Antes de adentramos na questão, é mister analisarmos o que significa “precedente”. Nas relações sociais gerais, os precedentes servem de subsidio argumentativo para convencer quem tem o poder de decisão. Por exemplo: se um pai deu uma viagem de presente a sua filha primogênita quando ela completou 15 anos de idade, a sua filha mais nova usará desse precedente para pedir ao pai que lhe dê um presente similar; ou seja, se sua irmã mais velha obteve tal presente ao completar essa idade, ela também deve receber o mesmo presente ao completar tal idade.
A premissa do precedente é a seguinte: se quando ocorreu fato X o resultado foi Y, ocorrendo fato X’ o resultado a ser obtido também deve ser Y’. Se do novo fato X decorrer resultado diferente de Y, haverá a quebra dessa lógica. Desse modo, o passado, por si só, acaba sendo uma razão que compele o sujeito à tomada de decisão em certo sentido. Transpondo tais premissas para o campo do Direito, os precedentes judiciais determinam que nas resoluções de questões jurídicas análogas às já decididas de modo uníssono, deve-se aproveitar a norma emanada pelo precedente ao novo caso como fundamento de decidir.
Segundo o ilustre Professor Cássio Scarpinela Bueno,
“(...) [os precedentes] serão aquelas decisões que, originárias dos julgamentos de casos concretos, (...) querem ser aplicadas também em casos futuros quando seu substrato fático e jurídico autorizar. São precedentes não porque vieram de países de common law, e sim porque foram julgados com antecedência a outros casos – quiçá antes de haver dispersão de entendimento sobre dada questão jurídica pelos diversos Tribunais que compõem a organização judiciária brasileira – e, de acordo com o caput do art. 927 [do NCPC], é desejável que aquilo que expressam seja observado em casos que serão julgados posteriormente.” [1]
O precedente é constituído pelas razões que determinam o resultado das decisões, ou seja, o ratio decidendi . Nas palavras do Professor Marinoni , é o precedente “Só as razões que a Corte utiliza para justificar a solução da questão de direito numa específica moldura fática dão ao juiz do novo caso condições de saber se o entendimento da Corte Suprema deve regulá-lo.” Ele complementa: “Sucede que, quando nenhum dos fundamentos é sustentado pela maioria do colegiado, simplesmente não há ratio decidendi ou precedente.”. [2]
É perceptível que dos precedentes extrai um comando interpretativo que orientará os demais julgados posteriores e de tribunais e juízes inferiores.
É mister salientar que os precedentes são uma fonte de direito. Nesse sentido, o juiz não tem a função apenas de declarar a vontade da lei, ele assume uma função de controle de constitucionalidade dela e dos atos normativos. Assim, “deve-se deixar de lado a opinião de que o Poder Judiciário só exerce a função de legislador negativo, para compreender que ele concretiza o ordenamento jurídico diante do caso concreto”. [3]
A atividade criativa do juiz pode se dar de duas maneiras, sendo a primeira no sentido de criar a norma jurídica do caso concreto; e a segunda, a norma geral do caso concreto, pela qual, o juiz deverá demonstrar o fundamento, a norma geral do ordenamento jurídico, que soluciona o caso concreto (não apenas a lei em si, mas o entendimento do juiz acerca dessa lei).
Assim, a norma geral do caso concreto é a interpretação feita pelo juiz, do direito positivo. As normas gerais criadas a partir de casos concretos estão na fundamentação das decisões e se configuram como aquilo que se chama de precedente judicial, que é exatamente essa norma geral criada a partir do caso concreto.
Visando a uniformização das decisões, o Novo Código de Processo Civil previu, nos seus artigos 926 a 928, e outros, que com eles se relacionam, a obrigação dos juízes e tribunais observarem os precedentes.
A celeuma dos precedentes é se o seu caráter vinculante e generalizado, extraível do artigo 927 do NCPC, se estaria violando o modelo constitucional adotado expressamente pelo CPC de 2015.
O professor Nelson Nery Junior entende que apenas o Supremo Tribunal Federal está autorizado constitucionalmente a emitir decisão de caráter vinculante, que, no caso, são as suas súmulas vinculantes. Esse ilustre professor da PUC-SP afirma que a norma infraconstitucional não pode estabelecer poderes para que outros tribunais emitam decisões de caráter vinculante, porque, nessas condições, segundo ele, o judiciário estaria exercendo uma função atípica de legislador, o que só é possível se houver autorização constitucional. Haveria um paradoxo porque, para o Supremo Tribunal Federal, para se emitir uma súmula vinculante, deve-se obedecer a rigorosos requisitos, já, quanto aos precedentes vinculantes, bastaria uma mera jurisprudência interna do tribunal e os juízes estariam obrigados a respeitá-la como se lei fosse, aponta o professor Nery. [4]
No mesmo sentido, o Professor Cássio Scarpinella Bueno entende que decisão jurisdicional com caráter vinculante no sistema brasileiro depende de prévia autorização constitucional – tal qual feita pela EC n. 45/2004 – e, portanto, está fora da esfera de disponibilidade do legislador infraconstitucional. [5]
Mais adiante em sua obra, o professor Cássio argumenta que “(...) mesmo que descarte o seu efeito vinculante fora dos casos previstos na CF, isto é, para além das decisões proferidas pelo STF no controle concentrado de constitucionalidade (art. 102, § 2º, da CF) e de suas súmulas vinculantes (art. 103-A da CF), não vejo razão para desconsiderar a sua força persuasiva e a necessidade de ser estabelecida verdadeira política pública para implementar maior racionalização nas decisões e na observância das decisões dos Tribunais brasileiro”. [6]
Em sentido contrário tem-se o entendimento do professor Marinoni de que “O CPC também afirma (art. 927), sem qualquer constrangimento, as espécies de “pronunciamentos” que devem ser observados pelos juízes e tribunais, misturando decisão, coisa julgada e precedente. Ora, não cabe à lei dizer quais são as decisões das Cortes Supremas que têm eficácia obrigatória. Note-se que a lei não só não precisa dizer, como não pode ter a pretensão de delimitá-las. As Cortes Supremas definem o sentido da lei federal e da Constituição, agregando sentido à ordem jurídica, e apenas por isso os seus precedentes devem ser obrigatoriamente respeitados pelos juízes e tribunais.”. [7]
Alinhamo-nos ao entendimento dos ilustres Professores Dr. Nelson Nery e Dr. Cássio Scarpinella no sentido de que é necessária prévia autorização da Constituição para que um tribunal emita precedentes com efeito vinculante.
Não basta, data venia ao posicionamento do brilhante Professor Marinoni, que as cortes superiores definam o sentido das leis federais e da Constituição para que isso vincule os demais tribunais que não tenham proferido decisão no caso em julgamento, é necessário que isso esteja previamente autorizado pela Constituição, conforme enfatizou os professores Nelson Nery e Cássio Scarpinella, ou seja, nas hipóteses de controle de constitucionalidade (art. 102, § 2º, da CF) e de suas súmulas vinculantes (art. 103-A da CF). Do contrário, aquele ato funciona apenas como um norte a ser seguindo pelos demais tribunais, mas sem a obrigatoriedade da vinculação.
É indubitável que o judiciário, ao proferir a sua jurisprudência com efeito vinculante, estaria exercendo uma função atípica do legislativo, o que só é possível com autorização constitucional.
Por outro lado, o Novo Código de Processo Civil, ao determinar no caput artigo 927 do NCPC, que “os juízes e tribunais observarão” os precedentes, esclarece em seus incisos que está buscando dar aos jurisdicionados maior previsibilidade e segurança jurídica, bem como tratando-os de forma isonômica.
Não é novidade que, muitas vezes, juízes diferentes proferem decisões diferentes sobre lides semelhantes, o que causa revolta e sensação de injustiça.
Decisões antagônicas em casos semelhantes ferem ao princípio constitucional da igualdade esculpido no artigo 5º caput da Constituição Federal, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)”.
O nosso modelo constitucional permite tratamento desigual apenas para realização da própria igualdade, isto é, trata-se de forma diferente os desiguais buscando equilibrá-los na relação jurídica.
Diante desse cenário, entendemos que a orientação do Novo CPC, quanto aos precedentes, tem um caráter intermediário entre decisões que funcionam de exemplo a ser seguindo pelos demais tribunais e as súmulas vinculantes do STF, com exceção dos incisos I e II do art. 927, por já terem esse caráter vinculante autorizado pela Constituição Federal.
Assim, o precedente, embora não deva ter efeito vinculante, deve ser seguido para evitar decisões antagônicas.
Portanto, entendemos que o modelo vinculante e generalizado dos precedentes é inconstitucional. É necessário que haja uma urgente emenda à Constituição para que os preceitos do NCPC se harmonizem com ela, mantendo uma coerência constitucional.
Diante dessa inconstitucionalidade, e enquanto não ocorre a alteração constitucional, é necessário que se interprete o precedente como uma orientação mais incisiva, com caráter quase vinculante, uma vez que acolhe outros comandos constitucionais como os princípios da isonomia; da duração razoável do processo, uma vez que a previsão das decisões baseadas nos precedentes judiciais diminuiria o ajuizamento de ações aventureiras, o que resultaria em maior celeridade aos processos em curso; e, nos dizeres do professor Cássio Scarpinella, “(...) [daria] maior previsibilidade e segurança jurídica aos jurisdicionados, tratando-os de forma isonômica”.
Notas:
[1] Bueno, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC, de acordo com a Lei . 13.256, de 4-2-2016 / Cassio Scarpinella Bueno. 2. ed. ver., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2016. p. 595.
[2] Marinoni, Luiz Guilherme, A função das cortes supremas e novo CPC. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2015-mai-25/direito-civil-atual-funcao-cortes-supremas-cpc> . Acesso em 31.05.2016.
[3] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Jus Podivm. 11. ed. v. I. p. 70.
[4] Junior, Nelson Nery. CFC - Simpósio - O Novo CPC - Prof. Nelson Nery Junior - A Força dos Precedentes Judiciais https://www.youtube.com/watch?v=lxXIPKureAc (A partir do 47º minuto do vídeo. Acesso em 29 de maio de 2016).
[5] Bueno, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC, de acordo com a Lei . 13.256, de 4-2-2016 / Cassio Scarpinella Bueno. 2. ed. ver., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2016. p. 595.
[6] Bueno, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC, de acordo com a Lei . 13.256, de 4-2-2016 / Cassio Scarpinella Bueno. 2. ed. ver., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2016. p. 596.
[7] Marinoni, Luiz Guilherme, A função das cortes supremas e novo CPC. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2015-mai-25/direito-civil-atual-funcao-cortes-supremas-cpc> . Acesso em 31.05.2016.