Apontamentos à Lei da Ficha Limpa e a controversa decisão técnica do Supremo

24/10/2016 às 12:23
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Norma de iniciativa popular, a LC nº 135 tem sido objeto de controvérsias desde que foi promulgada. Na opinião de seus defensores, independente do resultado da segunda fase do pleito, no próximo domingo, a recente decisão do STF tolheu-lhe a efetividade

RESUMO

Norma de iniciativa popular, legitimada pelo anseio social por representação pautada na probidade dos agentes políticos, a lei complementar nº 135 (Lei da Ficha Limpa) tem sido objeto de controvérsias desde que foi promulgada em junho de 2010. Na mais recente, no último mês de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a rejeição das contas do chefe do Executivo só pode torná-lo inelegível se o julgamento da Câmara for realizado; o que, na opinião de parte dos defensores da lei, tolheu-lhe, pelo menos parcialmente, a efetividade. O presente, assentado sob tal perspectiva, revisita a citada norma, abordando suas principais características, bem como mudanças trazidas pelo referido dispositivo.

Palavras-chave: Direito eleitoral; lei complementar; ficha limpa.

ABSTRACT

Standard of popular initiative, legitimized by social yearning for representation based on probity of political agents, supplementary law No. 135 (clean record law) has been the subject of controversy since it was promulgated in June 2010. In the most recent, last August, the Supreme Court (STF) decided that the rejection of the accounts of the Chief Executive can only make it ineligible if the trial Chamber is carried out; What, in the opinion of part of the defenders of the law, has crippled him, at least partially, the effectiveness. The present, seated under such perspective, revisits the cited standard, addressing its main features as well as changes brought by the said device.

Keywords: Electoral law; complementary law; clean slate.

INTRODUÇÃO

Desde que foi promulgada, há pouco mais de seis anos, a lei complementar nº 135 (Lei da Ficha Limpa) tem sido objeto de controvérsias.  Em especial, diga-se, em períodos eleitorais como o presente. A mais recente data do último mês de agosto, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que só a rejeição das contas de prefeitos por câmaras de vereadores tem o poder de declará-los inelegíveis, mesmo que sejam contas de quando o chefe do executivo municipal atua como ordenador de gastos.

Como efeito esperado, número considerável de candidatos considerados até então fichas-sujas puderam concorrer livremente na primeira fase do pleito. Até o fechamento deste artigo, dias antes da segunda etapa do processo eleitoral, não haviam sido publicados dados sobre quantos, efetivamente, conseguiram se eleger (e, claro, manter o cargo) em cada região do país. Certo, restava informado apenas que a Justiça barrou 2.329 candidaturas a prefeito, vice-prefeito e vereador com base na Lei da Ficha Limpa.   

Sem antecipar considerações sobre o mérito da eleição, tampouco da decisão do STF, cabe assinalar pelo menos duas observações pertinentes. Primeiro a LC nº 135 nasceu por iniciativa popular, coordenada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), obtendo cerca de 1,6 milhão de assinaturas, número mais que suficiente para que o projeto fosse levado ao Congresso Nacional e aprovado sob forte clamor moralizador. Segundo, como consabido, o papel das cortes constitucionais é zelar pela guarda da Constituição, sendo, em tese, a última instância a se pronunciar em torno de conflitos sobre o nosso pacto social. Essa posição singular, não raro, pode ocasionar discussões como a recente, quando se tem uma decisão judicial técnica, mas que notoriamente parece contrariar o interesse público.

À luz de tal questão paradoxal, o presente revisita a norma posta no epicentro do debate abordando suas principais características, bem como mudanças trazidas pelo referido dispositivo, para, por fim, tecer breves comentários.  

DA CONCEPÇÃO À EFETIVIDADE

Para todos os efeitos, a LC nº 135 (Lei da Ficha Limpa) pode ser considerada um dos mais vistosos exemplos de mobilização política da história recente. Fruto de iniciativa popular, por meio da Campanha da Ficha Limpa, o projeto de lei que deu origem à norma notabilizou-se por conquistar imensa adesão em um espaço de tempo relativamente pequeno. Também passou pela Câmara dos Deputados de forma célere para os padrões parlamentares, sendo posteriormente aprovada pelo Senado Federal com apenas uma alteração no texto original e, por último, sancionada pelo então presidente Lula, em maio de 2010.

Cabe, aliás, trazer à pauta uma importante observação. Apesar da previsão constitucional, como bem lembra Ávalo et. all (2014, p. 61-62), “até meados de 2010, a Lei Complementar nº 64/1990 (Lei das Inelegibilidades) não contemplava a vida pregressa dos candidatos como hipótese de inelegibilidade”.

Esta possibilidade só veio, de fato, a ser observada com a entrada em vigor da Lei da Ficha Limpa em junho do mesmo ano. Preleciona com propriedade o referido autor:  

Nesse contexto, conforme estabelece o art. 14, §9º, da Constituição da República, as regras de inelegibilidade buscam resguardar “a probidade administrativa, a moralidade para o exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”. Em consonância com o princípio da moralidade previsto na Constituição, a iniciativa da referida lei se deu por conta de um movimento, denominado Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), que contou com a assinatura de mais de 1,5 milhão de pessoas (ÁVALO et. all, 2014, p. 62).

Em resumo, a LC nº 135 impôs alterações profundas e relevantes à citada Lei das Inelegibilidades, tanto que, com o advento da nova norma, começou a emergir número considerável de questionamentos. A esse respeito assevera Neto:

Tão logo foi publicada, a nova lei passou a ser objeto de novas polêmicas: afinal de contas, não estaria a nova lei, ao admitir a inelegibilidade de pessoas condenadas por órgãos colegiados, sem trânsito em julgado da decisão, violando o princípio da presunção da inocência? A nova lei seria aplicável às eleições 2010 ou tão somente a partir das eleições municipais de 2012, tendo em vista o princípio da anualidade eleitoral, previsto no artigo 16 da Constituição? A nova lei atinge situações pretéritas, possibilitando o indeferimento de registro de candidaturas pleiteados por cidadãos condenados por órgãos colegiados do Poder judiciário antes da sua publicação? (NETO, 2015, p. 242).

Ávalo, consoante ao exposto, lembra que a primeira tratou da aplicação ou não do princípio da anualidade. Este, como preleciona a melhor doutrina, emana do disposto no art. 16 da Constituição Federal, cujo texto prevê que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.

A respeito da celeuma jurídica, rememora o autor:

Em que pese o inicial entendimento do Tribunal Superior Eleitoral e a polêmica ainda existente na doutrina nacional, quanto ao princípio da anualidade, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento pela inaplicabilidade da LC nº 135/2010 para as eleições de 2010 (ÁVALO et. all, 2014, p. 62)

Mas afinal, quais as mudanças que, com efeito, foram introduzidas no ordenamento eleitoral pela norma em tela?

Para responder pertinente questionamento podem-se enumerar algumas que se destacam no texto da lei complementar e recentemente foram objeto de apreciação em brilhante artigo da acadêmica Carla Mereles.

Da análise, depreende-se:

Não poderão se eleger os políticos que: a) Renunciam ao seu cargo a fim de não mais serem processados ou para fugir de condenação – esses não poderão se candidatar nas próximas duas eleições; b) Foram condenados por crimes de várias naturezas, variando entre improbidade administrativa, crimes contra o patrimônio público, de lavagem de dinheiro e ocultação de bens, abuso de autoridade, entre vários outros; c) Descumpriram prerrogativas de seus cargos previstas na Constituição, como de não serem donos de empresas que tenham contratos com o poder público, por exemplo; d) Que foram condenados por qualquer má prática relativa ao seu serviço no governo, que tenha a ver com a administração pública; e) Que perderam seus cargos por alguma infração que cometeram durante seus mandatos; f) Os que têm processos em andamento (que já foram aprovados) na Justiça Eleitoral; g) Os que têm processo de apuração de abuso de poder econômico ou político para a eleição na qual concorrem. (MERELES, 2016)

Esses, como bem rememora a autora, são apenas exemplos de parte das razões pelas quais um ficha-suja não pode concorrer. Existem muitos outros listados na lei, no entanto, que, apesar de igualmente importantes, não serão objeto deste breve ensaio, mas, por certo, merecem posterior apreciação do leitor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para além das demais controvérsias, compete-nos, a propósito do objeto central deste ensaio, retomar a polêmica trazida à pauta em sede de comentários finais. O STF, como informado antes, entendeu que só a rejeição das contas de prefeitos no âmbito do legislativo municipal correspondente pode declará-los inelegíveis, mesmo que sejam contas de quando o chefe do executivo atua como ordenador de gastos. Destarte, mesmo que o Tribunal de Contas dê parecer pela rejeição, os prefeitos podem se candidatar.

Trata-se de interpretação do art. 1º, I, “g”, da LC nº 64/1990 (Lei das Inelegibilidades). Ela diz que são inelegíveis os chefes de Executivo que tiverem suas contas rejeitadas “por decisão irrecorrível do órgão competente”. A tese vencedora, como se lê abaixo, foi prolatada pelo plenário do STF no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 848826:

Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. JULGAMENTO DAS CONTAS DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO COMO ORDENADOR DE DESPESAS. COMPETÊNCIA: PODER LEGISLATIVO OU TRIBUNAL DE CONTAS. REPERCUSSÃO GERAL. 1. Inadmissão do recurso no que diz respeito às alegações de violação ao direito de petição, inafastabilidade do controle judicial, devido processo legal, contraditório, ampla defesa e fundamentação das decisões judiciais (arts. 5º, XXXIV, a, XXXV, LIV e LV, e 93, IX, da CF/1988). Precedentes: AI 791.292 QO-RG e ARE 748.371 RG, Rel. Min. Gilmar Mendes. 2. Constitui questão constitucional com repercussão geral a definição do órgão competente – Poder Legislativo ou Tribunal de Contas – para julgar as contas de Chefe do Poder Executivo que age na qualidade de ordenador de despesas, à luz dos arts. 31, § 2º; 71, I; e 75, todos da Constituição. 3. Repercussão geral reconhecida.
(RE 848826 RG, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, julgado em 27/08/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-173 DIVULG 02-09-2015 PUBLIC 03-09-2015 )

Inegável, portanto, que a Lei da Ficha Limpa, tenha sofrido evidente derrota técnico-jurídica em termos de efetividade. Resta saber se, por conseguinte, há de se falar também em derrota ao princípio da Moralidade, enunciado em momento anterior e emanado do art. 37 da Constituição Federal.

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Nas semanas seguintes a decisão, como era esperado, esta impulsionou outras em tribunais estaduais, pautadas no efeito de verticalidade característico de deliberações do Supremo. Cito, a título de exemplo, julgamento de recurso eleitoral do TER-PR.

EMENTA - RECURSO ELEITORAL - ELEIÇÕES 2016 - REGISTRO DE CANDIDATURA (RRC) - CANDIDATO AO CARGO DE VICE_PREFEITO MUNICIPAL- DEFERIDO - ALEGAÇÃO DE INCORRÊNCIA EM CLÁUSULA DE INELEGIBILIDADE DIANTE DA REJEIÇÃO DE CONTAS DE GESTÃO PELO TCE. CONTAS DE CONVÊNIO ESTADUAL - ALÍNEA G, DO INCISO I, DO ART. 1º, DA LC Nº 64/90. NÃO INCIDÊNCIA. AUSÊNCIA DE JULGAMENTO DAS CONTAS PELA CÂMARA MUNICIPAL - RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. "Para os fins do artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64/1990, a apreciação das contas de Prefeito, tanto as de Governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos vereadores"; e "parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa, competindo exclusivamente à Câmara de Vereadores o julgamento das contas anuais do chefe do Poder Executivo local, sendo incabível o julgamento ficto das contas por decurso do prazo." (teses de repercussão geral decorrentes do julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários (REs) 848826 e 729744, do STF, j. 17/08/2016). 2. Assim, embora o candidato conste da lista do TCE de agentes públicos com contas julgadas irregulares, consoante entendimento da Suprema Corte, é necessário, para que seja inelegível, que o agente tenha referidas contas sido desaprovadas pela Câmara Municipal. 3. Recurso não provido.

(TRE-PR - RE: 17714 PORTO BARREIRO - PR, Relator: LOURIVAL PEDRO CHEMIM, Data de Julgamento: 25/09/2016,  Data de Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Data 25/09/2016)

Feitas tais considerações parece oportuno ponderar que, apesar de irretocavelmente técnica, a interpretação prolatada pelo Supremo choca-se, na essência, com o espírito moralizador emanado da Lei da Ficha Limpa.

Pior, claro, para o evidente anseio popular por uma política mais transparente, fundamentada no respeito aos princípios. Sob tal perspectiva, independente do resultado do pleito, retrocedemos um pouco.  

REFERÊNCIAS

ÁVALO, Alexandre et. all. O Novo Direito Eleitoral Brasileiro: manual de Direito Eleitoral. 2 ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2014.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 13 out. 2016.

__________. Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010. Altera a Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9o do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp135.htm>. Acesso em 13 out. 2016.

MERELES, Carla. Entenda a Lei da Ficha Limpa - Politize!. Disponível em: <http://www.politize.com.br/entenda-lei-da-ficha-limpa/>. Acesso em: 13 out. 2016.

NETO, Jaime Barreiros. Coleção sinopses para concursos: Direito Eleitoral. 5ª ed. Salvador, Juspodivm, 2015.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, RE 848826 RG, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, julgado em 10/08/2016, Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+848826%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EPRCR%2E+ADJ2+848826%2EPRCR%2E%29&base=baseRepercussao&url=http://tinyurl.com/kypzenl. Acesso em 13 out. 2016>.


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Sobre o autor
Wellington Cacemiro

Advogado, jornalista e pesquisador jurídico com publicações em revistas nacionais e internacionais. Graduado em Direito pela faculdade Multivix Cachoeiro Ensino, Pesquisa e Extensão Ltda., pós-graduado em Direito Processual Penal pelo Instituto Damásio de Direito da Faculdade Ibmec-SP, pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela mesma instituição e pós-graduando em Direito Penal pelo Instituto Damásio de Direito da Faculdade Ibmec-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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