2. Alternativas à expansão do Direito Penal
O debate firmado ao longo dos anos a respeito da expansão do Direito penal levou diversos doutrinadores à propositura de eventuais alternativas ao crescimento desordenado dessa área do Direito. Esse trabalho se pauta nas teorias propostas por dois dos principais autores que se dedicaram a essa temática: Silva Sánchez e Hassamer.
A proposta desses autores se aproxima no que diz respeito à necessidade de serem trasladas determinadas condutas, que não tutelem bens jurídicos essenciais, à uma subárea do Direito. Para Silva Sánches, essas condutas deveriam fazer parte de uma subárea do próprio Direito penal, o Direito penal de segunda velocidade. Hassamer, por sua vez, defende a criação de uma área completamente distinta das existentes, o Direito de Intervenção.
Nesse capítulo, serão estudados tais principais teorias, de modo a aclarar o entendimento das propostas de cada um desses autores, para, posteriormente, escolher apenas uma como alternativa ao processo expansionista brasileiro.
2.1. O direito penal de segunda velocidade de Siva Sànchez
Jesús-Maria Silva Sánchez é o desenvolvedor da chamada “Teoria das Velocidades do Direito Penal”. Em sua obra A expansão do Direito penal o autor apresenta uma abordagem sociológica do tema, indicando ainda, uma visão política no que diz respeito aos motivos da expansão.
Ao analisar o Direito penal, Silva Sánchez apresenta os argumentos a respeito da sociedade de risco e da globalização para propor o enfrentamento da criminalidade globalizada.
Logo de início, o autor pontua que existe a possibilidade de expansão razoável do Direito penal, sem descaracterizá-lo como tal. Afirma, porém, que a atual expansão é desmedida.
“O que importa ressaltar neste ponto é apenas que, seguramente, há um espaço de expansão razoável do direito penal. Embora com a mesma convicção próxima a certeza deve-se afirmar que também existem importantes manifestações de expansão irracional.” (SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. 2001, p. 26, tradução nossa)1
A proposta do autor pauta-se na necessidade de haver ritmos de responsabilização criminal diferentes para cada velocidade de direito penal. Essa escala de ritmos consistiria na possibilidade de flexibilização de garantias, com consequente abrandamento das penas.
Haveria, portanto, na hipótese, um núcleo rígido do Direito penal no qual as garantias constitucionais são preservadas e há uma maior formalidade procedimental. Para aqueles tipos constantes desse núcleo persistiria a ameaça da pena privativa de liberdade.
Fora desse núcleo rígido, a segunda velocidade trataria das infrações penais que, em virtude da sua natureza, não se enquadram nas penas privativas de liberdade, havendo substituição por penas restritivas de direito ou pecuniárias. São infrações que não atingem bens jurídicos mais importantes, os tipos penais contemporâneos. A grande maioria dessas condutas é de difícil comprovação, e, por essa razão, deveria ser retirado o rigor das regras de investigação, com maior flexibilidade do processo acusatório.
“Por um lado, certamente, admitir as penas não privativas de liberdade, como mal menor, dadas as circunstâncias, no que diz respeito às infrações em que se tenha flexibilizado os pressupostos de atribuição de responsabilidade. Mas acima de tudo, exigir que onde se impõe penas de prisão, especialmente penas de prisão de grande duração, se mantenha todo o rigor dos pressupostos clássicos de imputação de responsabilidade .” (SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. 2001, p. 157, tradução nossa)2
Em suma, é proposta uma restrição do Direito penal a um núcleo de condutas as quais estão reservadas as penas privativas de liberdade. Em contrapartida, a um outro grupo, a flexibilização das garantias constitucionais e processuais são compensadas pela exclusão das penas privativas de liberdade.
Como bem asseverou Ana Carolina Carlos de Oliveira (2012, p.62), ao citar Sarcedo, Silva Sánchez não se preocupa propriamente com a expansão do Direito penal, e sim com a expansão do Direito penal cominador de pena privativa de liberdade.
Ressalte-se, ainda, que Silva Sánchez propõe que as condutas pertencentes ao Direito penal de segunda velocidade devem ser tratadas como matéria penal, seguindo as regras do processo penal, aplicadas por um juiz de direito. Isso porque, segundo ele, o processo penal possui um potencial estigmatizante que funciona melhor como estratégia de prevenção geral.
Para efetivar sua teoria, Sánchez propõe fragmentar a teoria do delito, modificando princípios do Direito penal, isso facilitaria o manejo das garantias e técnicas de aplicação dos tipos penais pelo aplicador, ao perseguir a criminalidade contemporânea. A esse respeito, Ana Carolina Carlos de Oliveira:
“essa flexibilização pode ser dar, por exemplo, com a ampliação dos deveres de garantia, estendendo a possibilidade de responsabilização por omissão em condutas não previstas pelo direito (como a sempre mencionada responsabilidade por organização, formulada por Jakobs), a diminuição das hipóteses de reconhecimento de erro de tipo e erro de proibição, uma vez que exige do individuo um grau superior de cuidado e informação, de modo a não infringir o princípio da confiança, (esse ultimo entendido como requisito de imputação objetiva formulado também por Jakobs), a ampliação das hipóteses de reconhecimento de autoria, autoria mediata, coautoria, e participação, bem como as crescentes previsões de responsabilidade penal da pessoa jurídica” (OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. 2012, p. 64)
Hassemer, ao contrário, tem a intenção de proteger as estruturas da teoria geral do Direito penal, e, por essa razão, exclui de sua tutela as ações de difícil tratamento dentro do sistema penal tradicional. Além disso, verifica-se que este é resistente à crescente produção legislativa, enquanto Silva Sánchez é propenso ao aumento das normas incriminadoras, como fato irreversível do Direito penal moderno. Passamos, portanto, ao estudo da teoria proposta pelo alemão: o Direito de Intervenção.
2.2 O direito de intervenção de Hassemer
Os membros da “Escola de Frankfurt” são identificados pela preocupação demonstrada em relação ao Direito penal contemporâneo, afirmando que esse Direito penal, fruto da expansão, afrontaria diversos princípios do Estado Democrático de Direito, bem como pela busca de alternativas reducionistas para o controle da criminalidade.
Winfried Hassemer é um dos principais representantes desta escola e, com objetivo de combater a extensão da tutela penal aos novos perigos decorrentes da sociedade de risco, pretende o surgimento de outro ramo jurídico, o Direito de Intervenção. Assim afirmou em uma conferência do IBCCRIM, em 1993:
“O Direito Penal deve voltar ao aspecto central, ao Direito Penal formal, a um campo no qual pode funcionar, que são os bens e direitos individuais, vida, liberdade, propriedade, integridade física, enfim, direitos que podem ser descritos com precisão, cuja lesão pode ser objeto de um processo penal normal. (...) Acredito que é necessário pensarmos em um novo campo do direito que não aplique as pesadas sanções do Direito Penal, sobretudo as sanções de privação de liberdade e que, ao mesmo tempo possa ter garantias menores. Eu vou chamá-lo de Direito de Intervenção.” (HASSEMER, Winfried. 1994, p.49)
A proposta do autor alemão consiste na redução das ramificações do Direito penal, com a consequente descriminalização de condutas, de modo que apenas aquelas que ofereçam lesão, perigo concreto, ou perigo de ofensa evidente, de excepcional gravidade, a bens jurídicos individuais sejam passíveis da tutela penal.
O Direito de Intervenção, por sua vez, tutelaria bens jurídicos supraindividuais em face dos novos riscos tecnológicos. Para tanto, é proposto um modelo processual mais flexível no que tange as regras e garantias processuais, de modo a tornar a investigação mais eficiente.
Para compensar a limitação de direitos sofrida com a flexibilização de garantias, esse ramo novo do Direito não poderia impor ao condenado penas restritivas de liberdade. Como bem elucidou Ana Carolina Carlos de Oliveira:
“Esse direito estaria situado “entre o Direto penal e o administrativo, entre o Direito civil e o Direito público”, com regras e garantias processuais mais flexíveis, com vistas a tornar a investigação mais eficiente, desde que, em contrapartida, deixe-se de prever penas restritivas de liberdade, equilibrando-se garantias com conseqüências penais.” (OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. 2012, p. 46)
Hassemer ainda pontua que, em virtude de não impor penas privativas de liberdade, o Direito de intervenção pode adotar uma atuação preventiva, com medidas que reverteriam ou minimizariam os danos causados por determinadas atividades de risco.
Ainda, em se tratando de Direito de Intervenção seria possível a responsabilização coletiva, com cominação de sanções rigorosas economicamente, vez que dispensados os mecanismos de imputação pessoal típicos do Direito Penal. Conforme resumem Hassemer e Munõz Conde:
“Não se trata de compensar o injusto, e sim de prevenir o dano; não se trata de punir, e sim de controlar; não se trata de retribuir, e sim de assegurar; não se trata do passado, e sim do futuro. 3” (HASSEMER e MUNÕZ CONDE, apud OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. 2012, p.47, tradução nossa)
O principal objetivo de Hassemer é que o Direito penal tutele apenas os tipos tradicionais, de modo a assegurar os princípios constitucionais, desenvolvidos ao longo dos tempos pela teoria do delito. Verifica-se, portanto, uma maior preocupação do doutrinador alemão com o discurso de direito penal mínimo, obrigatório em um Estado Democrático de Direito.
2.3 O direito de intervenção como alternativa ao processo expansionista brasileiro
Conforme abordado nos itens anteriores, no contexto atual, a expansão do ordenamento penal vem acompanhada de uma inflação de normas punitivas em geral.
Nesse sentido, busca-se novas alternativas, como as propostas de Hassemer e Silva Sánchez para esse inchaço do ordenamento criminal. A proposta do espanhol não convence, vez que esse autor preocupa-se apenas com o uso excessivo da pena de prisão, não dando a devida atenção ao ordenamento jurídico penal como um todo.
Para Silva Sànchez deve haver uma preocupação com a crescente criação de tipos puníveis com penas privativas de liberdade, porém, o autor insiste na função de prevenção geral da sanção penal, mantendo condutas menos gravosas sob a tutela criminal, o que não resolve os problemas decorrentes da saturação do ordenamento penal brasileiro.
Hassemer, a seu turno, procura excluir tipos intermediários do Direito penal, buscando socorro em outras áreas jurídicas para combater as condutas que violem bens jurídicos importantes ao convívio social.
Por essa razão, a proposta do doutrinador alemão é mais adequada ao contexto de um Estado Democrático de Direito, respeitado o preceito da mínima intervenção e o caráter subsidiário do Direito Penal.
Miguel Reale Jr., também citado por Ana Carolina Carlos de Oliveira (2012), considera as reflexões de Hassemer como alternativas válidas ao recurso penal, ao sustentar a descriminalização de diversos tipos penais, constituindo o que chamou de Direito penal administrativo, regido por uma lei garantidora de alguns princípios, como o da legalidade e o da não retroatividade.
Nesse sentido, propõe-se uma sistematização do Direito de Intervenção proposto por Hassemer, para uma aplicação prática no Brasil. Para tanto, se faz necessária a estruturação de um sistema preventivo, por meio de imposição de faltas, que utilize-se da conciliação e mediação, e reconheça o esforço do autor para retornar ao status quo anterior ao delito. Tal sistema deve ser apto a prevenir e gerir os riscos, e contar com força sancionatória suficiente para influenciar na prevenção geral de infrações.