O fundamento da soberania e a necessidade da criação do Estado no Jusnaturalismo de Thomas Hobbes

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O presente artigo objetiva explicitar o fundamento da soberania na teoria hobbesiana, ao mesmo passo em que analisa a necessidade da criação do Estado dentro da concepção jusnaturalista.

RESUMO: O presente artigo objetiva explicitar o fundamento da soberania na teoria hobbesiana, ao mesmo passo em que analisa a necessidade da criação do Estado dentro da concepção jusnaturalista. Para tal, foi utilizado o método dedutivo analítico, bem como a pesquisa bibliográfica e revisão teórico com exploração de autores que compartilham da mesma base teórica que Thomas Hobbes. Como fundamentação teórica, busca-se abrigo na tese hobbesiana de que o Estado e a concentração de um poder absoluto e indivisível nas mãos de um soberano se justificam na condição de guerra de todos contra todos, o que Hobbes denominou de “estado de natureza”, uma condição hipotética em que os homens agem egoisticamente em busca de sobrevivência.

Palavras-Chave: Teoria do Estado, Soberania, Thomas Hobbes, Filosofia Política

ABSTRACT: This paper aims to explain the foundation of sovereignty in the Hobbesian theory, the same step in analyzing the need for state creation within the natural law conception. For this, we used the analytical deductive method, as well as literature and theoretical review with exploitation of authors who share the same theoretical basis that Thomas Hobbes. As a theoretical framework, seek shelter in the Hobbesian thesis that the state and the concentration of absolute and undivided power in the hands of a sovereign justified in the condition of war of all against all, what Hobbes called the "state of nature " a hypothetical condition where men act selfishly looking for survival.

Key-Words: State theory , sovereignty , Thomas Hobbes , Political Philosophy

1 Considerações iniciais

A relevância de se resgatar as leituras de Thomas Hobbes no contexto contemporâneo se justifica na forma com que ele tratou a necessidade de um Estado soberano como forma de manter a paz civil. Aos olhos imaturos, esse resgate de Hobbes não é de grande valor. Porém, basta uma segunda leitura, ou uma leitura mais atenta, em suas obras para perceber a relevância deste autor, vez que Hobbes desatrelou o poder do rei a uma fundamentação divina, muito presente no contexto da época.

Comumente associado ao absolutismo, Hobbes conceber a ideia de que um indivíduo nunca renuncia seu direito à vida. Atacado por liberais e totalitários, o filósofo se tornou um defensor da liberdade de cada um.

Com o intuito de proceder da melhor maneira possível com a exposição do tema, o método utilizado para a realização da pesquisa foi o analítico, fazendo uso da pesquisa bibliográfica como técnica de pesquisa e revisão teórica com explanação de autores que compartilham da mesma base teórica que Thomas Hobbes e de outros que divergem.

Nascido em 1588, no condado de Wiltshire, Inglaterra, Thomas Hobbes é um filósofo conhecido no mundo jurídico por inaugurar uma tradição contratualista constituída na construção filosófica Estado de Natureza, Contrato Social e Estado Político. É referência obrigatória quando se aborda a noção de soberania do Estado Moderno[1], vez que trata de uma espécie especial de poder, um poder político, originário e fundador da concepção de uma sociedade organizada por uma pessoa jurídica abstrata na figura do Leviatã[2], materializada por um governo que pode ser constituído tanto por apenas um soberano (aqui estaremos diante de uma monarquia), ou por uma assembleia de homens (aristocracia ou mesmo uma democracia). É de Hobbes a ideia de que o direito à vida é um direito natural inalienável e que deve ser protegido acima de qualquer outro direito. Este, por sinal, é o fundamento da existência de um contrato, artificial, estabelecido entre soberano e súditos ou Estado e sociedade.

Cabe aqui uma análise, mesmo que singela, da vida deste brilhante pensador, antes de adentrarmos em suas teorias e no cerne do presente estudo.

Thomas Hobbes é considerado um dos maiores pensadores políticos da Inglaterra. Conhecido por ser um sujeito alto, rosto corado e barba rala, quando criança foi muito doente. Na fase adulta, entretanto, foi um esportista, e jogou tênis até ficar velho. Levava uma vida saudável, com uma alimentação à base de peixe e vinho. Costumava andar com uma bengala especial, que tinha um tinteiro na ponta, caso tivesse alguma ideia enquanto realizava suas matinais caminhadas. Como a maioria dos filósofos, Hobbes tinha uma mente dinâmica, vivendo até os 91 anos de idade, um grande feito para o século XVII, em que a expectativa de vida era de 35 anos[3].

Dono de uma mente genial, Hobbes possuía uma visão negativa dos seres humanos, acreditando que todos são egoístas e movidos pelo medo da morte, pela insegurança e pela busca de interesses próprios. É dele a ideia de que vivemos num constante estado de guerra, numa guerra de todos contra todos. E num mundo onde todos são egoístas, somente o Estado de Direito, através da ameaça de punição, seria capaz de manter o controle social. A frase “o homem é o lobo do homem”, que se tornou famosa pelo filósofo inglês, foi usada para explicar que o maior inimigo do homem é o próprio homem. Explico. Hobbes usou essa metáfora do homem como animal selvagem para indicar que o homem é capaz de praticar atos de barbárie contra os membros de sua própria espécie quando se encontra num estado de medo e insegurança[4].

A frase é, originalmente, de autoria de Tito Mácio Plauto, dramaturgo romano que viveu durante o período republicado. A frase ganhou notoriedade por estar presente na obra O Leviatã, escrita por Hobbes, publicada em 1651.

O Estado de Natureza hobbesiano parte da ideia de que o ser humano é um indivíduo isolado, e que preexiste à própria sociedade[5]. Hobbes nega a concepção aristotélica do zoon politikon, não aceitando que o homem seja um animal político, como é demonstrado na passagem de Do Cidadão:

A maior parte daqueles que escreveram alguma coisa a propósito das repúblicas ou supõe, ou nos pede ou requer que acreditemos que o homem é uma criatura que nasce apta para a sociedade. Os gregos chamam-no zoon politikon; e sobre este alicerce eles erigem a doutrina da sociedade civil como se, para se preservar a paz e o governo da humanidade, nada mais fosse necessário do que os homens concordarem em firmar certas convenções e condições em comum, que eles próprios chamariam, então, leis. Axioma este que, embora acolhido pela maior parte, é contudo sem dúvida falso – um erro que procede de considerarmos a natureza humana muito superficialmente[6].

Segundo o filósofo, os homens não possuem prazer algum em estar na companhia dos seus semelhantes, vez que esta gera desconfiança e disputa, em que cada indivíduo visa a apenas a satisfação de suas vontades. A natureza humana os revela solitários e egoístas. Hobbes apresenta os seres humanos como agentes racionais preocupados tão somente em maximizar seu poder a agir mediantes seus interesses, vez que agir de forma contrária colocaria em risco sua autopreservação.

Os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito. Porque cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação, naturalmente se esforça, na medida em que a tal se atreva (o que, entre os que não têm um poder comum capaz de os submeter a todos, vai suficientemente longe para levá-los a destruir-se uns aos outros), por arrancar de seus contendores a atribuição de maior valor, causando-lhes dano, e dos outros também, através do exemplo[7].

Cabe destacar que, para Hobbes, os homens são naturalmente livres, vez que suas ações não estão sob o constrangimento de ninguém. Para o filósofo inglês, “liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo oposição os impedimentos externos do movimento)”[8]. A natureza torna os homens independentes em relação aos outros indivíduos. Assim, a ação humana toma por base somente o interesse próprio de cada um, desprezando os direitos alheios.

No Estado de Natureza de Hobbes a noção de bem ou mal não existe, vez que inexiste a possibilidade de se pensar a conduta humana dentro do âmbito social, já que os homens não precisam uns dos outros, é dizer, sua existência não necessita de qualquer interação. Não encontramos noções de Direitos, costumes ou mesmo sociabilidades em geral, já que tais institutos podem existir somente a partir da instituição da própria sociedade. No estado de natureza, portanto, a liberdade humana não sofre qualquer constrangimento ou limitação, a não ser por uma força maior. Neste sentido:

Desta guerra de todos contra todos também isto é consequência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que seus sentidos e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na solidão[9].

Assim, o Estado de Natureza hobbesiano proporciona total igualdade e liberdade (ilimitadas) entre os indivíduos. Como não há leis pré-estabelecidas, não há que se falar em regramento social, e a única forma de se regrar as condutas dos homens é por meio da força. Quando dois homens desejam a mesma coisa que se encontra disponível na natureza a ocorre uma disputa, vez que ambos possuem o direito a todas as coisas em função de suas irrestritas liberdades e igualdades[10].

Para Hobbes, o fato do indivíduo ter direito a tudo no Estado de Natureza é uma desvantagem, pois isso gera um constante estado de disputa entre os homens, o que ele próprio chamou de “guerra de todos contra todos”, situação que será analisada de modo específico mais adiante.

2 Sobre o Contratualismo

Grosso modo, são chamados de contratualistas os pensadores que basearam suas teorias na ideia de que a origem da sociedade e do poder político está num contrato, espécie de acordo tácito ou explícito entre um governante e aqueles que aceitam fazer parte dessa sociedade e submeter a esse poder. Mesmo não sendo uma posição somente dos pensadores modernos, o contratualismo adquiriu o status de um movimento teórico graças às contribuições dos filósofos modernos Hobbes, Locke e Rousseau.

Ainda que esses autores não partilhem de ideias políticas semelhantes e tradições iguais, os três partilham uma sintaxe comum, qual seja, a “necessidade de basear as relações sociais e políticas num instrumento de racionalização, o direito, ou de ver no pacto a condição formal da existência jurídica do Estado”[11]. A tese da origem da sociedade política em um contrato implica dizer que a sociedade é um artifício, é dizer, uma associação em que os homens não são naturalmente conduzidos por suas paixões e vontade, pelo contrário, estão inseridos de modo não espontâneo dentro da coletividade.

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Um ponto chave dentro do contratualismo é a diferença entre o estado de natureza e o estado civil, pois indica justamente o momento anterior e posterior à implementação do corpo político, permitindo que se retire de uma descrição do estado de natureza os motivos que explicam essa implementação. Com a tese contratualista, temos que a política se funda sobre uma relação jurídica, vez que o contrato dá início à associação política, é dizer, representa um ato jurídico em que as partes contratantes estabelecem direitos e deveres recíprocos. Para a teoria contratualista, essa sociedade política se funda não apenas sobre uma relação jurídica, como também se diferencia das demais formas de comunidade.

Como base jurídica para sua fundamentação, o contratualismo aproveita a tradição do direito natural aristotélico, iniciada, entre os modernos, por Grotius e Pufendorf, que influenciaram diretamente os pensadores contratualistas já descritos aqui. Nesse sentido, a noção de um direito natural pressupõe a existência de determinados padrões de legitimação das relações políticas preexistentes a essas relações ou mesmo que independem delas para se fazer valer.

Ainda para os contratualistas, o poder político ou as relações de poder de natureza política se vinculam à noção de contrato, devendo ser por ele legitimados. O pressuposto comum é que o poder político, para ser legítimo, deve ser pensado como se tivesse instituído por um ato contratual, mesmo que, de fato, não tenha sido, tendo o poder político natureza legitimável, prolongando, assim, a tradição jusnaturalista clássica.

            Em todos os contratualistas, encontramos o ponto de vista normativo como um ponto comum, mesmo que alguns adotem diferentes graus de idealização da política. Para Hobbes, é possível legitimar, através de sua teoria, qualquer poder de fato instituído, enquanto Locke pensa que alguns são legitimáveis e outros não. Já Rousseau, defende a tese de que poder de fato algum corresponde à ideia de como o poder político deve realmente ser. Para este, o contrato opera pelo modo como medimos o grau de legitimidade das instituições históricas em contraposição ao modo como elas são de verdade[12].

Para Hobbes, desta guerra de todos contra todos nada pode ser injusto. O contrato, entretanto, não é imutável ou mesmo eterno. Para o filósofo, a obrigação dos súditos para com o soberano tem razão de existir somente enquanto este é capaz de protegê-los.

Como já visto, Hobbes apresenta a justificação do contrato na necessidade de existir um poder centralizador que esteja acima dos interesses próprios de cada indivíduo, com o objetivo de controlar o instinto destrutivo dos seres humanos. Nesse cenário, o Estado surge para inibir esse instinto de sobrevivência existente nos homens e garantir a paz social e a preservação da vida dos indivíduos. Mas para que esse cenário seja completo, os súditos devem aderir ao contrato e transferir ao soberano amplos, ilimitados e indivisíveis poderes, abrindo mão até de sua liberdade em troca de segurança.

Para o filósofo John Locke (1632-1704), a existência do Estado se deve mais à necessidade de existir uma instância que se encontre acima do julgamento parcial e egoísta de cada cidadão do que a condição de selvageria dos homens. Para o filósofo,  o Estado deve preservar o direito individual à liberdade e à propriedade privada. Nesse sentido, as leis não devem ser fruto da vontade unilateral e pessoal do governante, mas de uma Assembleia. Locke é opositor do absolutismo, da tiraria e da tese de que as pessoas já nascem com uma aptidão inata de governar.

Já o filósofo suíço Jacques Rousseau (1712-1778) defende que o ser humano é bom em sua essência e que a soberania pertence ao povo, e dele emana o poder. Esse poder deve ser exercido pelo soberano em nome do povo, vez que o governante é um representante do povo, recebendo o poder por delegação para exercê-lo em nome da coletividade. Para Rousseau, o Estado tem origem no contrato social formado entre os cidadãos livres que renunciaram suas vontades para garantir o que ele denominou de vontade geral[13]. A ideia de vontade geral propõe que os indivíduos devem abrir mãos de suas liberdades individuais em prol da comunidade. Nesse sentido, deve haver leis que restrinjam o comportamento dos indivíduos.

A ideia de vontade geral propõe que os indivíduos devem abrir mão de muitas liberdades individuais em prol da comunidade. Nesse sentido, deve haver leis que restrinjam o comportamento das pessoas. Para o filósofo, as concepções de liberdade e obediência às leis do Estado não se anulam, pelo contrário, complementam-se, pois quando os indivíduos se agrupam em sociedade, acabam por formar um novo tipo de pessoa, em que cada cidadão faz parte de um todo maior em relação à individualidade de cada um.

3 Do cruel estado de natureza (e a segurança de cada um) ao Estado Político

Para Hobbes, a guerra é justificada em duas principais razões, quais sejam, a cobiça de alguns de quererem tudo para si próprios e a vigilância daqueles que possuem os objetos que são cobiçados pelos outros. Nesse sentido, o estado de natureza é um estado de permanente guerra que gera insegurança nos indivíduos. Em virtude disso, os homens, num ato racional e de liberdade, decidem sair do estado natural de segurança e firmar um contrato para ingressar no Estado Político.

Na lógica hobbesiana, os desejos humanos são experimentados como verdadeiros medos e desconfortos a serem sanados, e é por esse motivo que os homens agem, para aliviar este desconforto e promover seu bem estar. Então, toda ação humana, toda sua escolha e vontade, na verdade, são naturalmente inclinadas a aliviar as pressões físicas do seu corpo. Este princípio da física de Hobbes reflete diretamente em seu pensamento político, pois o estado de natureza é o ápice dos desejos e dos apetites humanos. Junto com os desejos, entretanto, vem o medo de cada indivíduo acerca de como conservar sua própria existência.

Tanto pelo prisma da física, quanto pelo da filosofia política, Hobbes parte da ideia de que os corpos são independentes entre si, em que os homens têm uma existência naturalmente à parte dos outros corpos. Hobbes usa isso para refutar a tese aristotélica do animal político[14]. Contudo, essa individualidade e egocentrismo fazem com que os indivíduos, de maneira racional, passem a viver em sociedade para manter a própria vida. Os indivíduos escolhem então viver num agrupamento social não pelo bem comum ou pela sua natureza, mas em função do desenho de continuarem vivos.

O contrato social, então, não representa um resultado natural da convivência entre os homens, mas é artificial. O desejo de viver em sociedade é fruto do medo que os homens possuem uns dos outros, do seu próprio lobo (para usar uma expressão hobbesiana). Para Hobbes:

Os homens não podem esperar uma conservação duradoura se continuarem no estado de natureza, ou seja, de guerra, e isso devido à igualdade de poder que entre eles há, e as outras faculdades com que estão dotados. Por conseguinte o ditado da reza razão – isto é, a lei de natureza – é que procuraremos a paz, quando houver qualquer esperança de obtê-la, e, se não houver nenhuma, que nos preparemos para a guerra[15].

Quando os pactuantes ingressam no Estado político, abrem mão de suas irrestritas liberdades em troca da defesa de suas vidas. Para Hobbes, “aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos”[16]. O Estado passa a ser o centralizador das decisões públicas, e responsável pela promoção da segurança dos cidadãos.

4 O fundamento do poder soberano em Hobbes

Conforme já ponderado, os seres humanos, ao ingressarem no Estado político, instituem o poder absoluto, que é soberano e indivisível, exercido por um único homem ou por uma assembleia de homens. Os súditos entregam ao Leviatã suas liberdades em troca da segurança, proporcionada por intermédio do Contrato estabelecido racionalmente por causa do medo da morte certa no estado de natureza. Nesse sentido, “a origem de todas as grandes e duradouras sociedades não provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns para com os outros, mas do medo recíproco que uns tinham dos outros”[17].

Para Hobbes:

Aqueles que já instituíram um Estado, dado que são obrigados pelo pacto a reconhecer como seus os atos e decisões de alguém, não podem legitimamente celebrar entre si um novo pacto no sentido de obedecer a outrem, seja no que for, sem sua licença. Portanto, aqueles que estão submetidos a um monarca não podem sem licença deste renunciar à monarquia, voltando à confusão de uma multidão desunida, nem transferir sua pessoa daquele que dela é portador para outro homem, ou outra assembleia de homens[18].

Convém destacar que o pacto para a instituição do Estado politico é um ato propriamente humano, não havendo que se falar em pacto divino. A monarquia hobbesiana não tem por fundamento preceitos religiosos ou místicos. A vida em sociedade é resultado da vontade estrita dos indivíduos, que temem as atitudes de seus semelhantes. É nesse ponto que Hobbes deixa claro sua reprovação no que tange a outras formulações filosóficas da época, que defendiam o poder absoluto dos monarcas tendo por base o fundamento divino de poder[19]. Para ele, “esta pretensão de um pacto com Deus é uma mentira tão evidente (...) que não constitui apenas um ato injusto, mas também um ato próprio de um caráter vil e inumano”[20].

O poder absoluto do soberano se fundamenta, assim, na representação que este exerce perante os membros da sociedade. Para Hobbes, essa representação é fiduciária, vez que está atrelada à garantia do soberano de manter a paz e a segurança dos contratantes, os súditos. As ações do governante são justificadas na busca pela autopreservação.

Aqui merecem destaque dois importantes aspectos. O primeiro se refere ao fato de que o soberano não pode ser acusado por qualquer súdito de cometer injustiça. Uma vez que o governante exerce o poder político em nome de todos os indivíduos, todos os atos do soberano são atos de seus próprios súditos, em nome de seus interesses, pelo princípio da representação. Hobbes então declara que o soberano não pode ser injusto com qualquer súdito pois não é possível que alguém seja injusto consigo mesmo. Assim, a vontade do soberano é a vontade de todos os indivíduos e todos os súditos tem suas vontades expressas pelas leis do governante, daí a impossibilidade de haver injustiça.

Dado que todo súdito é por intuição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para com qualquer de seus súditos, e que nenhum deles pode acusa-lo de injustiça. Pois quem faz alguma coisa em virtude da autoridade de um outro não pode nunca causar injúria àquele em virtude de cuja autoridade está agindo. Por esta instituição de um Estado, cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer, por consequência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio; e não pode acusar-se a si próprio de injúria, pois causar a si próprio é impossível[21].

O segundo ponto relevante se refere ao fato de que o soberano não tem obrigação de cumprir a lei. Nesse sentido, ele se encontra constantemente em estado de natureza perante seus súditos, ou seja, desobrigado ao cumprimento de qualquer mandamento imposto por ele próprio. A justificativa está no fato do contrato ter sido celebrado pelos indivíduos entre si e entre os homens e o soberano, já que este é uma criação pós-contrato. Assim, o soberano não pode obedecer aquilo que não pactuou. Pelo princípio da representação, as leis obrigam os súditos, mas nunca quem as criou, que goza de ilimitada liberdade.

O soberano de um Estado, quer seja uma assembleia ou um homem, não se encontra sujeito às leis civis. Dado que tem o poder de fazer e revogar as leis, pode quando lhe aprouver libertar-se dessa sujeição, revogando as leis que o estorvam e fazendo outras novas; por consequência já antes era livre. Porque é livre quem pode ser livre quando quiser. E a ninguém é possível estar obrigado perante a si mesmo, pois quem pode obrigar pode libertar, portanto quem está obrigado apenas perante si mesmo não está obrigado[22].

Pelo princípio da representação, o soberano é responsável pela promoção da justiça e da paz. O Direito exerce um papel ímpar na teoria de Hobbes, vez que é a partir do conjunto de leis criadas pelo Estado que será possível a promoção da justiça. Nesse sentido, Hobbes entende o Direito como uma condição essencial para se chegar aos objetivos sociais e não apenas como um caminho em direção à justiça ou à moralidade. Como os objetivos de paz e segurança são construtos de comunidades politicamente organizadas e não imanentes do espírito humano, o direito hobbesiano se encontra totalmente concentrado nas mãos do soberano, seja na sua elaboração, seja na administração da justiça, através da ação do judiciário.

As leis mencionadas na obra O Leviatã devem ser vistas de forma ampla, envolvendo, ao mesmo tempo, leis de viés tanto público como privado. Hobbes declara que “o conhecimento da lei civil é de caráter geral e compete a todos os homens. A antiga lei de Roma era chamada sua lei civil, da palavra civitas, que significa Estado”[23]. Hobbes define a lei civil da seguinte maneira: “a lei civil é, para todo súdito, constituída por aquelas regras que o Estado lhe impõe, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente de sua vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o mal; isto é, do que contrário ou não é contrário à regra”[24].

É importante notar nessa passagem que Hobbes declara que, em última análise, é o Estado quem dá a justiça e distingue o bem do mal, entre o que é ou não contrário à regra. Hobbes define que “em todos os Estados o legislador é unicamente o soberano, seja este um homem, como numa monarquia, ou uma assembleia, como numa democracia ou numa aristocracia”.[25]

Hobbes coloca as leis civis e naturais numa mesma hierarquia, ver que o Estado é o próprio responsável por dar leis civis e naturais, a partir da interpretação dos ditamos naturais. O soberano não está preso a qualquer lei, desde que seus atos objetivem a defesa da vida dos súditos a busca pela paz e ordem do Estado. Em última análise, a lei natural pode ser limitada pela civil:

A lei civil e a lei natural não são diferentes espécies, mas diferentes partes da lei, uma das quais é escrita e se chama civil, e a outra não é escrita e se chama natural. Mas o direito de natureza, isto é, a liberdade natural do homem, pode ser limitado e restringido pela lei civil; mais, a finalidade das leis não é outra senão essa restrição, sem a qual não será possível haver paz. E a lei não foi trazida ao mundo para nada mais senão para limitar a liberdade natural dos indivíduos, de maneira tal que eles sejam impedidos de causar dano uns aos outros, e em vez disso se ajudem e unam contra o inimigo comum[26].

A possibilidade de restrição da lei natural pela civil se fundamenta no momento do Contrato, vez que no estado de natureza a vida (fundada na absoluta liberdade, ausência de oposição dos demais homens e na igualdade) tem como reflexo natural a guerra constante dos homens entre si e isso deve ser reprimido para que a paz e a segurança sejam alcançadas. Sob esse prisma, o direito de natureza pode e deve sofrer limitação, vez que a instituição do Estado é o marco limítrofe para o uso deste direito. Apenas o que é pactuado, o que é artificial pode garantir a paz, pois a natureza egoísta dos indivíduos não é capaz de alcançá-la.

5 Conclusões

Seria muita pretensão querer, nestas poucas linhas, concluir todo o espírito inovador de Thomas Hobbes, assim como depreender o significado de suas obras no respectivo período em que viveu. Certamente, o estudo e reflexão de suas obras ainda tem muito a nos ensinar. O objetivo dessa abordagem foi trazer à lume a teoria de um dos autores modernos mais relevantes para a Teoria do Estado e para a Filosofia Política.

Hobbes foi um dos primeiros a abordar a questão do poder do governante e do Estado desatrelado ao poder divino. Como foi abordado, para Hobbes, a paixão é mais forte que a vontade. Na política e na moral, essa premissa resulta que os súditos do Estado são individualistas e se reúnem em comunidade por ser o único meio de sobreviver no que ele chamou de estado de natureza. Nesse estado, os homens tem a única preocupação de suprir seus desejos e vontades, nem que para isso tenham que saquear ou matar seus semelhantes. Esse constante estado de guerra é abordado na obra O Leviatã, uma alegoria ao monstro bíblico explicitado no livro bíblico de Jó. Para Hobbes, o Estado é o próprio monstro, que governa o caos, situação em que os indivíduos abrem mãos de suas liberdade individuais em troca de segurança e paz social. No contexto do figura marinha, ainda que este coma alguns peixes enquanto os protege, o sacrifício parece valer a pena.

Hobbes cunhou o termo Contrato Social para designar o acordo entre o governante e os súditos, que reconhecem a autoridade do soberano, fazedor das leis e único capaz de fazer respeitar o contrato e garantir a segurança e a paz entre os indivíduos. Com isso, o poder do soberano se fundamenta na representação que este exerce perante os súditos. Para Hobbes, essa representação é fiduciária, vez que está vinculada a garantia do soberano de garantir a paz e a segurança dos contratantes. As ações do governante são justificadas na busca pela autopreservação.

Assim, para Hobbes, para que a sociedade seja construída é necessário que os membros da coletividade abram mãos de suas liberdades (é dizer, a vontade de satisfazer seus próprios desejos no estado natural) e estabeleçam um acordo mútuo entre si. Outro ponto relevante da filosofia hobbesiana é que o soberano não é obrigado a cumprir a lei. Nesse sentido, ele se encontra constantemente em estado de natureza perante seus súditos, ou seja, desobrigado ao cumprimento de qualquer mandamento imposto por ele próprio. A justificativa está no fato do contrato ter sido celerado pelos indivíduos entre si e entre os homens e o soberano, já que este é uma criação feita depois do contrato.

Assim, em Hobbes, podemos entender a soberania como a capacidade do Estado à auto vinculação e auto determinação jurídicas exclusivas. É dizer, a soberania é expressa, internamente, na supremacia do Estado em sobrepor seu poder aos demais poderes sociais. Os demais poderes ficam subordinados ao poder estatal. O que está em foco na teoria hobbesiana não é poder do governante, mas sim o conceito da soberania do Estado.

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Sobre o autor
Francisco Renato Silva Collyer

Professor nas áreas de Legislação, Logística, Ética e Sociologia. Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Especialista em Filosofia, Direito Público, Ciência Política e Direito Ambiental. Graduado em Direito e Ciências Sociais. Possui cursos de formação complementar nas áreas de Direito, Filosofia, Sociologia, Ética, Meio Ambiente e Gestão Ambiental.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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