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Tutela antecipatória:

um estudo à luz da nova reforma do Código de Processo Civil

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30/06/2004 às 00:00
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Tipos e requisitos

            Antes de adentrarmos propriamente o exame do direito positivo, uma advertência: a análise que faremos aqui terá por base a idéia de que a tutela antecipatória genérica regulada pelo art. 273 do CPC e aquela relativa às obrigações de fazer e não fazer e, mais recentemente, à de entrega de coisa, dos arts. 461, §3o, e 461-A, §3o, do mesmo Código, não são dois institutos diversos, os dispositivos citados, ao contrário, integram a regulação legal de um mesmo fenômeno. Tendo isto em mente, passemos ao seu exame.

            Existem três tipos de tutela antecipatória que se diferenciam por seus requisitos ou pressupostos. A primeira e mais estudada é a tutela antecipatória fundada no "receio de dano irreparável ou de difícil reparação", conforme art. 273, I, ou no "justificado receio de ineficácia do provimento final", nos termos do art. 461, §3o; a segunda é a do art. 273, II, cabível em casos abuso de direito de defesa e de manifesto propósito protelatório do réu; e a terceira é do "pedido incontroverso", prevista no art. 273, §6o, acrescentado pela Lei no 10.444/02. Nos dois primeiros casos, há que se fazer presente também o requisito que o art. 273, caput, chama de "prova inequívoca" combinada com a "verossimilhança da alegação" e o art. 461, §3o, de relevância do fundamento da demanda, requisito este não diretamente aplicável ao terceiro tipo de antecipatória (porque aqui o que se quer é a incontrovérsia).

            Chamaremos os tipos de tutela antecipatória citados de antecipação assecuratória, antecipação por comportamento abusivo e antecipação do pedido incontroverso (24).

            Da prova inequívoca e da verossimilhança da alegação

            A redação do CPC para exprimir os requisitos da tutela antecipatória merece várias críticas. No art. 273, o legislador diz que o juiz poderá conceder a tutela antecipatória pleiteada "desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação". A contradição aqui é, a meu ver, manifesta: a prova inequívoca leva à certeza da alegação e não à sua verossimilhança, que, ao contrário, diz com a aparência da verdade ou com a probabilidade desta – os dicionários nos ensinam que verossimilhança é a qualidade ou caráter de verossímel, adjetivo que significa semelhante à verdade, que parece verdadeiro, provável.

            A doutrina procura soluções que dêem ao enunciado legal um sentido lógico aceitável. Nesse sentido, Cândido Rangel Dinamarco:

            "a dar peso ao sentido literal do texto, seria difícil interpretá-lo satisfatoriamente porque ‘prova inequívoca’ é prova tão robusta que não permite equívocos ou dúvidas, infundindo no espírito do juiz o sentimento de certeza e não de verossimilhança (...) aproximadas as duas locuções formalmente contraditórias contidas no art. 273 do Código de Processo Civil (prova inequívoca e convencer-se da verossimilhança), chega-se ao conceito de probabilidade, portador de maior segurança que a verossimilhança." (25)

            Contestando o entendimento anterior, José Carlos Barbosa Moreira tenta "salvar" o texto legal, explicando que o raciocínio da doutrina majoritária parte da premissa de que prova inequívoca é a prova com força persuasiva absoluta (a prova incontestável) ou relativa (que produz juízo de probabilidade), mas que, na verdade, há outra acepção para a expressão, que corresponderia simplesmente a entender que inequívoca é a prova cujo conteúdo autoriza apenas um entendimento. Sugere, então, o seguinte:

            "Se nos colocarmos no ponto de vista acima indicado, cessa toda e qualquer dificuldade para compatibilizar, na interpretação do art. 273, a qualidade de "inequívoca", exigível na prova, e o patamar de simples "verossimilhança" – ou de "probablidade", se se preferir – que a alegação precisa alcançar, na mente do juiz, para justificar a antecipação da tutela. Em duas etapas se desdobrará a perquirição do magistrado, diante da prova produzida. Primeira: é ela "inequívoca", no sentido de que só comporta um entendimento? Segunda: com esse entendimento, tem ela suficiente força persuasiva para fazer verossímil (ou provável) a alegação do requerente? Quer-nos parecer que a solução aqui proposta elimina os rangidos que inevitavelmente se ouvem na articulação, tal como habitualmente feita, das duas peças do art. 273, caput. Cada uma delas concerne a um aspecto do problema, e ambas se conjugam em perfeita harmonia na armação do mecanismo legal." (26)

            Não podemos concordar, entretanto, com tal conclusão. É que, ainda que "prova inequívoca" possa ter o significado que Barbosa Moreira nela percebeu, esse significado estaria contido na idéia de verossimilhança, o que não nos levaria a conclusão diferente daquela idéia de probabilidade. E isso porque não se pode conceber uma prova equívoca (nos termos em que concebe tal expressão o processualista citado, isto é, que "tem mais de um sentido ou se presta a mais de uma interpretação") que seja, ao mesmo tempo, persuasiva.

            Da mesma forma, falar-se em fundamento relevante da demanda também não é maneira feliz de colocar as coisas. O fundamento do pedido do autor pode ser relevante sem, contudo, convencer, situação em que não estará autorizada a concessão da tutela antecipatória

            Na verdade, o que cumpre investigar é se o requisito anterior, comum às duas formas de tutela antecipatória previstas nos incisos do art. 273, caput, se diferencia em alguma medida do clássico fumus boni iuris exigido para a tutela cautelar, bem como de outras fórmulas legais autorizadoras de medidas antecipatórias – "quando for relevante o fundamento" (art. 7o, II, da Lei no 1.533/51); "relevante fundamentação do recurso" (art. 588 do CPC).

            Em prol de uma distinção de grau posicionam-se Cândido Rangel Dinamarco, para quem a verossimilhança remete a uma prova mais robusta que o fumus boni iuris exigido para a tutela cautelar (27), e Teori Albino Zavascki, que argumenta que, para a concessão da tutela antecipatória, "o fumus boni iuris deverá estar (...) especialmente qualificado" (28).

            Com a devida vênia dos ilustres processualistas, preferimos nos posicionar junto à Eduardo Talamini (29), para dizer que a verossimilhança da alegação ou o fundamento relevante da demanda em nada se distingue do fumus boni iuris do processo cautelar ou do mandado de segurança. Ou, de outra forma, tanto uns quanto outro possuem graus de exigência que variarão de acordo com os efeitos nocivos que o provimento, antecipatório ou cautelar, poderá provocar no caso de o exame definitivo da causa chegar a conclusão que contraria a tutela provisória.

            De modo que, falar-se em forte probabilidade para diferenciar a tutela antecipatória da tutela cautelar é construção artificial. Então, perguntamos, a probabilidade poderá ser "fraca" para fins de concessão de tutela cautelar? Tudo dependerá, repetimos, dos efeitos que vier a provocar na esfera jurídica do réu...

            Da antecipação assecuratória

            Quanto aos requisitos alternativos (os dos incisos do caput do art. 273), temos que o primeiro corresponde ao periculum in mora, que a doutrina identifica com o requisito do artigo 798 do CPC.

            Será imperiosa a antecipação da tutela, portanto, naquelas situações em que a manutenção do bem disputado na esfera jurídica do réu puder causar ao autor que tem razão um dano tal que a sentença definitiva, desacompanhada daquela providência prévia, será incapaz de dar-lhe tudo aquilo a que tem direito.

            O periculum in mora, como se vê, envolve o risco de ineficácia prática do provimento final, risco esse que, se concretizado, equivaleria a verdaderia negativa de prestação da tutela jurisdicional.

            Outrossim, o risco a que nos referimos deve ser concreto e atual, não correspondendo, por exemplo, ao mero dano marginal causado pelo tempo do processo (30).

            Da antecipação por comportamento abusivo

            O abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu podem ensejar a concessão de tutela antecipatória, independentemente da existência de perigo de dano irreparável, com o quê se busca proteger o autor do dano marginal do processo, nesse caso potencializado pelo comportamento da parte adversa. Com base nisso, há quem conteste a natureza cautelar lato sensu da tutela antecipatória (31).

            A doutrina dominante entende que o manifesto propósito protelatório do réu deverá ser aferido no curso do processo, após a regular triangularização da relação processual, motivo pelo qual tal conduta se confunde com o abuso do direito de defesa, sendo, na verdade, uma de suas formas de expressão. Assim sendo, não seria cabível pleitear-se a tutela antecipatória com fundamento, por exemplo, na alegação de que, antes da instauração do processo, o réu-devedor vinha opondo obstáculos sucessivos ao cumprimento de sua obrigação.

            Não concordo com tal orientação. É claro que quando se fala em "abuso de direito de defesa" pressupõe-se o exercício da defesa, daí se concluindo que a aferição deste requisito só é possível com base em atos praticados no âmbito do processo (no seu curso e nos seus autos). O manifesto propósito protelatório do réu, diferentemente, é expressão muito mais ampla, que pode muito bem abranger – e deve fazê-lo em homenagem ao princípio da efetividade da jurisdição – atos prévios ao processo, demonstrativos de tentativas de retardar o cumprimento do dever jurídico correspondente ao direito buscado pelo autor.

            Este requisito alternativo é, sem dúvida, um dos aspectos de maiores controvérsias doutrinárias da tutela antecipatória. Ao contrário do requisito do periculum in mora, autores de nomeada têm, aqui, posicionamentos absolutamente divergentes. E, sem dúvida, aquele que identifica o maior número de situações abrigadas pelo art. 273, II, do CPC, é Luiz Guilherme Marinoni.

            Para o citado jurista, podem ser objeto de antecipação de tutela fundada no abuso do direito as seguintes situações (32):

            - Casos em que concorrem a evidência do direito do autor e a fragilidade da resistência do réu;

            - Casos em que o réu, sem contestar os fatos constitutivos narrados pelo autor, apresenta exceção substancial indireta infundada;

            - Casos em que o autor apresenta prova dos fatos constitutivos do pretenso direito e o réu contesta por meio de defesa provavelmente infundada que exija instrução probatória (é o que Marinoni chama de tutela antecipatória através da técnica monitória);

            - Casos de não-contestação parcial ou de reconhecimento parcial do pedido;

            - Casos em que é possível o julgamento antecipado de um ou mais de um dos pedidos cumulados;

            - Casos de julgamento antecipado de parcela do pedido;

            - Casos de abuso do direito de recorrer;

            - Casos que tratam de matéria já sumulada pelos tribunais.

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            Em extremo oposto, posiciona-se Teori Albino Zavascki, para quem, "evidenciam-se escassas, na prática, as hipóteses de concessão de tutela antecipada por abuso do direito de defesa" (33).

            O entendimento de Marinoni, outrossim, ao lado do qual me posiciono, decorre de uma concepção sistêmica do instituto da tutela antecipatória, que, como ele deixa claro nas primeiras páginas de sua multicitada obra, A antecipação da tutela, é "uma técnica de distribuição do ônus do tempo do processo" (34), que poderá inclusive, em algumas das situações anteriores, fundar-se em cognição exauriente e produzir coisa julgada material (35). Nessa perspectiva, a tutela antecipatória, como meio de harmonizar os princípios da segurança jurídica e da efetividade da jurisdição, tem por escopo também a concretização do princípio da igualdade material (36).

            O certo é que algumas das propostas de Marinoni foram recepcionadas pela Lei no 10.444/02, deslocadas, porém, para uma terceira hipótese de antecipação de tutela. Isto evidencia que o instituto deve ser mais uma vez repensado.

            Da antecipação do pedido incontroverso

            O novo §6o do art. 273 do CPC diz que "a tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso".

            A lei fala em incontrovérsia quanto a um ou mais dos pedidos cumulados ou parcela deles. Mas, na verdade, o que poderá estar incontroverso no processo são os fatos e a interpretação do direito na qual se apóia o autor para pleitear em juízo. E esta incontrovérsia decorre ou da ausência de contestação, total ou parcial, ou do reconhecimento expresso do pedido por parte do réu. A qual destas situações refere-se a lei? (37)

            Acredito – com base na diretriz que adotei, de conferir ao texto legal o significado que empreste ao processo a máxima efetividade – que tanto a ausência de contestação, total ou parcial, como o reconhecimento do pedido estão contemplados no §6o do artigo 273. Assim sendo, tratando-se, em regra, de direito disponível, e estando presente, no primeiro caso (ausência de contestação), no mínimo a plausibilidade do direito invocado, é de ser antecipada a tutela.

            Veja-se, então, que, apesar de o CPC ser omisso a respeito, pelo menos no caso de ausência de contestação, não se dispensa, na hipótese de que ora se trata, o exame da verossimilhança da alegação. Este somente não será exigível no caso de reconhecimento total ou parcial de pedido relativo a direito disponível. É que a ausência de contestação, total (que equivale à revelia) ou parcial (ausência de impugnação específica), apenas induz, quanto aos fatos alegados pelo autor e não contestados, a presunção de veracidade, enquanto que o reconhecimento jurídico do pedido, total ou parcial, "não tem por objeto um ou mais fatos, mas o próprio pedido do autor" (38).

            A não-contestação, na verdade, traduz uma situação de especial qualificação da plausibilidade da alegação do autor, chamando-se a atenção para o fato de que, em tal hipótese, não se podem reputar verdadeiros os fatos naquelas mesmas hipóteses em que o art. 320 do CPC diz que a revelia não produz seu efeito material, bem como nos casos do art. 302 do mesmo Código.

            Parece evidente também que, apesar da letra da lei, o dispositivo sob exame se aplica aos casos em que haja um único pedido que venha a ser parcialmente reconhecido ou não contestado (ou seja, casos em que não haja cumulação de pedidos).

            Este tipo de antecipação de tutela traz vários questionamentos. Como vimos acima, antes da "reforma da reforma", Marinoni já propugnava que a antecipação poderia ser concedida em casos que tais com fundamento em abuso de direito de defesa. E alertava para o fato de que, nesses casos, a tutela antecipatória estaria baseada em cognição exauriente, a decisão que a veicula sendo apta a fazer coisa julgada material (como já registrei na Nota , acima). Vejamos o que diz o doutrinador:

            "A tutela antecipatória, através das técnicas da não-contestação e do reconhecimento jurídico (parcial) do pedido, é uma tutela anterior à sentença, mas não é uma tutela fundada em probabilidade ou verossimilhança. A tutela antecipatória, nas hipóteses ora estudadas, não é fundada em cognição sumária, compreendida como a coginição que se contrapõe à cognição exauriente. Portanto, a tutela antecipatória, nesses casos, não apresenta risco ao direito de defesa ou ao princípio do contraditório." (39)

            E, adiante, quando trata da "tutela antecipatória através do julgamento antecipado de um (ou mais de um) dos pedidos cumulados":

            "A tutela antecipatória, neste caso estará antecipando o momento do julgamento do pedido. A tutela não é fundada em cognição sumária, mas sim em cognição exauriente, produzindo coisa julgada material." (40)

            Sobre tal posicionamento, comentou Athos Gusmão Carneiro, ainda antes da última alteração legislativa:

            "O alvitre, conquanto realmente muito valioso "lege ferenda", até mesmo porque a ausência de controvérsia equivale, ontologicamente, a um "reconhecimento parcial do pedido", (servindo a AT como "meio processual" para alcançar o bem da vida, embora provisoriamente – Nelson Nery Jr., in Aspectos Polêmicos..., pp. 388-389), parece-nos de difícil aceitação em face do direito legislado.

            A hipótese configuraria caso de parcial julgamento antecipado da lide, regido pelo art. 330 do CPC. Teríamos, então, um provimento judicial versando sobre apenas uma parte do mérito, mas sem a potencialidade de por termo ao processo: decisão interlocutória e, portanto, impugnável mediante agravo.

            Conclusão: parte do mérito seria sujeito ao crivo da segunda instância mediante recurso de agravo, sob prazo de 10 dias e privado de efeito suspensivo, com julgamento sem revisor e sem sustentação oral; e o restante do mérito seria ao final objeto da sentença, com apreciação pelo colegiado de segundo grau através de apelação com prazo de 15 dias e sob as garantias de um contraditório mais acentuado.

            Além disso, é de sublinhar que nem sempre a questão relativa à "amplitude" da contestação se ostenta com suficiente nitidez, e podem surgir controvérsias sobre se (ou qual) determinada parcela do pedido realmente não mereceu contradita, ou se talvez teria sido impugnada implicitamente.

            Diante de tais percalços, a melhor solução, pelo menos na aguarda de novidades legislativas, será admitir a AT das parcelas ou do(s) pedido(s) não contestados, em decisão que será confirmada, ou não, na sentença a ser prolatada após o contraditório pleno." (41) [itálico original]

            Minha opinião, nesse ponto, está a meio caminho dos dois posicionamentos anteriores. Entendo, com efeito, que a tutela antecipatória prevista no §6o do art. 273 pode ou não ser concedida com base em cognição exauriente. A tutela antecipatória será concedida com base em cognição sumária no caso de, configurada a ausência total ou parcial de contestação e, conseqüentemente, a admissão dos fatos afirmados pelo autor como verdadeiros (ou de parcela deles), o juiz, após examiná-los, concluir pela verossimilhança do direito invocado, entendendo que ainda há prova a ser produzida no processo que possa alterar tal conclusão. Se, entretanto, não houver mais qualquer possibilidade de produção de provas que possam influir na convicção do magistrado sobre quem tem a razão, ele estará pronto para proferir uma sentença parcial – deverá, então, proceder ao julgamento antecipado e fracionado da lide (42), devendo, concomitantemente, antecipar a tutela, a qual, nesse caso, se fundará em cognição exauriente.

            O mesmo raciocínio vale para o caso de haver expresso reconhecimento parcial ou total de um ou mais dos pedidos pelo réu. Apenas que, nessa hipótese, o magistrado não examinará o direito, mas limitar-se-á a averiguar se ele é daqueles disponíveis, caso em que proferirá, desde logo, o julgamento antecipado e fracionado da lide, acompanhado da tutela antecipatória (43).

            Registre-se que Luiz Guilherme Marinoni, na última edição de sua belíssima obra Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença, que ganhou novo título, Tutela antecipatória e julgamento antecipado: parte incontroversa da demanda, alterou seu entendimento sobre a possibilidade de a decisão que antecipa a tutela tornar-se imutável por força da coisa julgada. É o que se depreende da leitura do seguinte trecho:

            "A tutela antecipatória, nos casos de não-contestação ou de reconhecimento jurídico (parcial) do pedido, deve ser requerida com base no § 6o dp art. 273.

            A decisão que dela trata configura decisão interlocutória, uma vez que não põe termo ao processo, e desta forma pode ser atacada por meio de agravo, quando poderá ser postulada ao relator a suspensão dos efeitos da decisão impugnada ou a imediata concessão da tutela antecipatória negada (art. 527, III, CPC).

            Não há dúvida de que a decisão que toma em consideração a não-contestação ou o reconhecimento jurídico parcial funda-se em cognição exauriente e, portanto, poderia em tese produzir coisa julgada material. Contudo, sabe-se que a coisa julgada material constitui questão de política legislativa, e o legislador da 2a etapa da reforma do Código de Processo Civil preferiu tratar desta tutela como sujeita á confirmação ou revogação da sentença. Note-se que o art. 273 não ganhou alteração no que tange à possibilidade de revogação ou modificação da tutela, prevista em seu § 4o.

            Perceba-se, porém, que o fato de a tutela não produzir coisa julgada material, e assim estar sujeita a confirmação, não tem o condão de alterar a cognição que lhe é inerente. Melhor explicando: não é pela razão de que o art. 273 afirma que a tutela deve ser confirmada na sentença que ela terá que ser admitida como tutela baseada em cognição sumária. Ao contrário, se esta tutela é deferida nos casos de não-contestação ou de reconhecimento parcial do pedido, é pouco mais do que evidente que ela é gerada por uma decisão baseada em cognição exauriente." (44) [itálico original]

            Acompanho o ilustre autor nas suas conclusões sobre a coisa julgada, não comungando, entretanto, pelas razões antes expostas, do entendimento de que a tutela fundada no pedido incontroverso necessariamente decorra de cognição exauriente.

            Da irreversibilidadde

            Além dos requisitos positivos vistos até aqui, pode-se acrescentar um requisito negativo, consubstanciado no texto do art. 273, §2o, segundo o qual "não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado".

            Trata-se de outro aspecto sensível da tutela antecipatória. O que se discute, aqui, é a questão da inafastabilidade relativa deste requisito negativo, ou, em outras palavras, a possibilidade de ser concedida a tutela antecipatória ainda quando presente o risco (ou a certeza) de irreversibilidade. A doutrina aponta no sentido de temperar a letra da lei com o princípio da efetividade da tutela jurisdicional, o que somente será possível por meio de uma ponderação de valores ou de uma "valoração comparativa de riscos", como sugere José Carlos Barbosa Moreira (45).

            Athos Gusmão Carneiro sistematizou bem o assunto, concluindo que o requisito é inaplicável nos casos de "recíproca irreversibilidade":

            "Com certa freqüência, o pressuposto da irreversibilidade ficará "superado" ante a constatação da "recíproca irreversibilidade". Concedida a AT, e efetivada, cria-se situação irreversível em favor do autor; denegada, a situação será irreversível em prol do demandado.

            Assim, v.g., duas associações automobilísticas pretendem cada qual disputar a sua competição em um mesmo autódromo e na mesma data; contra a associação desfavorecida pela decisão, quer a autora como a ré, surgirá situação irreversível no plano dos fatos (ressalvadas eventuais compensações por perdas e danos). Teori Zavascki lembra o caso de mercadoria perecível retida na alfândega para exame sanitário, estando os fiscais em greve: se não liberada, irá a mercadoria tornar-se imprestável; se liberada independentemente de exame sanitário, será comercializada sem esta precaução – ambas as situações irreversíveis (art. In A Reforma do CPC, Ed. Saraiva, 1996, p. 163).

            Cabe ao juiz, escreveu Alexandre de Freitas Câmara, "proteger o interesse preponderante, aplicando o princípio da proporcionalidade, ainda que isto implique conceder a antecipação de tutela em situações em que esta produza efeitos irreversíveis" (Lineamenteos do Novo Processo Civil, 2a ed., Ed. Del Rey, p. 75). O princípio da proporcionalidade, no magistério de Karl Larenz, definirá os limites em que é lícito satisfazer um interesse, mesmo à custa de outro interesse igualmente merecedor de tutela." (46) [itálico original]

            Nesta perspectiva, a conclusão não poderia mesmo ser outra. No caso de perigo de irreversibilidade, a solução não está pronta na lei (no sentido da negativa da concessão da tutela antecipatória). O art. 273, §2o, do CPC, deve ser entendido sempre como um princípio geral que rege a matéria, a ser mitigado diante do caso concreto, se necessário.

            Em ponto de vista diverso, merecem destaque, mais uma vez, as lições de Luiz Guilherme Marinoni que, após diferenciar a irreversibilidade do provimento da irreversibilidade dos efeitos fáticos do provimento e criticar a confusão que reina na doutrina a respeito, explica que:

            "O que o artigo 273 veda, quando fala que a tutela não poderá ser concedida quando houver perigo de "irreversibilidade do provimento antecipado" – que nada tem a ver, repita-se, com irreversibilidade dos efeitos fáticos do provimento – são determinadas declarações e constituições provisórias. (...).

            Quanto o artigo 273 afirma que a tutela não poderá ser concedida quando houver perigo de irreversibilidade do provimento, ele está proibindo, por exemplo, a antecipação da constituição de uma relação de filiação ou a antecipação da desconstituição de um casamento.

            (...) Não há dúvida que é impossível admitir, de forma generalizada, a antecipação da declaração e da constituição, já que é inconcebível a tutela antecipatória nas ações relativas ao estado ou à capacidade das pessoas." (47) [itálico original]

            De modo que, segundo o ilustre jurista, não se pode retirar do art. 273, §2o, do CPC a vedação à tutela antecipatória no caso de haver risco de irreversibilidade dos efeitos do provimento – o dispositivo legal diz respeito a coisa diversa (48). Quanto àquela, conclui, com a maior parte da doutrina, não poder prevalecer, devendo o juiz aplicar ao caso concreto o princípio da proporcionalidade.

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Sobre a autora
Ana Paula Ribeiro Rodrigues

Bacharel em direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Ana Paula Ribeiro. Tutela antecipatória:: um estudo à luz da nova reforma do Código de Processo Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 358, 30 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5406. Acesso em: 26 dez. 2024.

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