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Tutela antecipatória:

um estudo à luz da nova reforma do Código de Processo Civil

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30/06/2004 às 00:00
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Eficácia do provimento

            Uma questão importante, de grande relevância prática, refere-se à eficácia do provimento antecipatório da tutela. Teria ele a mesma eficácia do provimento final fundado em cognição exauriente, isto é, da sentença? E mais: a tutela antecipatória é compatível com todas as cinco espécies de ação de conhecimento, segundo a tradicional classificação com base em sua eficácia – declaratória, constitutiva, condenatória, mandamental e executiva lato sensu?

            Comecemos pela análise da segunda pergunta. De início, lembramos que nunca houve dúvida sobre a possibilidade de antecipação de tutela mandamental e executiva lato sensu. Estão aí, para comprová-lo, as liminares em mandado de segurança (eficácia mandamental, em regra) e em ações possessórias (eficácia executiva lato sensu).

            A doutrina debate, entretanto, sobre o cabimento de antecipação da tutela em sede de ação declaratória e de ação constitutiva, predominando o entendimento de haver entre o instituto e tais tipos de ação um certo grau de incompatibilidade. Quanto à ação declaratória, argumentam que uma decisão provisória não pode antecipar a declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica porque a esta declaração são ínsitas a certeza e definitividade, que só podem fundar-se em cognição exauriente. Da mesma forma, uma decisão provisória não poderia constituir ou desconstituir uma situação jurídica. Mais ainda, argumentam que tais tipos de provimento nunca se sujeitariam a risco de lesão irreparável, porque a declaração de certeza e a constituição de situação jurídica sempre seriam possíveis.

            Ocorre que antecipar a tutela não corresponde exatamente à antecipação do provimento final. Objeto da antecipação são os efeitos práticos deste provimento, identificáveis tanto na tutela declaratória quanto na constitutiva – o fato de estas serem chamadas de tutelas meramente ideais, porque não atuam sobre a vontade do réu, não significa que elas não produzam efeitos, sob pena de revelarem-se sem nenhuma utilidade para o autor.

            A sentença constitutiva, que constitui ou desconstitui uma relação jurídica, terá por efeito prático impedir que se negue ao autor, com fundamento, respectivamente, na inexistência ou existência dessa relação jurídica, qualquer pretensão. É comum, por exemplo, a fixação de aluguel provisório nas ações de revisão de aluguel decorrente de contrato de locação.

            O mesmo vale para a ação declaratória. Um bom exemplo, neste campo, é o da possibilidade de antecipação de tutela para fins de reconhecimento provisório da autenticidade de um documento contestado na fase de habilitação de uma licitação aberta pelo Poder Público (49).

            E, em qualquer caso, não seria preciso, a rigor, que o autor pedisse expressamente o reconhecimento daqueles efeitos específicos. É que, como bem notou Luiz Guilherme Marinoni "não há motivo que possa impedir, na perspectiva técnico-processual, uma constituição ou declaração fundada em cognição sumária" (50). O que ocorre é que, para justificar a utilidade da antecipação, o autor terá que fazer referência, na sua narrativa dos fatos, àqueles efeitos desejados.

            Pode-se dizer que, hoje, existe uma aceitação geral pela doutrina da antecipação da tutela em ações declaratórias e constitutivas. Humberto Teodoro Júnior resume bem a questão:

            "Qualquer sentença, mesmo as declaratórias e constitutivas, contém um preceito básico, que se dirige ao vencido e que se traduz na necessidade de não adotar um comportamento que seja contrário ao direito subjetivo reconhecido e declarado ou constituído em favor do vencedor. É a sujeição do réu a esse comportamento negativo ou omissivo em face do direito do autor que pode ser imposto por antecipação de tutela, não só nas ações condenatórias, como também nas meramente declaratórias e nas constitutivas. Reconhece-se, provisoriamente, o direito subjetivo do autor e impõe-se ao réu a proibição de agir de maneira contrária ou incompatível com a facultas agendi tutelada." (51)

            Nem se diga que, nesses casos, os efeitos antecipados teriam natureza puramente cautelar. Isto não é correto porque a medida cautelar, lembremo-nos, apenas visa resguardar a utilidade do processo, a evitar o perecimento daqueles resultados que decorrerão da sentença favorável, não conferindo ao autor o que ele só poderia obter após a prolação da sentença de mérito favorável.

            Quanto à tutela condenatória, não há nenhum óbice à antecipação do principal efeito da sentença condenatória, isto é, a sua força para promover a execução forçada, para autorizar a instauração do processo de execução (52). Execução provisória, nesse caso, porque fundada em decisão não definitiva (título executivo provisório). Ocorre que tal solução não atende aos fins da antecipação porque, como bem observa Luiz Guilherme Marinoni, "não faz parte do espírito da execução de título a necessidade de atuação célere do comando judicial" (53).

            A decisão antecipatória, mesmo que tenha por objeto algum tipo de "condenação", deve ter eficácia preponderantemente mandamental ou executiva lato sensu, conforme o caso. Tem que ser efetivada (e não "executada") por meio de ordens dirigidas ao réu, ou diretamente pela determinação de medidas subrogatórias no próprio processo de conhecimento. A desobediência por parte do réu ou a oposição de óbices ao cumprimento da decisão caracterizará infração do dever previsto no art. 14, V, do CPC, com as alterações da Lei no 10.358/01 (54), bem como, no caso de provimento mandamental, o crime do art. 330 do Código Penal (55).

            Assim sendo, no caso da tutela que antecipa os efeitos de sentença condenatória, não há que se falar em instauração de novo processo – e isso vale, inclusive, para a tutela antecipatória que determina o pagamento de quantia certa. No próprio processo de conhecimento serão observadas as regras do processo de execução que se mostrarem úteis e adequadas, como a possibilidade de exigência de medidas de contracautela, não sendo cabíveis embargos do executado, qualquer defesa do réu devendo ser apresentada por simples petição. Este o sentido que grande parte da doutrina, com alguma variação, já emprestava ao art. 273, § 3o, do CPC (56), e que, segundo penso, veio a ser confirmado pela redação dada pela Lei no 10.444/02 (com destaque para a substituição do termo "execução" por "efetivação").

            De registrar-se que a possibilidade de ser proferida ordem para pagamento de quantia certa é reconhecida expressamente pelo Projeto de Lei no 7.506/02, apresentado à Câmara dos Deputados pelo Poder Executivo, no qual pretende-se limitar a antecipação de tutela nesses casos, condicionando-a à ouvida prévia do réu, sob a justificativa de evitar abusos em pleitos liminares (57).

            A resposta à primeira pergunta que fizemos ao iniciar o capítulo é, então, por tudo o que foi visto, negativa – a tutela antecipatória não tem necessariamente a mesma eficácia preponderante do provimento final fundado em cognição exauriente (58).


Conclusões

            1.A tutela antecipatória consiste, basicamente, na entrega da prestação jurisdicional em momento anterior à formação da convicção definitiva do julgador, pela qual se autoriza ou determina a prática ou a abstenção de atos que têm como resultado a efetiva fruição de um direito provisoriamente reconhecido.

            2.A tutela antecipatória representa um instrumento de harmonização, diante do caso concreto, dos princípios da efetividade da juridição e da segurança jurídica, aquele decorrente do princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional e este, dos princípios da ampla defesa e do contraditório e do devido processo legal.

            3.As tutelas provisórias, antecipatórias ou puramente cautelares, tanto quanto a tutela definitiva, têm dignidade constitucional.

            4.A tutela antecipatória tem natureza satisfativa, isto é, volta-se à realização provisória do próprio direito finalisticamente buscado, não se confundindo com a tutela puramente cautelar, embora ambas tenham regime jurídico similar.

            5.As tutelas antecipatória e cautelar pura são funcionalmente e estruturalmente similares, mas, ainda assim, merecem ser diferenciadas. Primeiro porque, apesar de o CPC hoje permitir a concessão de tutela cautelar em caráter incidental, que seguirá o mesmo procedimento da tutela antecipatória (novo §7o do artigo 273 do CPC, acrescentado pela Lei no 10.444/02), a recíproca não é verdadeira, ou seja, com regra, não é possível a instauração de processo preparatório que tenha por objetivo a obtenção de tutela antecipatória.

            6.Conquanto o CPC caminhe cada vez mais no sentido de unificar os dois tipos de tutela, vigora em relação à antecipatória, em toda a sua plenitude, o princípio dispositivo, sendo este, ao contrário, mitigado no âmbito da tutela cautelar stricto sensu, conforme artigo 273, caput, do CPC, em contraste com o que prevêem os artigos 798 e 799 do mesmo Código.

            7.A tutela antecipatória genérica regulada pelo art. 273 do CPC e aquela relativa às obrigações de fazer e não fazer e, mais recentemente, à de entrega de coisa, dos arts. 461, §3o, e 461-A, §3o, do mesmo Código, integram a regulação legal de um mesmo instituto jurídico.

            8.O direito positivo brasileiro expressamente prevê os seguintes tipos de tutela antecipatória: antecipação assecuratória, antecipação por comportamento abusivo e antecipação do pedido incontroverso, cada um com requisitos e características próprias.

            9.A exigência de verossimilhança da alegação ou de fundamento relevante da demanda em nada se distingue do fumus boni iuris do processo cautelar ou do mandado de segurança – tanto uns quanto outro possuem graus de exigência que variarão de acordo com os efeitos nocivos que o provimento, antecipatório ou cautelar, poderá provocar no caso de o exame definitivo da causa chegar a conclusão que contraria a tutela provisória.

            10.Na antecipação assecuratória, além do fumus boni iuris, exige-se o periculum in mora, que está presente nas situações em que a manutenção do bem disputado na esfera jurídica do réu puder causar ao autor que tem razão um dano tal que a sentença definitiva, desacompanhada daquela providência prévia, será incapaz de dar-lhe tudo aquilo a que tem direito. Tal dano, outrossim, deve decorrer de um risco concreto e atual, não correspondendo ao mero dano marginal causado pelo tempo do processo.

            11.Na antecipação por comportamento abusivo, exige-se, além do fumus boni iuris, a configuração de abuso de direito de defesa ou do manifesto propósito protelatório do réu, independentemente da existência de perigo de dano irreparável, com o quê se busca proteger o autor do dano marginal do processo, nesse caso potencializado pelo comportamento da parte adversa.

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            12.A antecipação por comportamento abusivo é, sem dúvida, um dos aspectos de maiores controvérsias doutrinárias da tutela antecipatória, sendo certo que algumas das propostas de Luiz Guilherme Marinoni sobre o tema foram recepcionadas pela Lei no 10.444/02, deslocadas, porém, para uma terceira hipótese de antecipação de tutela.

            13.A antecipação do pedido incontroverso está prevista no novo §6o do art. 273 do CPC. A lei fala em incontrovérsia quanto a um ou mais dos pedidos cumulados ou parcela deles. Mas, na verdade, o que poderá estar incontroverso no processo são os fatos e a interpretação do direito na qual se apóia o autor para pleitear em juízo. E esta incontrovérsia decorre ou da ausência de contestação, total ou parcial, ou do reconhecimento expresso do pedido por parte do réu. Cabe à doutrina dizer a qual destas situações se refere a lei, havendo posicionamentos discordantes sobre o assunto.

            14.Acredito que tanto a ausência de contestação, total ou parcial, como o reconhecimento do pedido estão contemplados no §6o do artigo 273. Assim sendo, tratando-se, em regra, de direito disponível, e estando presente, no primeiro caso (ausência de contestação), no mínimo a plausibilidade do direito invocado, é de ser antecipada a tutela.

            15.A tutela antecipatória prevista no §6o do art. 273 pode ou não ser concedida com base em cognição exauriente. A tutela antecipatória será concedida com base em cognição sumária no caso de, configurada a ausência total ou parcial de contestação e, conseqüentemente, a admissão dos fatos afirmados pelo autor como verdadeiros (ou de parcela deles), o juiz, após examiná-los, concluir pela verossimilhança do direito invocado, entendendo que ainda há prova a ser produzida no processo que possa alterar tal conclusão. Se, entretanto, não houver mais qualquer possibilidade de produção de provas que possam influir na convicção do magistrado sobre quem tem a razão, ele estará pronto para proferir uma sentença parcial – deverá, então, proceder ao julgamento antecipado e fracionado da lide, devendo, concomitantemente, antecipar a tutela, a qual, nesse caso, se fundará em cognição exauriente.

            16.O mesmo raciocínio vale para o caso de haver expresso reconhecimento parcial ou total de um ou mais dos pedidos pelo réu. Apenas que, nessa hipótese, o magistrado não examinará o direito, mas limitar-se-á a averiguar se ele é daqueles disponíveis, caso em que proferirá, desde logo, o julgamento antecipado e fracionado da lide, acompanhado da tutela antecipatória.

            17.Mesmo quando baseada em cognição exauriente, a tutela antecipatória do pedido incontroverso não se torna imutável por força coisa julgada, dependendo, para isso, de confirmação na sentença, tendo em vista a possibilidade conferida ao juiz de revogar ou modificá-la a qualquer tempo (§4o do art. 273).

            18.O requisito negativo da tutela antecipatória, relativo ao "perigo de irreversibilidade do provimento antecipado" (art. 273, §2o) deve ser temperado com o princípio da efetividade da tutela jurisdicional, o que implica a necessidade de uma "valoração comparativa de riscos", sendo a vedação, nestes termos, inaplicável nos casos de "recíproca irreversibilidade".

            19.A tutela antecipatória é compatível com todas as cinco espécies de ação de conhecimento, classificada esta segundo a sua eficácia – declaratória, constitutiva, condenatória, mandamental e executiva lato sensu.

            20.Nunca houve dúvida sobre a possibilidade de antecipação de tutela mandamental e executiva lato sensu, como o comprovam as liminares em mandado de segurança (eficácia mandamental, em regra) e em ações possessórias (eficácia executiva lato sensu).

            21.A doutrina debate, entretanto, sobre o cabimento de antecipação da tutela em sede de ação declaratória e de ação constitutiva, predominando a conclusão de que é possível antecipar os efeitos práticos da sentença de procedência proferida nestes tipos de ação.

            22.Quanto à tutela condenatória, não há nenhum óbice à sua antecipação, inclusive no caso de pagamento de quantia certa, mas esta (a antecipação) não corresponde à mera autorização para a instalação da execução forçada. A decisão antecipatória, mesmo que tenha por objeto algum tipo de "condenação", deve ter eficácia preponderantemente mandamental ou executiva lato sensu, conforme o caso, a ser cumprida no próprio processo de conhecimento. Este o sentido que grande parte da doutrina, com alguma variação, já emprestava ao art. 273, § 3o, do CPC, e que veio a ser confirmado pela redação dada pela Lei no 10.444/02 (com destaque para a substituição do termo "execução" por "efetivação").

            23.Assim sendo, a tutela antecipatória não tem necessariamente a mesma eficácia preponderante do provimento final fundado em cognição exauriente. Em qualquer caso, prevalecem, no provimento antecipatório, as eficácias mandamental e executiva lato sensu.

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Sobre a autora
Ana Paula Ribeiro Rodrigues

Bacharel em direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Ana Paula Ribeiro. Tutela antecipatória:: um estudo à luz da nova reforma do Código de Processo Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 358, 30 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5406. Acesso em: 19 mai. 2024.

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