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Pedofilia: a ineficácia na punição e no tratamento

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3. AS CONDIÇÕES DO HOSPITAL DE CUSTÓDIA E TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO (HCTP)

À luz do que foi exposto sobre a periculosidade da pedofilia, bem como o padrão do ordenamento jurídico brasileiro e respectiva jurisprudência quanto ao comportamento exteriorizado do pedófilo, sabe-se da possibilidade de substituição de pena privativa de liberdade por internação em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, conforme artigo 98 do Código Penal (BRASIL, 2016, p. 563). O HCTP, antes referido como Manicômio Judiciário, foi oficialmente criado no Brasil em 22 de dezembro de 1903, pelo Decreto nº 1.132/1903 (MAMEDE, 2006). Porém, sua existência remonta ao século 19, na prisão de Broadmoor, Inglaterra (CARRARA, 2010).

3.1 O hospital de custódia e tratamento no Ordenamento Jurídico

O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico é uma das espécies de medida de segurança no ordenamento jurídico, estabelecido pelo artigo 96 do Código Penal (BRASIL, 2016, p. 563). A lei prevê a finalidade curativa desse tipo de hospital:

"Na hipótese do parágrafo único do art. 26 deste Código e necessitando o condenado de especial tratamento curativo, a pena privativa de liberdade pode ser substituída pela internação [...] pelo prazo mínimo de 1 (um) a 3 (três) anos [...]" (BRASIL, 2016, p. 563).

Em seu artigo 99, o Código Penal declara os direitos do internado no HCTP: "O internado será recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares e será submetido a tratamento." (BRASIL, 2016, p. 563).                                                          

Além de ser positivado no Código Penal, o HCTP recebeu maior abrangência quanto aos seus deveres em relação ao internado e à justiça na Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001, que trata da proteção e dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental (BRASIL, 2001).

O Parágrafo único do Art. 2º da Lei nº 10.216 (BRASIL, 2001) estabelece os direitos essenciais das pessoas portadoras de transtornos mentais:

Art. 2º Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.

Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;                                                                           

II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;

III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;

IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;

V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;

VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;

VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;

VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;

IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

O estabelecimento dotado de "características hospitalares", o HCTP, antigo manicômio judiciário, deve abarcar uma visão humanizada do indivíduo portador de transtorno mental. E, para isso, deve buscar a reinserção desse indivíduo na sociedade a partir de tratamento digno, seguro e adequado, fazendo uso de assistência médica, psicológica, social e familiar.    

O artigo 4º da Lei nº 10.216 (BRASIL, 2001) dispõe sobre os aspectos da internação do indivíduo em ambiente hospitalar focado em saúde mental:

Art. 4º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

§ 1º O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.

§ 2º O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.

§ 3º É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2º e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º.

O HCTP deve se preocupar com os indivíduos internados há muito tempo. Isso serve para garantir que o ambiente hospitalar não se torne um ambiente de fuga e marginalização que impede a reintegração do paciente na sociedade:

Art. 5º O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário. (BRASIL. Lei nº 10.216, 2001, art. 5º)

De fato, o HCTP positivado e idealizado pelo ordenamento jurídico brasileiro promove tratamento curativo em harmonia com os direitos humanos e o princípio de dignidade da pessoa humana, além de possuir meios para frear suas ações debilitantes e assegurar ao internado o cuidado, tanto do Estado, quanto do meio em que ele está e será inserido.

3.2 A realidade do HCTP

Apesar do grande avanço dado pela propagação de uma reforma psiquiátrica - fato essencial para a aprovação da Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001 - os Hospitais de Custódia e Tratamento ainda não estão de acordo com a lei do país. Existe uma ruptura abrupta entre a realidade do papel e o que realmente acontece nos chamados HCTPs. Pela visão do ordenamento, essa espécie de medida de segurança tem plena capacidade de oferecer tratamento curativo em ambiente com características hospitalares, além de oferecer ampla assistência e diversas formas de terapia com o objetivo de reinserção do sujeito na sociedade.

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Além de tudo, ressalta o esforço direcionado aos indivíduos que estão confinados por grande período de tempo, que podem dispor de uma política específica e reabilitação psicossocial assistida, a fim de garantir que possam voltar a viver de forma saudável na sociedade.                                                                                  

Entretanto, o que existe na prática são diversas formas de abuso, tratamento indigno e violação dos direitos humanos nos HCTPs, como relata Diniz (2013) ao falar sobre a ocorrência de internação que supera a pena máxima da infração:

[...] são os 606 indivíduos internados há mais tempo do que a pena máxima em abstrato para a infração cometida (Brasil, 2012). Eles são 21% da população em medida de segurança no país. Não há como prever quantos desses, atualmente em pior situação do que aquela em que estariam caso fossem apenados, se converterão em indivíduos abandonados e velhos em um hospital psiquiátrico de custódia.

Sem nenhuma capacidade de oferecer a reintegração do indivíduo que cumpre medida de segurança, o que realmente ocorre no HCTP é terapia inadequada, falta de assistência e mínima preocupação com as absurdas quantidades de tempo que um indivíduo pode passar no estabelecimento - muitas vezes, uma vida inteira. Para Carrara (2010, p. 17):

Os manicômios judiciários são instituições complexas, que conseguem articular, de um lado, duas das realidades mais deprimentes das sociedades modernas - o asilo de alienados e a prisão - e, de outro, dois dos fantasmas mais trágicos que “perseguem” a todos: o criminoso e o louco.

 Segundo Santos, Farias e Pinto (2015, p. 1227):

Será necessário construir uma política de segurança sobre novas bases que não responda ao crime ou a qualquer violência produzida por sujeitos com transtorno mental em conflito com a lei com outra violência social, a institucionalização em HCTP, onde a reclusão para tratamento tem caráter punitivo, de custódia e de suspensão de direitos, em contraposição às metas prioritárias de tratamento humanitário em Centros de Atenção Psicossocial e outros dispositivos em saúde mental.

Essa violência social está presente de várias formas nos HCTPs. A principal delas é a tortura, método para o controle e abuso dos internados, que são sujeitos a altas doses de medicamentos a fim de se tornarem passivos e submissos a toda sorte de crueldade:

"Hospitais de custódia usados para abrigar pessoas com transtornos mentais e em conflito com a lei são potenciais espaços de tortura, conforme constatação de um comitê da Organização das Nações Unidas (ONU), a partir de visitas feitas no país. O Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT), vinculado à ONU e com a participação do Brasil, concluiu um relatório sobre a privação de liberdade em quatro estados e incluiu impressões sobre instituições que deveriam oferecer tratamento psiquiátrico a loucos infratores" (SASSINE, 2013).

Viana e Souza (2013) compreendem que há distância entre a lei e a realidade dos HCTP, e acreditam que isso se deve por inércia do âmbito jurídico:

"[...] a reforma psiquiátrica, assim como as reformas sociais, em geral, não dependem apenas de leis que as respaldem ou autorizem. Apesar das conquistas constitucionais de direitos de cidadania, incluindo o direito social à saúde, e da lei específica sobre o cuidado à saúde mental, as pessoas com transtorno psiquiátrico que cometeram delitos continuam a ser tratadas como não cidadãs. As internações prosseguem a ser efetuadas em instituições com características asilares, em locais insalubres e isolados do convívio comunitário. No âmbito jurídico brasileiro, por sua vez, não houve ainda qualquer movimento no sentido de alterar os dispositivos dos Códigos Penal e Processual Penal, visando impedir as longas internações compulsórias como resposta jurídico-penal aos delitos cometidos por doentes mentais, em estabelecimentos fechados, distantes das famílias e do meio comunitário de origem."

Claramente, a violência e o abuso estrutural fazem parte do cotidiano do HCTP. É grande o distanciamento entre o que está estabelecido na lei e o que realmente acontece na prática. Somente uma maior regulação por parte do ordenamento que a cria pode mudar sua conjuntura atual.

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Sobre os autores
Helena Cinque

Acadêmica de Direito da Universidade Paranaense (UNIPAR)

Vitória Carolina Silva

Acadêmica de Direito da Universidade Paranaense (UNIPAR)

Igor Garrido Ferreira

Acadêmico de Direito da Universidade Paranaense (UNIPAR)

Thaís Fernanda Zanardi Vacari

Acadêmica de Direito da Universidade Paranaense (UNIPAR)

Anelise Ruiz Lopes

Acadêmica de Direito da Universidade Paranaense (UNIPAR)

Luís Irajá Nogueira de Sá Júnior

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Alta Paulista(1985), especialização em Didática do Ensino Superior pela Universidade Presbiteriana Mackenzie(1993), especialização em Direito Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie(1994), especialização em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Paranaense(1995), mestrado em Direito Processual e Cidadania pela Universidade Paranaense(2006) e aperfeicoamento em Curso Preparatório Para Concursos pelo Ministério Público e Magistratura Damásio Evangelista de Jesus(1991). Atualmente é Professor auxiliar "A" (TI) da Universidade Paranaense, Profissional Autônomo da Sá e Sirigu Advogados Associados e Membro de corpo editorial da Revista Autoclasse. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Privado. Atuando principalmente nos seguintes temas:Indenização, Reservas, Responsabilidade, Transporte, Turismo.

Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini

Psicóloga Mestre em Psicologia e Sociedade pela UNESP/ SP, docente de graduação e pós graduação, professora convidada da Escola da Magistratura do Paraná e psicóloga concursada da prefeitura de Icaraima do Estado do Paraná e cedida ao Fórum da cidade de Icaraíma onde exerce a função de psicóloga jurídica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CINQUE, Helena ; SILVA, Vitória Carolina et al. Pedofilia: a ineficácia na punição e no tratamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4927, 27 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54486. Acesso em: 20 abr. 2024.

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