4. DETERMINAÇÃO DA NATUREZA JURÍDICA DO PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
4.1. A COMPETÊNCIA NORMATIVA DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
Conforme o conceito adotado de função reguladora, percebe-se que a existência do poder normativo é imanente à própria definição da referida atividade desempenhada pelo Estado, conforme atribuição do artigo 174 da Constituição Federal de 1988.
Entretanto, em que pese a necessidade do exercício de função normativa pelas agências reguladoras, como forma de desenvolvimento de função reguladora, o tema da atribuição da competência normativa aos referidos entes suscita inúmeras discussões face ao regime jurídico brasileiro e à sua pretensa inadequação ao modelo regulatório.
Vislumbram-se, de um lado, opiniões de doutrinadoras, como Maria Sylvia Zanella di PIETRO, Lúcia Valle FIGUEIREDO e Arianne Brito Rodrigues CAL, segundo as quais somente as agências reguladoras com previsão constitucional exerceriam poderes regulamentares.
Desta maneira, somente a Agência Nacional de Telecomunicações e a Agência Nacional de Petróleo regulariam a atividade econômica por meio de atos de cunho normativo, vez que originadas nos artigos 21, XI e 177, §2º, III da Constituição Federal de 1988.
Este posicionamento, no entanto, não está isento de críticas. Marçal JUSTEN FILHO ensina que esta solução não pode ser admitida porque a previsão constitucional de exercício de poderes normativos pelas agências reguladoras, pelo simples fato de estarem contidas no texto constitucional, o que, supostamente, lhes daria uma roupagem especial, retira a competência do Poder Legislativo. "Ou seja, a Constituição teria transferido do Legislativo para o Poder Executivo determinadas competências legiferantes".
De toda maneira, como bem observa Renata Porto Adri de ROSA, o problema da atribuição de competência normativa aos entes reguladores envereda a busca de novas formas de interpretação do ordenamento jurídico vigente que compatibilizem esta função normativa com os princípios constitucionais e os postulados de outros ramos do Direito, de maneira a possibilitar que exerçam plenamente a função reguladora que lhes foi atribuída.
Assim, ao invés de simplesmente negar a atribuição de poderes normativos às agências reguladoras, o que acabaria por lhes retirar a própria essência, deve-se buscar os instrumentos legitimadores que expliquem a natureza jurídica desta função.
Na doutrina, além do posicionamento há pouco mencionado, observa-se a existência de, pelo menos, três teorias mais destacadas.
A primeira delas, representada por Leila CUÉLLAR, explica que o poder normativo conferido às agências reguladoras brasileiras resultaria de uma legitimação pela função. Melhor dizendo: em razão da própria função reguladora a que visam dar cumprimento, as referidas autarquias estariam autorizadas a expedir atos administrativos de cunho normativo, os quais estariam equiparados aos regulamentos autônomos.
Numa segunda perspectiva, a função normativa das agências reguladoras adviria do fenômeno chamado deslegalização ou delegificação. Esta teoria, cujo maior defensor no Brasil é Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO, seria uma subespécie da delegação legislativa, dentro de um modelo classificatório aperfeiçoado por Eduardo GARCÍA DE ENTERRÍA, o qual surgiu no direito francês.
O terceiro entendimento acerca da atribuição de capacidade normativa aos entes reguladores independentes brasileiros é o proposto por Marçal JUSTEN FILHO, para quem a concessão de poderes normativos às agências reguladoras decorreria da manifestação do poder discricionário conferido aos agentes públicos resultantes de uma delegação normativa imprópria ou de cunho secundário.
Vistas, ainda que de maneira panorâmica, quais são as fundamentações teóricas legitimadoras da atribuição de poderes normativos às agências reguladoras, importa, agora, investigá-las, com um pouco mais de vagar, indicando, também, quando necessárias, as devidas críticas.
4.1.1 Teoria dos Atos Normativos das Agências Reguladoras Enquanto Regulamentos Autônomos
Aqueles que se afiliam a essa corrente de pensamento, entendem que o poder normativo das agências reguladoras advém de uma capacidade regulamentar diferente daquela tradicionalmente concebida no Direito Brasileiro.
Seria diferente, em princípio, porque admitiria a expedição de regulamentos autônomos, os quais, para a maioria dos doutrinadores, seria vedado pela sistemática instituída pela Constituição Federal de 1988, especificamente no que tange ao princípio da separação dos poderes, contido em seu artigo 2º.
O poder regulamentar autônomo surgiria de um primeiro fato que é o reconhecimento da não exclusividade da titularidade do Poder Regulamentar ao Chefe do Poder Executivo e aos Ministros de Estado, tal como estatuído nos artigos 84, IV e 87, parágrafo único, II, ambos da Constituição Federal de 1988. Para eles, outras entidades da Administração Pública também expedem decretos, regulamentos e instruções para fiel execução das leis, tal qual o caso das agências reguladoras, figuras da Administração Pública indireta, sem que isso denotasse qualquer inconstitucionalidade.
Noutro momento, esta nova competência regulamentar não estaria cingida, somente, ao fiel cumprimento da lei, como estatuído na parte final do artigo 84, IV da Constituição Federal de 1988. Em virtude da realidade político-econômica, passaria o Estado a ser regulador da atividade econômica, justificando, assim, a realização das finalidades estatais a que se propõem os novos entes. Em outros termos: os fins estatais justificariam a legitimidade dos instrumentos utilizados para a sua consecução.
A revisão dos paradigmas constitucionais, em verdade, seria uma condição imprescindível para o embasamento do poder normativo das agências reguladoras e, conseqüentemente, das suas próprias razões de ser, vez que, sem a autonomia para expedir normas jurídicas, não seria possível se cogitar em regulação da atividade econômica.
Além disso, conforme salienta Egon Bockmann MOREIRA, outro defensor desta corrente de pensamento, a capacidade para a expedição de normas conferida aos entes reguladores brasileiros não lesionaria o texto constitucional porque limitado pela própria lei instituidora da autarquia especial.
Neste sentido, ainda, a leitura crítica feita por Eros Roberto GRAU da teoria da separação de poderes de MONTESQUIEU, quanto à utilização do critério material, e não do orgânico, para classificação das atividades estatais, validaria também a expedição de regulamentos autônomos no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que esta competência decorreria de uma outorga constitucional implícita ao Poder Executivo para o desempenho de função normativa que objetivasse a execução de normas jurídicas.
Portanto, ao atribuir o poder normativo aos entes administrativos, segundo a classificação sugerida por Eros Roberto GRAU, explicar-se-ia a denominada capacidade normativa de conjuntura, entendida como aquela disponibilizada ao Poder Executivo para normatizar situações momentâneas que emergem das alterações da realidade econômica.
Em verdade, nota-se que a maior preocupação existente é a construção de um conjunto hermenêutico que vise, não somente a dar respaldo jurídico à constitucionalidade dos regulamentos autônomos no direito brasileiro, mas, sim, a desenvolver um cabedal de instrumentos controladores destes atos administrativos.
Desta forma, percebe-se das palavras de Leila CUÉLLAR: "assim, e mesmo que se admita que as agências reguladoras brasileiras possuam competência regulamentar, inclusive para editar regulamentos autônomos, cumpre assinalar que o exercício do poder regulamentar no direito brasileiro jamais seria ilimitado, sendo impostas restrições ao seu exercício".
Portanto, dentro do modelo de limites propostos pela referida autora, a primeira regra limitadora dos poderes normativos das agências reguladoras é a de que os regulamentos não podem desrespeitar as normas e os princípios de direito que lhe são superiores, tendo em vista que "ainda que autônomos, os regulamentos são atos administrativos, hierarquicamente subordinados à lei e à constituição – cujo conteúdo devem atender, formal e substancialmente".
O segundo preceito disciplinador diz respeito à impossibilidade de o regulamento autônomo inovar de forma absoluta na ordem jurídica, seja criando direitos, deveres ou obrigações às pessoas privadas, sem respaldo de lei; bem como ampliando ou restringindo direitos ou obrigações. Para que os regulamentos possam gerar deveres, direitos e obrigações, a lei há de dar azo a esta possibilidade.
Outro limite é o de não ser autorizada à autoridade administrativa a criação de normas cuja edição pressupõe processo legislativo certo e específico, de modo a se viabilizar a observância do princípio da tipicidade no âmbito do Direito Administrativo.
Neste ínterim, não cabe ao regulamento, por si só, criar crimes, instituir penas, sanções, prescrever tributos ou encargos de qualquer natureza. Outrossim, veda-se ao regulamento a restrição da igualdade, da liberdade e da propriedade ou de determinar alterações no estado das pessoas.
Outra barreira a ser observada é a de que o regulamento não possui efeito ex tunc, exceto quando o regulamento se destinar a beneficiar pessoas privadas, observando-se, obrigatoriamente, o princípio da isonomia de forma a "evitar que não seja ele – regulamento – um benefício específico a determinado grupo de pessoas, em detrimento de outro que esteja submetido a mesma situação fático-jurídica".
Imprescindível que a expedição do regulamento seja fundamentada, haja vista que é um ato administrativo e, por esta razão, deve apresentar sua motivação pública de fato e de direito.
Por fim, o regulamento há de ser objeto de análise do Poder Judiciário, no que se refere à sua emanação e quanto ao seu conteúdo. Nas palavras da autora:
Há de se preservar a essência do sistema de ‘checks and balances’, de modo a possibilitar o controle do título competencial detido pela entidade que emana o provimento regulamentar, assim como quanto ao seu conteúdo. Esse controle, na medida que se impõe a atos administrativos com a natureza jurídica normativa de provimentos gerais e abstratos, pode ser exercitado da forma concentrada – controle objetivo e - difusa – controle subjetivo. Assim, um regulamento emanado por uma agência reguladora federal, cujas normas espalham-se pelo território nacional, pode tanto ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade quanto a ser atacado em mandado de segurança, pela pessoa que se vir prejudicada concretamente pelo provimento.
Em suma, seria possível, na opinião de Leila CUÉLLAR, estabelecer uma teoria acerca dos regulamentos autônomos brasileiros, levando-se em conta a existência de certas limitações ao exercício do poder regulamentar.
Afirma-se, aliás, que inexiste oposição entre o princípio da legalidade e a possibilidade de emanação de regulamentos autônomos, pois se considera legítima a atuação normativa das agências em razão da relevância das atividades desempenhadas e dos objetivos traçados para a sua instalação.
Neste sentido, a competência normativa conferida a essas autarquias sob regime especial, além de inerente à própria atividade de regulação, demonstra-se imprescindível para que tais entes possam desempenhar de maneira eficiente suas atribuições.
Contudo, esta teoria foi alvo de críticas, as quais foram desferidas por Marçal JUSTEN FILHO e Arianne Brito Rodrigues CAL. Para o primeiro autor, o fato de a Constituição Federal atribuir a responsabilidade de a Administração Pública promover o interesse público não justifica a concessão de qualquer competência normativa determinada e autônoma. Com efeito, "nunca se poderia extrair uma competência normativa autônoma para a Administração Pública a partir de simples argumentação de que a Constituição impõe a ela o dever de realizar o bem-comum. Cada situação concreta comportaria diversas respostas".
O referido autor argumenta que o modelo proposto por Leila CUÉLLAR é parcialmente válido porque, embora esteja correto quanto à criação de instrumentos de controle da atividade normativa das agências reguladoras, defendeu idéia contrária ao sistema constitucional brasileiro, que é a possibilidade de existência de regulamentos autônomos.
De outro lado, Arianne Brito Rodrigues CAL entende inconcebível a possibilidade de serem veiculados regulamentos autônomos no Brasil, sob pena de violação do princípio da legalidade contido no artigo 5º, II, da Constituição Federal de 1988, porque o regulamento não é lei formal e, portanto, não estaria legitimado a criar direitos e impor obrigações. Além disso, a função precípua da competência regulamentar é complementar a lei e não inovar na ordem jurídica.
Analisada, ainda que perfunctoriamente, a primeira teoria justificadora da atribuição do poder normativo às agências reguladoras, passa-se ao estudo do segundo trabalho mencionado anteriormente.
4.1.2 Teoria da Delegificação ou Deslegalização
Tratando da questão atinente ao poder normativo conferido às agências reguladoras, Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO considera-o como a técnica de delegação normativa definida como deslegalização ou delegificação, cuja origem remonta à doutrina francesa da délégation de matières e que foi desenvolvida, no âmbito doutrinário ainda, sobremaneira, por Eduardo GARCIA DE ENTERRÍA.
Segundo esta doutrina, a transferência de competência pela qual ela se caracteriza tem fulcro na retirada, pelo legislador, de determinadas matérias da seara legal (domaine de la loi) com a sua conseqüente colocação no domínio do regulamento (domaine de l´ordonnance). Não há necessidade de a lei delegante discorrer detalhadamente a respeito do assunto a ser normado, bastaria, apenas, viabilizar a sua regulamentação por atos próprios de outras fontes normativas, independentemente de estas serem estatais.
No entanto, a única ressalva que deve ser feita é sobre estas normas se deve exercer continuamente um controle político, com o escopo de evitar e/ou aniquilar eventuais excessos.
Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO defende a idéia de que a deslegalização, enquanto utilizada na função regulatória, aproxima as disposições jurídicas dos setores que dela carecem, retirando-as das imposições diretas promovidas pelo Estado, por meio de leis formais editadas pelos seus órgãos legislativos.
Além disso, acredita que a competência normativa atribuída às agências reguladoras é o meio ideal para uma atuação célere e flexível para a solução, em abstrato e em concreto, de questões em que haja predominância de escolhas técnicas, distanciadas e isoladas de opções político-administrativas, que são típicas da ação dos parlamentos, e que depois se prolongam nas escolhas administrativas discricionárias, concretas e abstratas, que prevalecem na ação dos órgãos burocráticos da Administração direta.
Assim, reproduz em sua obra o conceito de deslegalização formulado por Gianmario DEMURO, para quem, o referido instituto, trata da "transferência da função normativa (sobre matérias determinadas) da sede legislativa estatal a outra sede normativa".
Cumpre enfatizar, ademais, que as normas produzidas em decorrência do mencionado fenômeno não se confundem com as normas regulamentares expedidas pelo Poder Executivo, tampouco pelo Legislativo.
Para Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO, a regulação derivada da deslegalização materializa as reservas constitucionais impostas relativamente ao controle de toda sorte de atividades econômicas potencialmente ofensivas ao equilíbrio e à harmonia sociais.
Isto porque a regulação trata minuciosamente das disposições diretas definidas pelo legislador que contêm apenas finalidades e, destarte, dependem de ulterior tratamento e regulamentação para poderem, efetivamente, serem aplicadas.
Todavia, ainda o mesmo doutrinador ensina que toda delegação de função reguladora encontra dois limites: os de ordem externa à transferência e os de ordem interna. Os primeiros são representados pelas limitações que sofre qualquer ato normativo em decorrência do sistema jurídico em que se inserem, quais sejam, serem compatíveis com as demais disposições legais, sejam elas hierarquicamente superiores ou estejam no mesmo nível, sob pena de invalidade da norma reguladora. Referentemente ao segundo grupo de restrições, sublinha-se que é composto pelos limites procedimentais e temporais a serem observados pelas normas reguladoras (parâmetros formais) e pelo seu conteúdo (parâmetro material).
Desse modo, como já salientado, o poder normativo das agências reguladoras prima pelo atendimento à exigência de normatização essencialmente técnica, com reduzida interferência político-administrativa estatal em determinados campos de prestação de serviços e bens, públicos ou não.
Da mesma opinião apresentada comungam Marília de Ávila e Silva SAMPAIO e Alexandre Santos de ARAGÃO, este com algumas nuanças conceituais no que atine à fixação de standards pela lei delegante, mas que, de todo modo, não rejeitam o seu posicionamento.
O entender da função normativa das agências reguladoras como uma forma de delegificação também foi criticada por Marçal JUSTEN FILHO, em função de, no pensar deste autor, "não há cabimento de produzir a transferência de competência normativa reservada constitucionalmente ao Legislativo para o Executivo. E tal deriva de algumas características da ordem jurídica brasileira".
4.1.3 O Poder Normativo das Agências Reguladoras Enquanto Manifestação de Poderes Discricionários
Esta terceira corrente é encabeçada por Marçal JUSTEN FILHO que entende que o problema da definição da natureza jurídica do poder normativo conferido às agências reguladoras deve ser solvido com base num método constitucional sistêmico.
A questão referente à natureza dos atos normativos dos entes reguladores seria resolvida da seguinte maneira: deve-se partir do pressuposto de que as leis podem ser exaustivas ou não quanto a uma determinada matéria. Existiriam lacunas caso nem todos os pressupostos do comando normativo estivessem em lei, previstos de maneira abstrata.
Quando a lei disciplinadora de determinada matéria deixa margem para maior autonomia do aplicador, há discricionariedade técnica complementar ou acessória. No entanto, deve-se relembrar, que a prévia existência de lei é algo imanente à idéia de discricionariedade, ou seja, esta não existe sem aquela.
O ato administrativo discricionário, desta maneira, há de ser compatível com a norma legal em seu conteúdo, espírito e finalidade, assim como a atuação do legislador em relação à Constituição Federal.
Desta maneira, por óbvio, escolhas fundamentais jamais poderiam ser feitas por ato administrativo discricionário porque a sua finalidade, como já visto, é a de dar seguimento ao espírito da lei, e não inovar a ordem jurídica ou complementá-la em desconformidade aos seus preceitos.
No entanto, isto não significa dizer que não se possa submeter ao comando de um ato administrativo discricionário, de cunho normativo, pois, se é certo que ninguém poderá fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, também não deixa de ser verdade que nem tudo este alguém deva fazer esteja, obrigatoriamente, previsto em lei.
O referido autor ressalta, todavia, que a discricionariedade não consiste necessariamente numa simples escolha de uma dentre várias que estão previamente determinadas em sede legislativa. Ao configurar a discricionariedade, a lei pode fazê-lo pela impossibilidade de selecionar abstrata e antecipadamente todas as alternativas disponíveis para resolver um certo problema.
Também pode haver discricionariedade quando se constatar a intenção do legislador de relegar a disciplina de uma determinada relação jurídica ou de um setor da realidade social a critérios técnico-científicos, variando as soluções de acordo com o progresso futuro.
Assim, Marçal JUSTEN FILHO define o seu posicionamento, no sentido de que a competência normativa abstrata das agências reguladoras é enquadrada como uma manifestação do poder discricionário.
Entende, o referido autor, que a discricionariedade pode ser o fundamento para edição de normas gerais, tal como se passa no tocante ao regulamento, já que não pode haver delegação de poder legislativo às agências reguladoras.
Logo, a atribuição de poder regulamentar de caráter secundário às agências reguladoras, já que o primário é de titularidade do chefe do Poder Executivo, seria manifestada por meio de atos discricionários, cuja função precípua é a de complementação das normas legislativas, que lhes conferem esta competência, de modo a desenvolver os princípios, o espírito e o conteúdo dos referidos regramentos de origem legislativa.
Indica, como limites à competência normativa discricionária, a falta de lei que confira competências normativas às agências, o que constituiria violação ao princípio da legalidade, ou, ainda, em respeito ao mesmo princípio, que a normatização subsidiária seja realizada em desobediência às balizas, denominadas de standards, delineadas na regra que outorga da competência e que devem ter suas constitucionalidades e legalidades facilmente aferíveis.
Acerca do segundo limite, elucida Marçal JUSTEN FILHO que, no direito brasileiro, o princípio da legalidade significa a necessidade do ato legislativo disciplinar extensamente a matéria, sendo que "os dados fundamentais da hipótese de incidência e do mandamento normativo apenas podem ser veiculados por meio de lei. Não se admite que a lei estabeleça um padrão abstrato, preenchível pelos mais variados conteúdos, e remeta à agência seu desenvolvimento autônomo".
Portanto, percebe-se que, em respeito ao princípio da legalidade, às agências reguladoras é vedado o preenchimento autônomo das balizas legais. De outro lado, indica, como a melhor maneira de complementação destes espaços normativos, a chamada discricionariedade técnica, entendida como a faculdade de o administrador agir em complementação à prescrição legal por meio de juízos técnicos, sem a influência de fatores políticos.
Neste ponto específico, é necessário trazer à baila o entendimento de Paulo Roberto Ferreira MOTTA, segundo o qual, a par da identificação de inconstitucionalidade na questão da outorga de competências legiferantes, é conferido ao aplicador do direito uma alternativa, por ele chamada de exegese responsável, em que a atuação normativa das agências reguladoras estaria cingida exclusivamente a critérios técnicos, desde que observados os seguintes limites:
a) sempre que a questão técnica implique na inovação da ordem jurídica, criando ou fazendo desaparecer direitos e obrigações, possa a norma, antes de sua vigência, permitir o contraditório (quer por audiências públicas, que pela notificação pessoal dos interessados) por parte da cidadania, que é, sempre, mediata ou imediatamente, atingida pela estatuição primária havida no ordenamento jurídico; b) para tanto, é indispensável a imediata elaboração de um Código de Procedimento Administrativo para, no âmbito das agências reguladoras, permitir a materialização do explicitado no item anterior; c) que, a fundamentação técnica apresentada (discricionariedade técnica) pela agência reguladora, seja, sempre, passível de apreciação judicial, inclusive com a suspensão liminar dos seus efeitos, se for o caso; d) que, neste caso, o Poder Judiciário relativize o princípio da presunção de constitucionalidade do ato normativo atacado.
Desta maneira, a utilização da discricionariedade técnica para a complementação dos valores contidos na norma seria a maneira ideal de se permitir a não interferência de fatores políticos nas decisões tomadas pelos entes reguladores.
No entanto, o próprio Marçal JUSTEN FILHO não aceita totalmente esta assertiva, na medida em que dado o grau de evolução do raciocínio técnico, raras serão as oportunidades em que o aplicador da lei não disporá de qualquer margem de liberdade para realizar uma escolha, a qual, nem sempre, será isenta de ideologismos.
Assim, dificilmente será vislumbrada a existência de uma discricionariedade técnica pura, razão pela qual os meios de controle da atuação do aplicador da lei deverão ser incrementados com o objetivo de propiciar a maior averiguação da finalidade precípua de toda a Administração Pública: a consecução do interesse público.
4.2 CONCLUSÃO
Vê-se, desta maneira, que a questão referente à outorga de poderes normativos às agências reguladoras, pelo fato de ainda não ser algo pacificado no âmbito doutrinário, tampouco jurisprudencial, está longe de possuir uma resposta única, quanto à sua natureza jurídica.
No entanto, nota-se que a elaboração teórica existente permite a exclusão da opinião que admite que o poder normativo das agências se exterioriza por regulamentos autônomos, ante à sua flagrante inconstitucionalidade.
Também se vislumbra que a importação de experiências estrangeiras, tal qual o caso da doutrina da delegificação, não atende, no mais das vezes, às expectativas do ordenamento jurídico brasileiro. De fato, não se admite no direito brasileiro a chamada reserva do regulamento ou domaine de l´ordonnance, tal qual ocorre no direito francês.
Em verdade, verifica-se que o posicionamento mais adequado à realidade do ordenamento jurídico brasileiro é aquela apresentada por Marçal JUSTEN FILHO, segundo a qual o poder normativo das agências reguladoras seria a manifestação do poder discricionário conferido à Administração Pública, o qual possui seus limites predeterminados na própria lei instituidora dos entes reguladores, bem como no fato de somente poder ser exercida sob o seu amparo, não podendo inovar em matérias abstrata e insuficientemente tratadas nos referidos diplomas legais e, ainda, invadindo matérias de reserva absoluta de lei, como as matérias tributária e penal.
Além disso, devem ser objeto de pleno controle judicial, conforme determina o artigo 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988, de maneira a viabilizar a própria existência do Estado Democrático de Direito.
Feitas estas considerações, passa-se a estudar o encargo de capacidade emergencial, o também denominado "seguro-apagão", caso emblemático dos limites do poder normativo das agências reguladoras.