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A MP 746/2016 e o impacto no ensino da história e cultura afrobrasileira

10/02/2017 às 14:00

Resumo:


  • A Lei no 10.639/2003 tornou obrigatória a inclusão da História e Cultura Afro-brasileira e Africana nas escolas públicas e privadas do país.

  • A Medida Provisória (MP) 746/2016 revogou a Lei no 10.639/2003, deixando de ser obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira, o que gerou impactos sociais e debates sobre a diversidade cultural no currículo escolar.

  • A MP 746/2016 instituiu a política de fomento à implementação de escolas de ensino médio em tempo integral, afastando o ensino de referências culturais africanas e afro-brasileiras das instituições de ensino.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O uso de uma medida provisória impede o amplo debate com a sociedade na formulação das políticas de interesse coletivo e de diálogo com os movimentos sociais da educação.

INTRODUÇÃO

A lei no 10.639/2003 tornou obrigatória a inclusão da matéria “História e Cultura Afro-brasileira e Africana” nas escolas públicas e privadas, de nível fundamental e médio em todo país. A legislação passou a exigir que todas as disciplinas apresentassem as contribuições que os africanos e afro-brasileiros trouxeram para a cultura brasileira.

De fato, a implantação da lei tornou o conteúdo programático de diversas disciplinas mais rico e diversificado, passando a instruir nacionalmente os alunos através de um material pouco explorando pelos profissionais de educação. E, por conta disso, o artigo será voltado para a aplicação da Lei 10.639/03, mas não só.

Também cuidará da edição da Medida Provisória (MP) 746/2016, que instituiu a política de fomento à implementação de escolas de ensino médio em tempo integral, editada pelo então Presidente da República, Michel Temer. O texto da MP alterou trechos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB – Lei 9.394/1996), o que refletiu no Plano Nacional de Educação (PNE), que tinha entre suas metas a obrigatoriedade do ensino de cultura afro-brasileira, estabelecido na Lei nº 10.639/2003.

Frisa-se que, com a edição da MP, a legislação anterior (a Lei nº 10.639/2003) foi revogada, e deixou de ser um importante meio para conceber uma sociedade mais justa, livre e solidária, através da afirmação da identidade afrodescendente, vez que determinava que as instituições de ensino deveriam garantir os conteúdos de cultura e história afro-brasileira na sua grade curricular.

O artigo ainda visa discriminar a importância da Lei 10.639/2003 para integrar as diversas culturas do nosso povo, pois dados relativos aos afrodescentes evidenciam que estes têm perdido sua formação identitária e que apenas a educação poderia ser o instrumento de valorização e conscientização deste grupo étnico-racial.


I. AS REPERCUSSÕES PEDAGÓGICAS E A LEI Nº 10.639/2003

A obrigatoriedade de inclusão de história e cultura afro-brasileira e africana no ensino básico brasileiro é uma decisão política, com repercussões pedagógicas. Com a publicação da Lei nº 10.639/2003, reconheceu-se a necessidade de estudar e valorizar a história e cultura de nosso povo.

No entanto, em setembro de 2016, as diretrizes curriculares nacionais para a educação das instituições de ensino, relacionadas ao contexto étnico-racial e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, foram alteradas com a publicação da Medida Provisória (MP) 746/2016.

A publicação da MP revogou a Lei nº 10.639/2003, o que pode causar diversos impactos sociais, tais como o “mito da democracia racial”, que prega que existe, no Brasil, a igualdade de oportunidades para brancos, negros e mestiços. Este mito esconde práticas discriminatórias, pois a falta de conflitos étnicos favorece o “status quo” que beneficia a classe dominante (OLIVEIRA, 2001).

Sendo assim, o monitoramento da MP é importante para verificar se haverá a precariedade nos conteúdos de ensino, que diz respeito não só aos afrodescentes, mas a todos os brasileiros, pois, enquanto cidadãos atuantes numa sociedade pluriétnica, passam a ser capazes de construir uma nação democrática, através do incentivo de políticas de ações afirmativas.


II. A REVOGAÇÃO E A PUBLICAÇÃO DA MP 746/2016

Em 2016, a Presidência da República instituiu a política de fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, através da MP 746/2016. Esta é a principal responsável pela nova política de educação, que passou a distanciar professores e alunos de referências teóricas relativas à cultura negra e à diversidade cultural que caracterizam o nosso país.

De antemão os educadores estão contidos nas teorias do ensino eurocêntricas, visto que não têm mais interesse em adquirir competências para o fortalecimento da identidade afrodescente.

Com a publicação MP 746/2016, os conteúdos de educação das relações étnico-raciais e de conhecimento de matriz africana nas instituições de ensino deixaram de ser obrigatórios. Isto pode trazer impactos sociais, tais como o “mito da democracia racial” que apregoa que no país há igualdade de oportunidades às mais diversas raças.

O governo, entretanto, enfatiza que, com a estruturação de uma nova política de educação através da MP, entende-se que o ensino médio necessita de melhorias, o que atende necessidades e anseios da sociedade brasileira. Logo, o conteúdo relacionado às matrizes africanas nesse momento não é necessário.


III. O IMPACTO DA PUBLICAÇÃO DA MP 746/2016

A publicação da Medida Provisória (MP 746/2016) do ensino médio, tem gerado polêmica nacional, vez que desobrigou a aplicação da Lei no 10.639/2003 no sistema educacional, que instituía a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica.

Em relação ao conteúdo obrigatório, conforme as lições da professora Gevanilda Santos, a inserção da diversidade das políticas educacionais foi gradualmente implantada a partir da Lei 10. 639/2003, vez que:

Na prática, o sistema educacional brasileiro deu passos largos em direção à adoção de ações afirmativas, isto é, conjunto de ações políticas e orçamentárias destinadas à correção de desigualdades sociais. Essas ações visam oferecer tratamento diferenciado a fim de corrigir desvantagens históricas e eliminar a marginalização criada e mantida pela estrutura social brasileira. (SANTOS, 2009, p.82)

Tomando como pressuposto o campo educacional, a lei privilegiava o papel do educador, articulador do conteúdo da história e cultura africana para a construção da identidade, “desracializando” as práticas de ensino. A essência desta formação ficou resumida à obra “Educação e Contemporaneidade”, que destaca que os educadores deveriam possuir formação crítica e acrescentar o conteúdo da “cultura negra” à formação dos alunos, tendo em vista que:

Educadores na base dos sistemas educacionais deparam com oportunidade sem conta. Quantas histórias invisíveis no entorno e no interior de comunidades escolares! Não haverá as que possam ser vistas da ótica da História e Cultura Afro-Brasileira, nas características, prazeres, desprazeres que provoca, pelos agentes que envolve, nas representações que constituirão as lembranças, as consequencias, etc.? Não precisam (talvez nem mesmo devam) ser “histórias de negros”. Não haverá participação de negros? Não se encontra algum aspecto da questão racial, ou referencias afro-brasileiros, no início, no meio ou no fim? São muitas vezes surpreendentes as possibilidades interpretativas. (NASCIMENTO, A (Org.); PEREIRA, A. M. (Org.); FERNANDES, L. (Org.); SILVA, S. M. (Org.), 2008.)

Com a revogação da Lei no 10. 639/2003 através do uso de uma medida provisória, a proposta de uma educação voltada a diversidade voltou a ficar em segundo plano. O cancelamento da legislação foi justificado com o argumento de que houve a falência do atual modelo do ensino médio. Ao publicar a MP 746/2016, disse o Ministro da Educação, Mendonça Filho, que:

O Ideb brasileiro de ensino médio está estagnado desde 2011; o desempenho em português e matemática é menor hoje do que em 1997; temos 1,7 milhão de jovens entre 15 e 24 anos que não estudam nem trabalham; apenas 18% dos jovens de 18 a 24 anos ingressam no ensino superior; e a população jovem do Brasil entrará em declínio após 2022". (DIAS, 2016)

Mas a reorganização do ensino médio tem que prestar contas a respeito da visão de educação que a fundamenta. Assim, “(…) como a MP 746/2016 responde aos ataques à educação igualitária?” (GUMIERE, 2016). Uma reforma desse vulto precisa ser amplamente discutida entre todas as esferas da sociedade, que incluem professores, pesquisadores, sociedades científicas, dentre outras. As consequências da publicação da medida devem ser estudadas com cuidado, pois é possível deduzir que:

O nosso cotidiano escolar está impregnado do mito da democracia racial – um dos aspectos da  cultura da classe dominante  que  a escola transmite-,  pois representa as classes privilegiadas e não a totalidade da população, embora haja contradições no interior da escola que possibilitam problematizar essa cultura hegemônica, não desprezando as diversidades culturais trazidas pelos alunos. Assim, apesar de a escola inculcar o saber dominante, essa educação problematizadora poderia tornar mais evidente a cultura popular (OLIVEIRA, 2001).

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Por fim, resta dizer que o uso de uma medida provisória impede o amplo debate com a sociedade na formulação das políticas de interesse coletivo e de diálogo com os movimentos sociais da educação. Trata-se de um tema de grande relevância social, que tem importância para a vida de milhões de pessoas das atuais e futuras gerações. E, considerando os aspectos abordados, percebe-se que a essência da leitura será resumida em artigos publicados relativos a MP, juntamente com observações sobre a legislação anterior. Ainda não há livros que contribuam para o entendimento do impacto dessas políticas no campo social.


IV. CONCLUSÃO

Com a medida provisória 746/2016, encaminhada pelo governo federal em 23 de setembro de 2016, que passa a alterar trechos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), não há o respeito ao diálogo com a sociedade em sua edição. É fato que um dos embaraços do trâmite da proposta é a afronta à Lei 10.639/2003, que cuida do ensino da história e cultura afro no ambiente escolar.

Em termos específicos, deve-se destacar a urgência da implementação da medida provisória, pois os efeitos da medida são imediatos, embora dependa de uma aprovação da Câmara de Deputados e do Senado Federal, para que seja convertida em lei de forma definitiva.

Fato é que a medida suscitou reações dos mais diversos movimentos, como os que representam os afrodescentes e os de defesa da educação. Em todo o Brasil, durante o mês de outubro de 2016, diversas escolas públicas, campus da rede universitária e da rede federal de ensino tecnológico foram ocupadas. Entre as reivindicações está o fim da medida provisória que desobriga o ensino da história e cultura africana. Ainda não é sabido qual o impacto da não recepção da Lei 10.639/2003, anterior à MP 746/2016, e do trâmite legal da medida, que até o momento gerou uma reação adversa na coletividade.


V. REFERÊNCIAS

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BRASIL. Medida Provisória no 746, de 22 de setembro de 2016. Institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, altera a Lei nº9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e a Lei nº 11.494 de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, e dá outras providências.. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 de set. 2016.

CAVALCANTI, Bruno César; FERNANDES, Clara Suassuna; BARROS, Rachel Rocha de Almeida (org.). Kulé-Kulé: visibilidade negras. Maceió: EDUFAL, 2006.

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Sobre a autora
Carolina Miranda Bittencourt

Advogada formada pela Universidade Estadual da Bahia (UESB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BITTENCOURT, Carolina Miranda. A MP 746/2016 e o impacto no ensino da história e cultura afrobrasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4972, 10 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54207. Acesso em: 22 dez. 2024.

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