Em 2016, Rodrigo da Cunha Pereira, advogado, Presidente do IBDFAM, a quem admiro pessoal, profissional e academicamente há quase 20 anos, publicou em sua página e no Facebook o instigante artigo “União Estável e Casamento: o paradoxo da igualdade”, onde manifesta com, notável e admirável humildade para um jurista tão experiente, sua dúvida sobre ser realmente bom estabelecer as regras para as uniões estáveis em similitude com o casamento.
O endereçamento do artigo é claro, como sói acontecer nos textos do Rodrigo, o julgamento do Recurso Extraordinário nº 878694, em que o Supremo Tribunal julga a legitimidade de se conferir tratamento desigual a cônjuges e companheiros, o que ocorre com a aplicação do artigo 1.790 do Código Civil de 2002, criticado fortemente pela doutrina especializada desde o seu nascedouro, e que agora, após sete votos positivos dos componentes da Corte Suprema, parece fadado a ser expungido do nosso ordenamento.
Este texto, escrito com profundo respeito pelo amigo, tem por objetivo dar seguimento aos temas levantados, além de criticar, de forma construtiva, obviamente, algumas das ponderações feitas.
Em seu artigo, Rodrigo considera saudável que as diferentes formas de constituição de família preservem suas peculiaridades, sem que isto signifique a superioridade de uma sobre a outra.
Razão assiste ao autor e assim tem sido em nosso ordenamento, a partir do momento em que a Constituição Federal de 1988 pavimentou o caminho para o reconhecimento de outras formas de conformação familiar. Não fossem as veredas abertas pela Carta Magna atual, e não poderíamos estar falando em famílias homoafetivas, famílias mosaico, famílias monoparentais, anaparentais, poliafetivas, unipessoais e tantas outras formas, todas com suas particularidades e sem hierarquia alguma entre elas.
Isso porque a Família, conforme dito pelo próprio Rodrigo em seu “Concubinato e União Estável” (Belo Horizonte: Del Rey. 1997, pág. 24), cuja cópia carinhosamente autografada tenho em mãos neste momento, a “Família não é um fenômeno natural”, mas sim uma construção cultural. O elemento que funda a família é o “elo psíquico estruturante, dando a cada membro um lugar definido, uma função”. E arremata, lapidar: “É nesta Estrutura familiar, que existe antes e acima do Direito, que devemos buscar, para sermos profundos, o que realmente é uma família, para não incorrermos em moralismos e temporalidades que só fazem impedir o avanço da ciência jurídica”.
Voltando ao “Paradoxo da Igualdade”, no texto de ontem, Rodrigo continua, asseverando que hoje a única diferença entre o casamento e a união estável restou fundamentalmente no fato de ser o cônjuge herdeiro necessário e o companheiro não, entendendo que é razoável que tais diferenças permaneçam. Isto não significa, segundo ainda o autor, a prevalência de uma sobre a outra, mas é exatamente essa diferenciação: que dá a possibilidade de escolha ao casal de constituir uma família, sem que o cônjuge seja necessariamente herdeiro. É esta diferença, portanto, que pode garantir a liberdade, um dos pilares de sustentação do Direito Civil.
Não podemos concordar com estas considerações. Em primeiro lugar, existem outras diferenças entre União Estável e Casamento, as quais talvez jamais deixem de existir, sem que isso signifique uma superioridade de um Instituto com relação ao outro, como podemos exemplificar abaixo, em uma lista que não se mostra fechada:
a) As formalidades para se ingressar no casamento e na união estável são diferentes;
b) O casamento produz seus efeitos, em regra, a partir da cerimônia válida; a escritura de união estável pode ter efeitos retroativos;
c) Os cônjuges podem firmar um pacto antenupcial, algo vedado aos companheiros;
d) Os cônjuges possuem a possibilidade de pleitear a anulação de seu casamento, com base nos artigos 1.550 a 1.561 do Código Civil; os companheiros não;
e) Os cônjuges estão sujeitos ao cometimento dos chamados “Crimes Contra o Casamento” (arts. 235 a 240) do Código Penal; os companheiros não estão.
Ademais, parece-nos evidente que, mesmo no casamento, a depender do regime de bens, o cônjuge não é colocado na condição de herdeiro, como por exemplo no regime da comunhão universal. Assim, bastará aos companheiros, em sua escritura de união estável, optarem por este ou outro regime de bens em que somente a meação seja devida ao sobrevivente e o companheiro também não será herdeiro. A liberdade dos casais em optarem por um ou outro regime e submeterem-se às suas consequências permanece intocada.
Já quanto ao fato de o herdeiro casado ser considerado um herdeiro necessário e o companheiro não, esse sim é um tratamento desigual o qual não tinha cabimento, como diz nossa querida amiga, a quem citarei pelas dezenas de autores que comungam da mesma opinião, Maria Berenice Dias (Manual das Sucessões: RT, 2016, pág. 76): Este tratamento diferenciado não é somente perverso. É flagrantemente inconstitucional. A união estável é reconhecida como entidade familiar pela Constituição Federal (CF 226, §3º) que não concedeu tratamento diferenciado a qualquer das formas de constituição da família.
Então, seguindo, nesta linha de pensamento, e concordando em gênero e número com o voto do relator, Ministro Luís Roberto Barroso, o regime sucessório sempre foi conectado à noção de família sendo, portanto, “inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil de 2002”.
Tal equiparação não implica, como já exposto, em uma igualdade completa entre união estável e casamento, tornando-os indistinguíveis. Diferenças continuam e continuarão a existir. Mas se por ambas as figuras, escolhidas ao talante dos contraentes, chega-se a uma entidade familiar protegida constitucionalmente, não cabe ao legislador infraconstitucional, distingui-las no campo sucessório.
Na verdade, o que propomos neste artigo é que o “Paradoxo da Igualdade” proposto por Rodrigo da Cunha Pereira, ainda que não concordemos com o termo em sua integralidade, pode ser um caminho para uma superação do Casamento Civil pela União Estável. Teríamos então um “Paradoxo da Superação”, no qual um instituto sobrepõe-se ao outro e acaba por tomar seu lugar (por que não?).
A União Estável vence no final? Não sabemos ainda, mas para fechar essa contribuição aos debates, partamos de duas premissas, as quais considero verdadeiras.
Primeira: no momento em que se dá início no Brasil a uma lenta separação entre Estado e Igreja, logo após a Proclamação da República, o país adota legislação criando, talvez na falta de um nome melhor, o “casamento civil”, instituto de inegável inspiração canônica, cujas alterações ao longo dos tempos, sempre foram verdadeiras epopeias, exatamente pelas inevitáveis comparações com o casamento religioso.
Basta lembrarmos da luta pela dissolubilidade do casamento pelo divórcio e pelo reconhecimento da possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não pode haver dúvidas que o fato de estarmos tratando do casamento civil, jamais impediu que a palavra “casamento” inspirasse as correntes mais conservadoras do Direito e da sociedade de se colocarem contrárias a tais mudanças, com argumentos que levavam a crer que o legislador civil pretendia na verdade alterar o Código Canônico ao invés da legislação civil.
Em segundo lugar, precisamos sempre lembrar que nesta perspectiva histórica, as relações não matrimoniais sempre foram vistas de modo torto pela sociedade e pelo Direito, sendo chamadas de “concubinárias”, não se conferindo a elas quaisquer direitos. E mesmo após a Constituição Federal ter alçado-as a categoria de entidades familiares, certas desequiparações injustas levavam-nos a chamá-las (não sem pesar) de “entidades familiares de segunda classe”, algo que com o tempo, e com muita luta, inclusive de entidades como o IBDFAM, se foi resolvendo.
Assim, entendo que tendo chegado ao estado de coisas atual, talvez estejamos assistindo ao início de um verdadeiro embate, em que não a união estável esteja em xeque, mas sim o próprio instituto “casamento civil”.
Talvez no futuro, as uniões estáveis superem o casamento civil. Talvez não. Como saber? A união estável deixou de ser o “patinho feio” do Direito de Família. Evoluiu, cresceu, ganhou status de verdadeira entidade familiar. Será que se transformará em uma entidade que supere e substitua o casamento civil? O tempo dirá.
De qualquer modo, entendo que manter a validade do artigo 1.790, isso sim significa “matar” pouco a pouco a união estável, desestimulando os contraentes a adoção de uma entidade familiar perfeitamente válida por conta das graves consequências para o companheiro supérstite, todas muito bem conhecidas por nós.
Que o julgamento continue logo e que seja onze a zero. Que este artigo seja entendido, sempre, como uma homenagem ao querido Rodrigo da Cunha Pereira, em toda a sua inestimável contribuição ao Direito de Família brasileiro. E que os debates continuem.