando o indivíduo estiver preso, que é de 10 (dez) dias, segundo o que preconiza o art. 10, do CPP: “o inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela”.
O texto é expresso em determinar que o prazo de conclusão do inquérito é de 10 (dez) dias se o indiciado estiver preso. Caso a prisão ultrapasse o prazo pré-estabelecido, sem que haja a conversão em prisão preventiva, cabe a incidência de uma garantia para assegurar o direito de liberdade de locomoção, garantia prevista no art. 5°, LXVIII, da CF/88 – “conceder-se-á ‘habeas-corpus’ sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
Por sua vez, a Lei n°. 11.343/06 (lei de drogas) possui prazo diferenciado do previsto no Código de Processo Penal, sendo de 30 dias o prazo para conclusão do inquérito policial caso o indiciado esteja preso. Vejamos a redação do art. 51 da referida lei: “o inquérito policial será concluído no prazo de 30 (trinta) dias, se o indiciado estiver preso, e de 90 (noventa) dias, quando solto”.
Na comparação entre os prazos constantes no CPP e na Lei n°. 11.343/06, resta claro que houve uma flexibilização do direito do indiciado responder em liberdade. O prazo ordinário de 10 (dez) dias para a conclusão do inquérito policial quando o indiciado estiver preso foi elastecido, por força da lei de drogas, em detrimento do indiciado por suposta prática de condutas específicas, inseridas na Lei n°. 11.343/06.
3.2 DIFERENÇA ENTRE FLEXIBILIZAÇÃO LEGAL E FLEXIBILIZAÇÃO CASUÍSTICA
A flexibilização de direitos e garantias - tomando-se por base a sistemática jurídica brasileira, que tem como Lei Maior a Constituição Federal - deve ter previsão legal (leia-se: deve ter sido aprovada pelo Poder Legislativo, já que se trata de matéria processual – art. 22, da CF/88). Não podendo o órgão julgador, segundo sua consciência, sem qualquer amparo legal, reduzir ou suprimir direitos e garantias assegurados em lei.
Como já foi dito anteriormente, o Direito evolui de acordo com as mudanças da sociedade. Caso um direito e garantia esteja em confronto com a finalidade de todo um ordenamento jurídico, não há razão para a sua aplicação, podendo ser mitigada (flexibilizada) em face de outro direito ou de outra garantia de mesmo patamar constitucional, desde que seguida as regras legais.
O princípio da legalidade é um dos pilares que sustentam todo o conjunto normativo pátrio, previsto na CF/88, no art. 5°, II, como a seguinte redação: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Por força do mencionado princípio, entendemos não ser possível uma flexibilização de direitos e garantias sem a edição de uma lei, como exigido no art. 5°, II, da Constituição Federal.
A flexibilização casuística segue entendimento oposto ao da flexibilização legal, sendo aquela sem amparo legal e sem respeito ao princípio da legalidade. Algo incompatível à luz da Constituição.
Por sua vez, a extinção seria a supressão de um direito ou de uma garantia do próprio ordenamento.
3.3 (IM)POSSIBILIDADE DE FLEXIBILIZAÇÃO DE DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NO PROCESSO PENAL À LUZ DA CF/88
Não há direito absoluto, ou seja, que não possa sofrer ponderação em face de outro de mesma importância. A flexibilização de um direito ou garantia, desde que respeitado o princípio da legalidade, é possível. Existe forte tendência de se resistir a uma mínima proposta de flexibilização, surgindo, de imediato, vozes equiparando tais medidas ao direito penal do inimigo. Contudo, não caminhamos nesse sentido. Perfilhamos a doutrina de que direitos e garantias individuais não podem ser suprimidas, mas flexibilizadas em favor de interesses tão importantes quanto.
O art. 60, §4, IV, da CF/88, tem o seguinte texto:
A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
(...)
IV - os direitos e garantias individuais
Como se pode notar, os direitos e garantias individuais receberam tratamento de excelência pelo texto constitucional, elevando-os ao status de cláusula pétrea. O que não significa aplicação absoluta. Um exemplo bastante esclarecedor da possibilidade de flexibilização legal de um direito individual é o previsto no art. 53, da Lei n°. 7.210/84 (lei de execuções penais), que prevê dentre as sanções disciplinares o isolamento do preso, que significa restrições de, por exemplo, não receber visitas durante o período da sanção. Por outro lado, a CF/88, no art. 5°, LXIII, descreve que é direito do preso a assistência da família. O direito do preso de ser assistido por sua respectiva família foi flexibilizado pela restrição de visitas durante o período que o preso estiver cumprindo sanção de isolamento, nos termos do art. 53, da Lei de Execuções Penais.
Percebamos que o direito de assistência da família inclui o de ser visitado por esta. Percebamos ainda que, no cumprimento de sanção por falta disciplinar, o preso fica temporariamente sem direito às visitas, não há aqui uma supressão do direito individual de assistência pela família, prevista no art. 5°, LXIII, da CF/88, mas uma flexibilização de tal direito.
Corroborando o inicialmente exposto neste subitem, entendemos perfeitamente possível a flexibilização de direitos e garantias individuais, desde que em respeito ao o sistema constitucional e sob o fundamento de que não há direito ou garantia absoluto.
4 A FLEXIBILIZAÇÃO DE DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NO PROCESSO PENAL CARACTERIZA PROCESSO PENAL DO INIMIGO?
A tese do professor alemão Günther Jakobs e seus respectivos desdobramentos, assim como a flexibilização de direitos e garantias individuais, foram assuntos minuciosamente tratados no presente trabalho. Não por acaso. Mas com uma questão bem definida: a flexibilização de direitos e garantias individuais no processo penal caracterizaria um direito processual penal do inimigo?
Já abordamos e comprovamos a importância dos direitos e garantias individuais frente ao poder/dever de punir do Estado. Tratam-se de conquistas conseguidas com demasiado esforço da sociedade e, inclusive, com a vida de mártires. Porém, reitere-se, não são direitos e garantias absolutos. O ordenamento jurídico é um todo sistematicamente harmonizado com uma finalidade: o de possibilitar a vida em sociedade, impondo direitos e deveres aos cidadãos. Os direitos e garantias individuais não se elevam em importância em face do direito coletivo, possuindo ambos a mesma importância.
Os direitos e garantias, sejam individuais, sejam coletivos, devem coexistir, podendo haver uma ponderação dos bens jurídicos, de modo que não haja um total sacrifício de um ou de outro.
Os direitos e garantias individuais possuem suma importância, sobretudo para aquele que se encontra encarcerado. Porém, tais direitos e garantias encontram limites em outros direitos e garantias de mesma importância. Nesse momento, oportuno se faz as lúcidas lições de Alexandre de Moraes, contida na sua obra já mencionada no presente trabalho. Vejamos os ensinamentos do eminente doutrinador:
“Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).
Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se de princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua”.[xiv]
A flexibilização de um direito ou garantia individual não caracteriza necessariamente um retrocesso, deve-se analisar o contexto social em que se dá tal flexibilização. Conforme o já exposto alhures, o direito evolui acompanhando a evolução da sociedade. Não foram poucas as vezes em que a humanidade experimentou momentos de instabilidade político-social, que geraram repercussões na forma de agir dos cidadãos. O direito penal, como ramo do direito que possui sanções mais drásticas a um indivíduo, tem atuação em última alternativa, quando outros ramos não são suficientes para dirimir os conflitos que se apresentam.
A legislação em matéria penal/processual penal requer uma reflexão por parte do legislador de intensa dedicação, sob pena de se agravar uma situação existente.
O direito penal/processual penal está longe de ser a solução eficaz frente aos delitos que são praticados diariamente, mas sim, um “mal” necessário. “Mal”, pelo fato de inexistir sentimento de satisfação em encarcerar um indivíduo pela prática de um delito. A restrição da liberdade de um indivíduo que venha a praticar um crime gera consequências para a própria sociedade, pois, na maioria dos casos, trata-se de um cidadão(ã) que possui uma família; família que sofre o abalo com a prisão de um de seus membros, o que pode gerar verdadeiro desequilíbrio no núcleo familiar. Lembremos que uma sociedade é composta por famílias.
O direito penal/processual penal brasileiro tem experimentado possibilidades de sanções diversas da prisão, sobretudo com a edição da Lei n°. 9.099/95 (lei dos juizados especiais), reservando o encarceramento, seja a prisão pena, seja a prisão cautelar (processual), para casos excepcionais.
O sonho de uma sociedade justa, igualitária e com baixo grau de criminalidade sempre será buscado pela coletividade. Todavia, a realidade, mormente a brasileira, mostra-se bem distante da sociedade que desejamos. A nação brasileira tem vivenciado crescente aumento da criminalidade nas últimas décadas, que evolui a cada dia, desafiando os governantes e parlamentares. Aqueles em planos de segurança e combate efetivo, os últimos em elaborar tipos penais e agravar penas. Medidas que nem sempre surtem o efeito esperado, continuando a sociedade amedrontada, fazendo de suas residências verdadeiros refúgios, cercados por grades e demais instrumentos de proteção contra a forte atuação criminosa.
No apogeu da criminalidade estão as organizações criminosas, que se estruturam com base numa hierarquia própria, trilhando uma realidade paralela da qual está inserida a sociedade. As organizações criminosas de maior destaque no cenário nacional e geradoras de maior preocupação para os governos em âmbito nacional e estadual são o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho. A primeira de origem paulista, a segunda, carioca. Tais organizações cresceram de tal forma que suas atuações ultrapassaram as fronteiras dos respectivos estados de origem.
No caso do estado do Rio de Janeiro, o Comando Vermelho é quem dita as regras em determinadas localidades, ficando o Estado sem atuação, sobretudo, quando se trata de segurança pública. São verdadeiros territórios dominados pelo crime, onde a circulação de armas e drogas é fato ordinário, e as sanções por condutas contrárias à vontade imposta pela organização criminosa resumem-se a execuções sumárias.
Numa tentativa de mudar tal realidade, principalmente pelos eventos como copa do mundo e olimpíadas, que o Brasil sediará em 2014 e 2016, respectivamente, o Estado do Rio de Janeiro tem adotado medidas de segurança pública de recuperação de territórios, até então dominados por organizações criminosas. Medidas que tem como maior destaque as Unidades de Polícia Pacificadora – UPP.
No Estado de São Paulo, a realidade da atuação do crime não é diferente. Com a atuação da maior organização criminosa do país, o PCC, o Estado tem encontrado, há décadas, dificuldades extremas de controle da atuação da referida organização. Não poucas vezes, o Estado tem “ficado de joelhos” frente às ações da organização. No ano de 2006, o PCC gerou uma sensação de descontrole e terror no estado de São Paulo. Conforme dados do jornal O Estado de São Paulo[xv] - O Estadão -, baseados num relatório desenvolvido pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de janeiro, entre 12 e 21 de maio, cerca de 564 pessoas foram mortas por armas de fogo. No mesmo ano, inúmeros ataques foram registrados, cujos principais alvos eram ônibus, delegacias, agentes de segurança pública e prédios públicos. Quiçá, o ano de 2006, tenha sido o de maior afronta do PCC em face do Estado. A força da referida organização criminosa tem sido mostrada com certa frequência, bastando para sua aparição, uma intensificação do combate por parte das forças de segurança pública. No ano de 2012, segundo notícias do jornal O Estado de São Paulo[xvi], em 11 (onze) meses, 106 (cento e seis) policiais foram mortos, supostamente, a maioria por ordens da cúpula do PCC.
Como se percebe, tais organizações criminosas recusam qualquer submissão à ordem constitucional, reagindo com extrema violência às tentativas do Estado em combater o crime organizado. Segundo a tese de Jakobs, seria o caso de aplicação de um direito penal/processual penal específico para os integrantes de tais organizações, já que se tratam de indivíduos que não aceitam as regras legais impostas pelo Estado e impõem uma realidade diversa da legalmente constituída, além de atacarem a própria existência do Estado.
Contudo, a sistemática jurídica pátria, que tem como lei maior a Constituição Federal, não permite a adoção de um direito penal/processual penal do inimigo, o que não significa, registre-se, a impossibilidade de medidas legislativas mais rígidas no combate ao crime organizado. Medidas como as que já foram analisadas, a exemplo das leis de números 12.850/13 (lei trata do crime organizado), 11.343/11 (lei de drogas), 7.960/89 (prisão temporária), 8.072/90 (crimes hediondos), dentre outras.
Um tratamento penal/processual penal mais rigoroso não significa a adoção de um direito penal/processual penal do inimigo. Este é um direito mais evidente; significa a existência de um ordenamento repressivo diferenciado para os intitulados como inimigos.
Um prazo mais dilatado para a prisão temporária de um indivíduo que pratica uma conduta, por exemplo, prevista no art. 33 da Lei de drogas, não pode ser inserido como exemplo de resquício da tese de Jakobs, até porque, qualquer indivíduo que cometa a conduta prevista no art. 33, da lei de drogas, estará sujeito a uma prisão temporária de 30 (trinta) dias.
A flexibilização de um direito ou garantia individual no processo penal, por meio de uma lei editada pelo órgão competente – o que, na realidade brasileira seria o poder legislativo federal -, é medida possível e legal à luz da Constituição, não podendo haver, sob pena de violação à clausula pétrea (art. 60, § 4°, IV, da CF/88), a supressão de um direito ou garantia individual. Flexibilização, como já foi objeto de análise neste trabalho, não se confunde com supressão. Significa uma restrição de um direito ou garantia pré-existente em favor de um direito maior, preponderante.
Um direito ou garantia individual encontra limite num outro direito ou garantia.
Um exemplo de flexibilização de um direito individual que poderia existir sem que houvesse afronta à Constituição Federal seria a possibilidade de ocultação da identidade física e de dados pessoais daquelas pessoas que sejam arroladas como testemunhas contra organizações criminosas. O art. 217 do CPP prevê a possibilidade da retirada do réu da presença da testemunha, durante a inquirição desta, quando a presença daquele, causar humilhação, temor, ou sério constrangimento, desde que não seja possível a inquirição por vídeo conferência. Vejamos o dispositivo, ipisis litteris:
“Art. 217, CPP. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor”.
Quando os réus forem membros de organizações criminosas, fato constatado ao longo da persecução penal, a periculosidade é presumida. Não há dúvidas do risco de morte que pessoas são submetidas quando arroladas como testemunhas contra tais organizações. Não é incomum a “queima de arquivo”, que nada mais é que a destruição de tudo que sirva como meio de prova, inclusive a vida de pessoas. Exigir a identificação de tais testemunhas gera duas situações: (i) a testemunha, revestida de coragem excepcional, depõe o que sabe, mesmo sob efetivo risco de morte ou (ii) omite a verdade por compreender as consequências que lhe esperam caso deponha o que sabe. Na maioria dos casos a segunda situação se apresenta.
Não seria nenhuma supressão de garantia ou direito individual a ocultação da identidade daquele que é arrolado como testemunha em tal situação, como é o caso daquele que depõe contra membros de organizações criminosas. De um lado está o direito à ampla defesa e ao contraditório (o conhecimento da identidade física e de dados pessoais da testemunha), do outro, o direito à segurança individual (a ocultação da identidade física e de dados pessoais da testemunha), que, em última análise, é o próprio direito à vida.
Apesar do art. 217, do CPP, prever a possibilidade da retirada do réu, desde que observados os requisitos ali presentes, a inquirição da testemunha será presenciada em qualquer caso pelo o defensor do acusado, o que em termos práticos expõe a testemunha aos mesmos perigos.
No processo penal, o réu defende-se dos fatos a si imputados, de forma que, mesmo diante do não conhecimento da identidade física, nem dos dados pessoais da testemunha que depõe em seu desfavor, o réu tem todo o direito de se defender do depoimento prestado, já que o processo se desenvolve sob o princípio do contraditório – art. 5º, LV, da CF/88.
A privação do réu e de seu respectivo defensor de conhecerem a identidade física e de dados pessoais da testemunha, restaria por destituí-lo do poder de contraditar esta, direito previsto no art. 214 do diploma processual penal, vejamos:
“Art. 214, CPP. Antes de iniciado o depoimento, as partes poderão contraditar a testemunha ou argüir circunstâncias ou defeitos, que a tornem suspeita de parcialidade, ou indigna de fé. O juiz fará consignar a contradita ou argüição e a resposta da testemunha, mas só excluirá a testemunha ou não Ihe deferirá compromisso nos casos previstos nos arts. 207 e 208”.
O afastamento do direito de contraditar a testemunha seria um álibi para aqueles que enxergam numa mínima flexibilização de direitos e garantias individuais a presença do direito penal do inimigo. Todavia, consigne-se que não se estaria privando o réu da ampla defesa e do contraditório, mas apenas mitigando o direito do acusado de ter o conhecimento de dados da testemunha, porém, disponibilizando-o todo o interrogatório, reduzido a termo ou por gravação sonora.
Tal flexibilização - privação do acusado e do seu respectivo defensor do conhecimento da identidade física e de dados pessoais da testemunha – não guarda relação com o direito processual penal do inimigo, apenas medida adotada diante de situações de grande complexidade, como é o caso de um processo penal no qual figuram como réus membros de organizações criminosas. Lembrando sempre que tal flexibilização não pode se dar de forma casuística, puramente discricionária do magistrado, mas, mediante lei.
Diante do exposto, entendemos ser possível uma flexibilização de direitos e garantias individuais no âmbito do processo penal, sem que isto caracterize a presença de um direito processual penal do inimigo.
A flexibilização de um direito ou garantia individual pode ser aceita, sobretudo quando esteja em rota de colisão com outro direito ou garantia de mesmo patamar. Interessante notar que não se trata de uma flexibilização sem fundamento, mas sim em respeito a todo um conjunto normativo.
Na situação hipotética exemplificada alhures, a testemunha que é arrolada para depor sobre fatos que envolvam membros de organizações criminosas, possui o direito individual à segurança pessoal, à preservação de sua integridade física e, em último desdobramento, o direito à vida. Este último, que estaria em sério comprometimento no caso hipotético. Por outro lado, está o direito à ampla defesa e ao contraditório, assegurado ao acusado. Diante do conflito de direitos, o que há é ponderação de valores, de modo que um não suprima totalmente o outro. No caso da testemunha, a exposição de sua identidade significa verdadeira sentença de morte, ou seja, a supressão total do direito à vida. Já o não conhecimento por parte do acusado e de seu respectivo defensor da identidade física e de dados pessoais da testemunha não significa a supressão total do direito à ampla defesa e ao contraditório, mas apenas uma flexibilização de tal direito.
No direito processual penal do inimigo os direitos e garantias são suprimidos, sendo o acusado submetido a um conjunto de regras distinto do qual são submetidos os cidadãos comuns.
No processo penal brasileiro não há regras distintas para cidadãos e inimigos, havendo, sim, flexibilizações em face de acusados que pratiquem determinadas condutas, como são os casos (i) da prisão temporária com prazo maior (30 dias), para aqueles que pratiquem condutas previstas na Lei de drogas, (i) para a progressão de regime para os condenados em crimes hediondos (dois quintos da pena, quando primário e três quintos, quando reincidente), dentre outros.
O que há no âmbito do processo penal pátrio são flexibilizações legais, com base em condutas consideradas de maior reprovabilidade, não importando a origem, classe social, ou modo de vida do acusado.
Desta forma, entendemos existir flexibilizações de direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, sem, contudo, a presença das características da tese do professor alemão Günther Jakobs, relativa ao direito processual penal do inimigo.