5. LIMITES DO PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS BRASILEIRAS: O CASO DO ENCARGO DE CAPACIDADE EMERGENCIAL
5.1 NOTAS INTRODUTÓRIAS
De tudo o que já foi visto ao longo do presente trabalho, pode-se destacar que a República Federativa do Brasil se constitui num Estado Democrático de Direito, por força do artigo 1º caput da Constituição Federal de 1988, devendo ser entendido como aquele no qual existe ampla participação popular no processo de elaboração das normas jurídicas que regem os comportamentos sociais.
Estudou-se, também, que o princípio da separação dos poderes é uma das idéias fundamentais à concretização de um Estado Democrático de Direito. Isto porque, apenas em ordenamentos jurídicos que garantam a atuação independente e harmônica das três funções tradicionalmente concebidas, Executiva, Legislativa e Judiciária, seria viável a subserviência da Administração Pública aos preceitos normativos advindos do Poder Legislativo.
Além disso, foram vistas as questões atinentes ao princípio da legalidade e da competência regulamentar. Almejou-se, com tal medida, se destacar, primeiramente, que o princípio da legalidade é uma garantia consagrada pelo texto constitucional por meio da qual somente a lei em sentido formal, ou seja, o produto do processo legislativo previsto na Constituição, poderá ser o instrumento legítimo de imposição de deveres e obrigações aos cidadãos.
Com a análise do poder regulamentar, buscou-se evidenciar que a capacidade de veiculação de estatuições normativas não é exclusiva do Poder Legislativo, porquanto a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 84, IV, atribuiu ao chefe do Poder Executivo tal prerrogativa. No entanto, conforme visto, esta atuação deve ser efetivada para a mera complementação da lei. Noutras palavras: a atividade normativa do Poder Executivo deve ter como fito esmiuçar o alcance do ato legal em que guarda fundamento, sem, contudo, deturpar-lhe o sentido ou inovar o ordenamento jurídico, motivo pelo qual, no Direito Brasileiro, a figura dos regulamentos autônomos estaria proibida.
Posteriormente, estudou-se a função reguladora praticada pelo Estado no âmbito de alguns setores da Economia. Viu-se que o fundamento constitucional desta missão está no artigo 174 da Carta de 1988, bem como que, no Direito Brasileiro, ela se exterioriza de cinco maneiras, a saber: 1) estatuição de normas jurídicas; 2) arbitramento de conflitos; 3) fiscalização; 4) imposição de sanções aos infratores das disposições normativas e 5) fomento da atividade econômica regulada.
Contemplou-se, também, que a atividade reguladora, no Brasil, foi atribuída preferencialmente às agências reguladoras, razão pela qual foi imperiosa uma investigação mais detalhada acerca destas entidades. Naquela oportunidade, percebeu-se, sempre sob o manto do ordenamento jurídico brasileiro, que, de acordo com os vários diplomas normativos que instituíram as agências regularas, as mesmas se revestem da roupagem de autarquias sob regime especial, integrando, assim, a administração pública indireta e, conseqüentemente, o Poder Executivo.
Da leitura mais acurada dos textos criadores das autarquias especiais, se vislumbrou que as diferenças primordiais entre as agências reguladoras brasileiras, autarquias sob regime especial, e as autarquias concebidas pelo artigo 5º do Decreto-Lei nº 200/1967 são duas, quais sejam, a atribuição de mandatos fixos aos dirigentes daquelas e a inexistência de subordinação hierárquica entre os referidos entes reguladores e o Ministério ao qual deveriam estar vinculadas, notadamente com a impossibilidade de interposição de recurso hierárquico das decisões tomadas em sua última instância administrativa.
Adiante, pretendeu-se determinar a natureza jurídica dos atos normativos oriundos das autarquias especiais em comento, os quais se constituem numa das mais comezinhas manifestações da função reguladora no Brasil. Para tanto, foi necessária a realização de uma exposição das três teorias mais difundidas acerca da configuração jurídica dos atos normativos das agências reguladoras.
Verificando-se a primeira delas, vê-se, em síntese, que as referidas estatuições normativas teriam a natureza de regulamentos autônomos, os quais, por sua vez, guardariam legitimidade em parâmetros hermenêuticos que limitassem o conteúdo a ser veiculados nos referidos atos.
Por meio da segunda teoria, vislumbra-se a defesa da idéia de que os aludidos atos normativos proviessem de uma criação doutrinária chamada delegificação ou deslegalização. Para os adeptos deste posicionamento, a delegificação se operaria da seguinte maneira: uma lei em sentido formal, portanto, um ato do Poder Legislativo, delegaria ao Poder Executivo a competência para expedição de normas jurídicas acerca de um determinado assunto, sem que, neste caso, houvesse usurpação de competências, tampouco desrespeito ao princípio da separação dos poderes.
De outro lado, a terceira teoria explica a capacidade normativa das agências reguladoras como sendo o resultado da manifestação da competência discricionária conferida aos entes públicos, no caso, os agentes públicos das agências reguladoras, os quais, mediante critérios de conveniência e oportunidade, sempre nos limites traçados pela norma, de modo a dar-lhe a complementação necessária.
Concluiu-se, portanto, que os atos normativos das agências reguladoras não podem ser ilimitados, pois, como manifestação de competência normativa do Poder Executivo que são, não poderão inovar na ordem, impondo responsabilidades e gravames por meio de suas estatuições, bem como que esta competência não pode ser mais ampla do que aquela atribuída ao próprio chefe do Poder Executivo.
Posto isto, mister se passar, agora, à abordagem da problemática central deste trabalho, que é a de saber se os atos de conotação normativa das agências reguladoras, sob o ponto de visto do Direito Constitucional brasileiro, poderiam ou não impor deveres e obrigações aos cidadãos, tal ocorre na hipótese do encargo de capacidade emergencial, vulgarmente conhecido como seguro-apagão.
É o que se buscará realizar a partir deste momento.
5.2 BREVE PANORAMA NORMATIVO DA CRIAÇÃO DO ENCARGO DE CAPACIDADE EMERGENCIAL
No ano de 2001, o Brasil sofreu uma das maiores crises energéticas de sua história, resultado da falta de planejamento e escassez de investimentos no setor de energia elétrica. Com o objetivo de solucionar a crise, o governo federal há época, por meio da Medida Provisória nº 2.198-5, de 24 de agosto de 2001, a qual criou e instalou a Câmara de Gestão da Crise da Energia Elétrica, cuja atribuição era, de acordo com o artigo 1º da referida Medida Provisória, propor e implementar medidas de natureza emergencial para compatibilizar a demanda e a oferta de energia elétrica, evitando interrupções do suprimento de energia elétrica.
A justificativa do governo federal para a implantação de tal órgão foi que crise energética era resultado de um grave problema de estiagem que acabou por afetar a reserva hídrica dos reservatórios, de maneira tal que a geração de energia elétrica não seria suficiente para atender à demanda.
No entanto, com a bem sucedida passagem pela crise energética, o que levou à ulterior extinção do programa de superação, o governo federal houve por bem implantar um outro programa para o aumento da oferta de energia elétrica no Brasil.
Para tanto, seria necessário custear a aquisição de energia elétrica, caso surgissem novos problemas, de modo a evitar a imposição de novos sacrifícios à população brasileira das regiões mais atingidas pela primeira crise.
Assim, com o intuito de melhor gerir os meios pelos quais seria efetuada a compra de energia elétrica, adveio, por intermédio da Medida Provisória nº 2.209, de 29 de agosto de 2001, a Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial, a quem, conforme o artigo 1º, §1º, II da aludida norma, competia, dentre outras coisas, a prática de atos tendentes à superação da crise de energia elétrica e ao reequilíbrio de sua oferta e demanda.
Desta maneira, cumprindo as missões a que se destina o novo programa de aquisição de energia elétrica, o Presidente da República editou a Medida Provisória nº 14, de 21 de dezembro de 2001, posteriormente convertida na Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002, a qual estabeleceu que os custos de compra e de contratação de capacidade de geração de energia deveriam ser repartidos entre todos os consumidores do Sistema Elétrico Nacional Interligado, por meio de adicional tarifário, a ser regulamentado por ato da Agência Nacional de Energia Elétrica.
Por sua vez, a Agência Nacional de Energia Elétrica, dando cumprimento aos preceitos contidos na Medida Provisória nº 14/2001, editou a Resolução nº 71/2002, a qual, em virtude da conversão da mencionada Medida Provisória na Lei nº 10.438/2002, foi revogada pela Resolução nº 249/2002.
Assim, a Resolução nº 71/2002 da Agência Nacional de Energia Elétrica, repetida pela Resolução nº 249/2002, em seus artigos 2º, 4º e 8º, criou, respectivamente, o encargo de capacidade emergencial, encargo de aquisição de energia elétrica e o encargo de energia livre adquirida no mercado atacadista de energia, cujas naturezas jurídicas, conforme já aludido, seriam de adicionais tarifários.
Entretanto, os valores dos encargos de aquisição de energia elétrica e de energia livre adquirida no mercado atacadista de energia e a data de início de suas respectivas cobranças não foram, ainda, definidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica, motivos pelos quais os seus estudos restam prejudicados.
Portanto, concentrar-se-á a análise do presente trabalho apenas no encargo de capacidade emergencial, especificamente no que tange à sua natureza jurídico-tributária, bem como quanto à questão de suas possíveis inconstitucionalidades.
5.3 NATUREZA JURÍDICO-TRIBUTÁRIA DO ENCARGO DE CAPACIDADE EMERGENCIAL
Antes que sejam argüidas eventuais inconstitucionalidades acerca do encargo de capacidade emergencial, é necessário que determine, num primeiro momento, se o referido gravame possui ou não natureza jurídica de tributo e, caso se chegue a uma resposta afirmativa, à qual espécie tributária pertenceria.
Somente de posse destes dados é que será viável uma correta análise acerca dos limites do poder normativo conferido às agências reguladoras brasileiras, neste particular, especificamente, à Agência Nacional de Energia Elétrica.
5.3.1 O Encargo de Capacidade Emergencial Enquanto Tributo
O conceito legal de tributo é encontrado no artigo 3º do Código Tributário Nacional. Dispõe o referido dispositivo que "tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor possa nela se exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada".
No caso em apreço, percebe-se que o encargo de capacidade emergencial, a teor do que prevê a sua lei instituidora, é rotulado de adicional tarifário. Contudo, esta denominação legal não confere à exação sob exame a natureza jurídica de tarifa ou preço público.
Isto porque, conforme disposto no artigo 4º, I, do Código Tributário Nacional, somente por meio da análise do fato gerador da obrigação é que será possível se estabelecer a sua natureza jurídica tributária, independentemente do nomen juris que se lhe dê.
Na específica hipótese do encargo adicional emergencial, é evidente que não se trata de uma tarifa, pois, nas palavras de Marcos Rogério Lyrio PIMENTA:
O seguro-apagão não tem a mesma destinação da tarifa de energia elétrica, isto é, não remunera o serviço de fornecimento de energia elétrica prestado pelas concessionárias. Não é receita de quem presta o serviço, no caso as concessionárias. O seguro-apagão, nos termos do art. 1º da Lei nº 10.438/02, é destinado a financiar os custos de natureza operacional, tributária e administrativa, relativos à aquisição de energia elétrica e à contratação de capacidade de geração ou potencia pela Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial – CBEE. Remunera, pois, serviço diverso do fornecimento de energia elétrica, e tem como destinatário outro sujeito, e não a concessionária prestadora de serviços. Portanto, podemos afirmar que o seguro-apagão jamais poderá ser considerado como um adicional tarifário nos termos em que fora criado, uma vez que não tem a mesma natureza jurídica da tarifa, nem apresenta a mesma destinação, reafirma-se.
Neste mesmo sentido se posiciona Alexandre Macedo TAVARES, para quem:
Somente com suporte num sacrificium intellectus irracional e ilógico é que se pode conceber o seguro-apagão como um adicional tarifário, mormente porque não se faz presente duas das principais notas de uma tarifa, a saber: a) a relação não-compulsória, isto é, ao beneficiário do serviço é facultada a utilização dos serviços disponibilizados, e; b) preço como contraprestação, ou seja, o preço público consubstancia típica remuneração pela utilização do serviço ou aquisição do bem pelo interessado.
Por fim, insta fazer menção ao entendimento de Eduardo Fortunato BIM segundo o qual, partindo do pressuposto de que o preço público ou tarifa é a remuneração obtida e destinada ao concessionário do serviço público, que não está afeta ao regime jurídico tributário, "os encargos cobrados pela Aneel claramente não são preços públicos porque a receita será destinada à Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial, em até três dias e não à própria concessionária".
Adiante, conclui que "como preço público que eventualmente seriam, somente poderiam ser cobrados e destinados às concessionárias de energia, e não cobradas por estas, na conta de luz, e destinadas à CBEE".
Efetivamente, não há como se negar a correção do raciocínio apresentado pelos mencionados autores.
Primeiramente, pelo fato de as tarifas, por sua natureza jurídica, se vincularem à remuneração direta das empresas concessionárias do serviço público e não à Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial ou entidade que não concessionárias.
Noutro momento, em razão de, pela análise do texto normativo que o instituiu, ficar evidente sua subsunção ao conceito legal de tributo. Ora, o mencionado encargo se constitui numa prestação pecuniária, pagamento de R$ 0,0085 kWh, conforme o artigo 1º da Resolução nº 496, de 26 de setembro de 2003; instituída em lei, no caso, a Lei nº 10.438/2002; não decorrente de ato ilícito, o qual é cobrado mediante uma atividade administrativa plenamente vinculada, que é desempenhada pela Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial.
Visto que o encargo de capacidade emergencial se amolda ao conceito legal de tributo, mister que se proceda ao cotejo de suas características principais com a das outras espécies tributárias existentes no Direito Constitucional vigente.
5.3.2 A Tipificação do Encargo de Capacidade Emergencial
A identificação do encargo de capacidade emergencial numa das categorias tributárias é uma das questões mais polêmicas envolvendo o tema e divide opiniões dos autores que, até agora, sobre ele se debruçaram.
Não obstante esta aparente dificuldade, as opiniões têm convergindo para três sentidos. O primeiro deles é o de que o encargo de capacidade emergencial possui natureza jurídica tributária, sem, contudo, se adequar a nenhuma das cinco espécies de tributos admitidas no ordenamento jurídico constitucional brasileiro. Outro entendimento é aquele segundo o qual o encargo em debate configuraria uma contribuição de intervenção sobre o domínio econômico, a qual é majoritária. Por fim, a terceira corrente é de que se trata de um empréstimo compulsório sui generis.
Passa-se, agora, a realizar brevíssimas considerações acerca de cada uma das opiniões para que, ao final se proceda, em tópico especifico, à análise da inconstitucionalidade do encargo de capacidade emergencial.
5.3.2.1 Encargo de Capacidade Emergencial Tido Como Um Tributo Sem Enquadramento Constitucional
O primeiro entendimento coletado acerca do encargo de capacidade emergencial é o de que ele não se amoldaria à nenhuma das categorias de tributo veiculadas pela Constituição Federal de 1988. Esta constatação surgiu das lições de Eduardo Fortunato BIM, o qual, para chegar à conclusão apresentada, realizou uma refutação individualizada de cada espécie tributária.
Não seria imposto porque deixaria de atender à exigência constitucional da não-afetação das receitas, contido no artigo 167, IV da Constituição Federal de 1988, segundo o qual é proibida a destinação de qualquer verba proveniente de recolhimento de impostos a um determinado órgão, fundo ou despesa, já que, conforme visto, o produto do recolhimento do encargo de capacidade emergencial é remetido, por força de lei, à Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial.
De outro lado, ao conceito de taxa não poderia estar circunscrito porque não existe prestação de serviço específico e divisível por parte do Estado, requisito este que se demonstra essencial à taxa, conforme o artigo 145, II da Constituição Federal de 1988.
Não há se falar em contribuição de melhoria, uma vez que inexiste qualquer valorização imobiliária decorrente de uma obra pública, ponto nodal estabelecido no artigo 81 do Código Tributário Nacional.
Por sua vez, falar em empréstimo compulsório seria desmedido porque o artigo 148 da Constituição Federal prevê que os mesmos sejam criados somente por lei complementar, o que não é o caso do encargo de capacidade emergencial.
Das contribuições sociais e de interesse de categorias profissionais também não há se falar em sua classificação, porquanto resta evidente inexistir qualquer elemento que possibilite a ligação entre o encargo de capacidade emergencial e os fatos geradores destes tributos.
Por fim, sempre conforme Eduardo Fortunato BIM neste item, não se trataria de contribuição sobre o domínio econômico, pois não há causa relevante para a intervenção estatal sobre o setor de energia elétrica, já que a arrecadação de dinheiro para seria, tão-somente, a formação de um fundo emergencial. Além disso, não teria havido observância da lei complementar quanto à sua implementação no ordenamento jurídico, bem ainda o fato de os beneficiários de tais verbas deveriam ser os concessionários da exploração da atividade de energia elétrica e não à Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial.
Desta maneira, conforme anota o aludido Eduardo Fortunato BIM, "embora tenham natureza jurídica tributária, os encargos também não preenchem nenhum dos requisitos exigidos pelo sistema constitucional tributário para ser uma CIDE" ou qualquer outra espécie tributária.
5.3.2.2 Encargo de Capacidade Emergencial Como Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico
Até o presente momento, esta é a posição majoritária acerca da natureza jurídica do encargo de capacidade emergencial.
Dentre seus defensores se encontram Marcos Rogério Lyrio PIMENTA e Nelson MONTEIRO NETO, os quais apregoam que o Estado somente lançou mão da figura em comento porque teria como finalidade precípua de financiar os custos relativos à aquisição de energia e à contratação de capacidade de geração ou potência pela Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial, conforme preceituam os artigos 1º da Lei nº 10.438/2002 e 2º da Resolução nº 249/2002 da Agência Nacional de Energia Elétrica.
Neste diapasão, ou seja, para que se caracterize uma contribuição sobre a intervenção no domínio econômico, é necessário, além dos requisitos do artigo 149 da Constituição Federal de 1988, que este tributo esteja vinculado à uma finalidade específica, que a intervenção numa atividade econômica, tal qual é o caso da energia elétrica.
Desta maneira, esta segunda corrente doutrinária entende que o encargo de capacidade emergencial possui a natureza jurídica de contribuição de intervenção no domínio econômico porque a sua finalidade precípua é a formação de uma espécie de poupança contra eventuais infortúnios advindos de uma nova crise energética.
5.3.2.3 Encargo de Capacidade Emergencial Como Empréstimo Compulsório Especial
O terceiro viés doutrinário conferido à questão é encabeçado por Alexandre Macedo TAVARES, para quem o encargo de capacidade emergencial seria uma espécie anômala de empréstimo compulsório.
No entanto, deve-se justificar que o referido doutrinador somente assim procede em razão de ter tentado incluir o mencionado tributo em todas as cinco espécies tributárias sem sucesso.
Lastreia seu entendimento de que o tributo em questão seria um empréstimo compulsório no fato de custear despesas emergenciais relativas à aquisição de energia (causa determinante do seguro-apagão), bem como pelo tempo de sobrevida determinada à sua cobrança.
Contudo, insta mencionar que o próprio autor reconhece que a anomalia da classificação do encargo de capacidade emergencial em empréstimo compulsório, já que nele vislumbra inconstitucionalidades no que atine ao modo de veiculação, ausência de lei, bem como pela circunstância de não haver previsão legal para a restituição, por parte da Administração Pública, de toda a verba arrecada com o referido encargo.
5.4 INCONSTITUCIONALIDADES DO ENCARGO DE CAPACIDADE EMERGENCIAL
5.4.1 Inconstitucionalidade Pela Não Subsunção às Espécies Tributárias Previstas na Constituição Federal
De tudo o que foi visto, percebeu-se que o encargo de capacidade emergencial se amolda ao conceito legal de tributo, mas que, no entanto, existem divergências no que se refere à determinação da espécie tributária a que pertenceria.
Efetivamente, somente se poderia considerar que o encargo de capacidade emergencial se subsumiria a uma das espécies tributárias previstas no ordenamento jurídico brasileiro, caso todas as irregularidades formais que o permeiam fossem sanadas, tais como a afetação de suas receitas a uma entidade da Administração Pública Indireta, a não restituição dos valores pagos, em não havendo novo colapso energético.
No entanto, como tal medida ainda não ocorreu, trata-se de um tributo natimorto, ou seja, uma exação que não possui respaldo constitucional para sua cobrança, o que significa defender a sua inexistência perante o Direito Brasileiro.
É intuitivo de se concluir que o encargo de capacidade emergencial, em razão de não estar enquadrado em nenhuma das cinco espécies de tributos que existem no ordenamento jurídico brasileiro, é inconstitucional.
A par da subsunção do encargo de capacidade emergencial ao conceito legal de tributo, contido no artigo 3º do Código Tributário Nacional, não se deve esquecer de uma regra basilar de hermenêutica, segundo a qual a Constituição Federal é o fundamento de validade de todas as demais normas jurídicas.
Desta maneira, se o encargo em questão se reveste das características exigidas pela lei, mas não se coaduna com o regime constitucional tributário brasileiro, não há dúvidas de que a cobrança da aludida exação é inconstitucional.
5.4.2 Inconstitucionalidade do Encargo de Capacidade Emergencial Pela Veiculação de Alíquota por Ato Normativo da Agência Nacional de Energia Elétrica
No entanto, o primeiro vício apontado não é totalmente aceito na doutrina e na jurisprudência. De fato, percebe-se a que grande maioria entende que o encargo de capacidade emergencial possui natureza jurídica de tributo.
Todavia, mesmo se admitindo a correção deste raciocínio, a inconstitucionalidade do referido encargo persiste, especificamente no que diz respeito à desobediência do princípio da legalidade tributária, visto que, exceto a previsão de sua criação, toda a sua regulamentação foi realizada por ato normativo de uma agência reguladora brasileira, a Agência Nacional de Energia Elétrica.
Desta forma, acatando-se a natureza tributária do encargo de capacidade emergencial, é mister que se proponha novamente a questão lançada na introdução deste trabalho: pode uma agência reguladora, no exercício de sua função reguladora, expedir normas que imponham obrigações e deveres, no presente caso, aos destinatários finais de energia elétrica?
Conforme pôde ser observado, vige no direito brasileiro o princípio da legalidade tributária, previsto nos artigos 150, I e 154, I da Constituição Federal de 1988.
No entanto, na seara do Direito Tributário, o princípio da legalidade recebe tratamento mais severo do que o normalmente dispensado ao princípio da legalidade dos demais ramos do Direito. Com efeito, conforme ensina Alberto XAVIER, vislumbra-se no referido ramo do Direito que:
O princípio da legalidade revestiu sempre um conteúdo bem mais restrito. Com vista a proteger a esfera de direitos subjetivos dos particulares do arbítrio e do subjetivismo do órgão de aplicação do direito – juiz ou administrador – e, portanto, a prevenir a aplicação de tributos arbitrários, optou-se neste ramo do Direito por uma formulação mais restritiva do princípio da legalidade, convertendo-o numa reserva absoluta de lei, no sentido de que a lei, mesmo em sentido material, deve conter não só o fundamento da conduta da Administração, mas também o próprio critério da decisão no caso concreto.
Efetivamente, o fato de se exigir, por força constitucional, que apenas lei em sentido formal institua obrigação de cunho tributário é garantir a necessária segurança jurídica a cada contribuinte, no sentido de que somente um ato advindo do Poder Legislativo será o meio hábil de se trazer à lume uma obrigação tributária.
Neste sentido, ainda, o princípio da legalidade tem o seu real significado na exigência de "que todos os elementos necessários à determinação da relação jurídica tributária, ou mais exatamente, todos os elementos da obrigação tributária principal, residam na lei".
Assim, como observa Roque Antônio CARRAZZA, "o tributo, pois, deve nascer da lei (editada, por óbvio, pela pessoa política competente). Tal lei deve conter todos os elementos e supostos da norma jurídica tributária (hipótese de incidência do tributo, seus sujeitos ativo e passivo e suas bases de cálculo e alíquota), não se discutindo, de forma alguma, a delegação, ao Poder Executivo, da faculdade de definí-lo, ainda que em parte". Ou seja, a lei que cria o tributo há de ser a mais completa possível, de modo a não deixar ao jugo do administrador a incumbência de integrá-la quanto a aspectos fundamentais para se definir a relação jurídica tributária.
Nas palavras de Hugo de Brito MACHADO, um dos maiores problemas que envolvem o princípio da legalidade é saber se, ao instituir um tributo, mediante simples menção em lei, pode ser deixado a cargo da Administração a tarefa de definir o núcleo da hipótese de incidência da norma tributária, a base de cálculo e a alíquota do tributo, bem como indicar os elementos necessários à identificação dos sujeitos passivos da obrigação tributária.
A resposta a este questionamento evidentemente há de ser negativa. Conforme muito bem salientado por José Eduardo Soares de MELO, "considerando que a lei (emanada do Poder Legislativo) contém os elementos básicos da norma de tributação, atribui-se ao Executivo a faculdade de expedir regras apenas para possibilitar sua operacionalidade, fixando deveres meramente administrativos".
Desta maneira, deve-se estar ciente que ao administrador público não será permitido a edição de quaisquer atos de cunho normativo tendentes à instituição de novos caracteres ao tributo previamente definido em lei formal.
No caso em apreço, percebe-se que a Resolução nº 249/2002, posteriormente alterada pela nº 496/2003, todas da Agência Nacional de Energia Elétrica, a par de designarem o encargo de capacidade emergencial de adicional tarifário, veicularam a alíquota da referida exação.
Tal modo de agir, estreme de dúvidas, fere o princípio da legalidade tributária, pois, de acordo com as lições trazidas à baila, somente a norma advinda do Poder Legislativo será apta a estabelecer quaisquer obrigações de natureza tributária.
Paulo de Barros CARVALHO leciona, categoricamente, que "no direito brasileiro, a alíquota é matéria submetida ao regime da reserva legal, integrando a estrutura da regra-modelo de incidência".
Tanto é assim que o artigo 97, IV do Código Tributário Nacional determina que somente lei poderá dispor acerca da fixação de alíquota dos tributos, ressalvadas as exceções previstas no próprio artigo e que em nada se aplicam à hipótese em análise.
Portanto, vislumbra-se incontestável, sob qualquer ângulo de análise, a inconstitucionalidade do encargo de capacidade emergencial, vez que, caso se admita sua natureza jurídica de tributo, tem sua alíquota veiculada por meio de Resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica, ato este que, conforme já visto, se atém à complementação discricionária das matérias previamente elencadas em lei, cujo dever de respeito ao princípio da legalidade ou da reserva legal é intuitivo, posto que todo ato discricionário deve guardar seus limites na própria lei que o possibilitou.
5.5 TRATAMENTO JURISPRUDENCIAL CONFERIDO À QUESTÃO
Efetivamente, conforme anteriormente visto, a inconstitucionalidade do encargo de capacidade emergencial é evidente, em razão da veiculação, por norma de caráter infralegal, especificamente Resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica, de matéria delegada ao crivo da lei.
Felizmente, esta realidade não tem sido obliterada no âmbito do Poder Judiciário. De fato, conforme será visto adiante, está sendo sedimentado o entendimento de que o aludido encargo de capacidade emergencial, em razão de possuir natureza tributária, deve estar subsumido ao regime jurídico próprio de obrigações desta estirpe.
Uma das primeiras manifestações jurisdicionais que se tem notícia é a decisão proferida nos autos de ação civil pública de nº 2002.61.12.002598-8, em trâmite perante a 2ª Vara Federal da Seção Judiciária de Presidente Prudente, no Estado de São Paulo, na qual o Ministério Público Federal discutia a cobrança do encargo de capacidade emergencial, bem como a cobrança da recomposição tarifária extraordinária. Ocupavam o pólo passivo da ação as empresas Caiuá Serviços de Eletricidade S/A, Elektro Eletricidade e Serviços, Empresa Vale do Rio Paranapanema, além da União Federal, da Agência Nacional de Energia Elétrica e da Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial.
Por meio da mencionada decisão, foi estipulado que todos os usuários de energia elétrica que estivessem albergados pela jurisdição estariam livres do pagamento do encargo até futura decisão em contrário.
A maior contribuição deste julgado, no entanto, se refere à contribuição ao debate acerca da determinação da classificação da espécie tributária do encargo em debate. Depreende-se do corpo da decisão:
"(...) não pode o Poder Público impor sobretarifa sem qualquer relação com a efetiva prestação do serviço. Trata-se de verdadeiro adicional, que tem por destinação financiar investimentos futuros a serem realizados no setor de energia elétrica, ou compensar as concessionárias por um suposto prejuízo em razão do racionamento, não provocado pelo usuário, traduzindo-se em autêntico empréstimo compulsório, cujo regime tributário encontra-se disciplinado no art. 148 da Constituição Federal, que está a exigir, entre outros requisitos, a lei complementar."
Evidentemente, à luz de todas as argumentações já expendidas, o referido julgado errou ao definir o encargo de capacidade emergencial como um empréstimo compulsório. Em verdade, se trata de uma obrigação sem cunho tributário, posto que não se amolda às espécies tributárias previstas no texto constitucional.
Nesta senda, foi proferida uma decisão pelo Juiz Federal Herlon Schveitezer Tristão, nos autos nº 2002.72.06.000625-3, de Mandado de Segurança, em trâmite perante a Vara Federal de Lages-SC, confira-se alguns trechos do acórdão:
"Destarte, para a caracterização da tarifa, em suma, é necessária a presença de dois requisitos: a) relação não-compulsória: ao benefício do serviço é facultada a utilização dos serviços disponibilizados. No caso de energia elétrica, nada impede a utilização de geradores próprios, sendo, portanto, contratual a relação com as concessionárias; b) preço como contraprestação: o preço público é a remuneração pela utilização do serviço ou aquisição do bem pelo interessado. Nesse contexto, os ‘adicionais tarifários’ previstos na Medida Provisória nº 14/01 e regulamentados pela Resolução nº 71/02 da ANEEL, não podem ser considerados tarifas, em razão de não preencherem as características referidas. Desta forma, os adicionais tarifários cobrados dos consumidores de energia elétrica não podem ser considerados como contraprestação, pagamento pelos serviços prestados pela concessionária de energia, à vista de que são destinados à CBEE para em última análise, aumentar a capacidade de geração e oferta de energia elétrica, registre-se em razão da omissão do Poder Público. (...) Desta forma, afastada a caracterização dos adicionais tarifários como preço público, não restam dúvidas quanto a sua natureza tributária, eis que preenche todos os requisitos do art. 3º do Código Tributário Nacional. Nessa linha, vislumbra-se, em uma primeira análise, que, no mínimo, não foi respeitado o princípio da legalidade tributária, vez que, ao dar tratamento de preço público aos adicionais tarifários, previu a Medida Provisória nº 14/01 a regulamentação pela ANEEL, não estabelecendo todos os elementos essenciais do tributo".
Registre-se, também, a decisão interlocutória proferida nos autos nº 2002.70.00.037781-7, de Mandado de Segurança, em trâmite perante a 8ª Vara Federal de Curitiba, na qual se discute a inexigibilidade do pagamento do encargo de capacidade emergencial. Na oportunidade se decidiu:
"Analisando-se os dispositivos questionados, depreende-se que a exigência tem natureza jurídica de imposto, pois o fato jurídico eleito como suficiente para a cobrança do chamado ‘encargo’, bem como sua base de cálculo e a destinação demonstram, em princípio, que não se está a tratar de preço público ou tarifa, uma vez que tais valores cobrados não têm por finalidade remunerar o serviço prestado. Tais valores destinam-se a uma empresa pública: Comercializadora Brasileira de Energia Elétrica – CBEE e não à prestadora de serviço. Dessa forma, o adicional tarifário criado revela-se como espécie de tributo, enquadrando-se na definição do artigo 3º, do CTN. Tratando-se de tributo, deve submeter-se aos princípios constitucionais aplicáveis à espécie. (...) Portanto, infere-se que a exigência está maculada de inconstitucionalidade, não podendo ser cobrada do impetrante. (...) Diante do exposto, concedo a liminar requerida, para o fim de suspender a exigibilidade do ‘adicional tarifário’ denominado ‘encargo de capacidade emergencial’(...)"
Outrossim, é necessário que se faça menção à recente decisão da Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da Quarta Região, o qual, em decisão relatada pelo Desembargador Federal Wellington de Almeida no Agravo de Instrumento nº 2002.04.01.034685-2, assim se pronunciou acerca da questão:
Agravo de instrumento. Encargos emergenciais criados pelo artigo 1º e 2º da lei nº 10.438/2002. Ilegalidade. Regime jurídico das exações. Preço público x tributo. 1. Não há vislumbrar nas exigências em análise o caráter de preço público, porquanto não se destinam a remunerar a concessionária pelos serviços de geração e distribuição da energia elétrica, já que não se direcionam à prestadora de serviço público, o que afasta definitivamente a natureza jurídica de preço público do "adicional tarifário" sob modalidade de "encargo de capacidade emergencial". Nesse andar, de se lembrar que preço (tarifa) é a contrapartida necessária pela prestação dos serviços utilizados, sendo impensável destinar valores, ou sobrevalores, supostamente envoltos pela pecha de "tarifários", para quaisquer outras finalidades estranhas ao contrato de concessão ou ainda à equalização do seu equilíbrio econômico e financeiro. 2. Natureza tributária que se afasta ante o cotejo do caso concreto com a principiologia inerente ao direito tributário. 3. Nessa senda, as exigências firmadas na Lei nº 10.438/2002, fossem elas entendidas como de natureza tributária, ou fossem elas vislumbradas do ângulo administrativo, à primeira vista, não se revestiriam das mínimas condições à sua convalidação perante o ordenamento jurídico, não podendo, portanto, serem opostas aos destinatários dos serviços em comento.
Desta maneira, percebe-se inexistir dúvidas acerca da natureza jurídica de tributo que o encargo de capacidade emergencial possui. Contudo, espera-se provimentos jurisdicionais definitivos acerca da inconstitucionalidade do mesmo, no que atine à falta de veiculação da alíquota por meio do instrumento normativo adequado, que é a lei.