Pode-se analisar a atuação do Poder Judiciário por vários critérios, combinados ou não, como, por exemplo, pelo custo de sua estrutura, pelo tempo da resolução dos conflitos, pelo sistema de preenchimento de cargos nos tribunais, dentre outros.
No que tange aos custos, o Judiciário brasileiro é caro comparativamente a outros países. Custa, proporcionalmente, quatro vezes mais do que o alemão, por exemplo, ou nove vezes mais que o norte americano ou, ainda, dez vezes mais do que o argentino, conforme apontou o cientista político Luciano Da Ros, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em estudo de 2015.
Ainda no campo dos custos, de acordo com o anuário Justiça em Números produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 89% dos gastos do Poder Judiciário em 2015 foram para pagamento de pessoal. O relatório do CNJ afirma que a despesa média mensal do Poder Judiciário foi de aproximadamente R$ 46 mil por magistrado, R$ 12 mil por servidor, R$ 3,4 mil por terceirizado e de R$ 774 por estagiário, no ano de 2015.
No que tange à qualidade do serviço prestado, é senso comum mencionar a lentidão da Justiça. Processos infindáveis são uma das principais causas da ineficiência de modo geral do serviço público prestado aos jurisdicionados. A questão já foi objeto de inúmeros estudos e reportagens (e de atuação do Conselho Nacional de Justiça, registre-se).
Além da demora na resolução dos conflitos, uma outra questão deveria merecer atenção da sociedade pela sua extrema gravidade. Diz respeito não diretamente ao Judiciário, mas à estrutura judiciária como um todo, na etapa prévia de investigação por parte da Polícia Judiciária: os percentuais de resolução de crimes. No que tange aos assassinatos, o índice de resolução no Brasil é de menos de 10% dos casos. A impunidade gerada por esse quadro é, certamente, um forte estímulo ao cometimento de crimes em nosso país. Nos Estados Unidos, o índice de solução dos homicídios é de 65%. E no Reino Unido, 90%.
Há dados que apontam, portanto, para um sistema judiciário brasileiro ineficiente e dispendioso.
Mas a questão aqui abordada deriva não das estatísticas e das experiências vivenciadas cotidianamente pelos operadores do Direito, mas sim dos dados e análises produzidas por outros ramos das ciências sociais sobre o Judiciário e demais carreiras jurídicas.
O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) ligado à Universidade Candido Mendes (Ucam), do Rio de Janeiro, divulgou, em 06.12.2016, um estudo sobre o Ministério Público no Brasil. De acordo com aquela instituição:
Perfil do promotor médio no Brasil é homem, branco, 43 anos, focado no combate à corrupção. Os dados mostram que o órgão não vem cumprindo, ou cumprindo mal, as vastas atribuições que lhe foram conferidas pela Constituição de 1988 – sobretudo em áreas que deveriam ser de atuação prioritária: controle externo das polícias, supervisão da pena de prisão e defesa de direitos coletivos.
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Ao traçar um perfil a partir de informações dos próprios integrantes do Ministério Público, a pesquisa “Ministério Público: Guardião da democracia?”, realizada pelo CeSec, vem ajudar a preencher esta lacuna e revela que membros do MP constituem um segmento fortemente elitizado da sociedade, além de apresentar uma clara sobrerrepresentação masculina: 70% dos promotores e procuradores são homens e 77% são brancos.
A origem social elevada se mede pela alta escolaridade dos genitores: 60% dos pais e 47% das mães dos entrevistados tinham curso superior, enquanto no conjunto da população brasileira com 50 anos de idade ou mais, essa proporção é de 9% para homens e 8,9% para mulheres.
Embora o estudo do CESeC tenha se fixado no Ministério Público, suas conclusões a respeito do perfil racial, da classe social e de representação de gênero podem certamente ser aplicados às demais áreas da estrutura judiciária, seja na cúpula dos Tribunais (evidente por si só) como na base das carreiras jurídicas (entendido aqui, repita-se, como uma estrutura judiciária, da qual fazem parte os juízes de todas as instâncias e os integrantes do Ministério Público, estadual e federal, e das Polícias investigativas – civil e federal).
No mesmo sentido crítico, o cientista social Jessé Souza, aponta existir no Brasil uma “ética corporativa da casta jurídica”, cujos elementos centrais são o concurso público e a auto imagem como “guardião da moralidade pública”, como “vanguarda moral” do povo brasileiro. Sobre o concurso público, o autor leciona que:
Funciona mais ou menos assim: se eu passei nesse concurso tão difícil e tive que estudar quatro anos para ele, então eu mereço todas as benesses e privilégios, já que custou esforço meu e de minha família. Isso é muito semelhante à legitimação dos mandarins da China patrimonialista. Os mandarins eram uma casta privilegiada de funcionários do Estado que cobravam impostos dos camponeses, ficando com boa parte no próprio bolso. A entrada na carreira era também por concurso, que exigia anos de dedicação e às vezes todas as economias da família. Em contrapartida, depois de efetivados os mandarins passavam a cobrar da sociedade pelo esforço feito. O esbulho era legitimado por uma ética corporativa muito semelhante à da nossa casta jurídica de hoje: a garantia da ordem social por um estamento de notáveis supostamente superior intrinsecamente.
Uma comprovação de tal tese talvez esteja nas recentes revelações sobre a existência de “super salários” de magistrados e procuradores, que superam em muito o teto constitucional do serviço público, correspondente à remuneração dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Provavelmente, exista de fato uma auto indulgência ao estilo do mandarinato chinês para tamanhas afrontas à lei por parte daqueles que deveriam segui-la (e obrigar a sua aplicação pelos demais integrantes da sociedade): no entendimento deles, são os resgatadores da moralidade brasileira e, portanto, fazem jus a remunerações nababescas.
A partir de tais premissas, levantamos uma hipótese (como uma provocação intelectual, um ponto de partida para o necessário aprofundamento): talvez tal quadro de elitismo dos integrantes das carreiras jurídicas derive basicamente da forma como se dão os concursos públicos.
Sendo um dos Poderes da República, o Judiciário brasileiro é o único que não tem participação popular na escolha de seus integrantes, sendo o acesso ao início das carreiras jurídicas por meio de concurso público (em segunda instância existe, como se sabe, a figura do “quinto constitucional”, previsto no art. 94, caput, da Constituição, pelo qual advogados e procuradores do ministério público compõem, por indicação das respectivas categorias, parte dos cargos dos tribunais, cujo objetivo teórico seria o de oxigenar o Judiciário, algo que, salvo melhor juízo, não se verifica na prática, mas que não será nosso foco aqui). Os membros do Ministério Público e da Polícia Judiciária também têm como forma de acesso exclusivo o concurso público.
O concurso público para carreiras jurídicas é regra também nos países da União Europeia e nas Américas (com exceção de estados norte-americanos que realizam eleições para magistrados, procuradores e até delegados de polícia). Outras nações adotam sistemas dos mais diversos, conforme registrado pelo desembargador paulista José Renato Nalini:
Faz-se eleição pelo povo, tanto na Albânia, quanto em alguns estados norte-americanos. Marrocos elege juízes leigos e nomeia juízes togados. A eleição por organismos parlamentares ou políticos é a regra na Bulgária, Iugoslávia e Romênia. A nomeação, pura e simples, pelo detentor do Poder Executivo, é o preceito seguido pela República do Chipre, China Popular, Hungria, Grécia, Luxemburgo, Vaticano e Paquistão. Aqui, os juízes integram o Poder Executivo. Muitas vezes, a nomeação pode ser antecedida por indicação do ministro da Justiça, como na Bélgica, Dinamarca e Noruega, ou pelo primeiro-ministro, como em Malta.
A Constituição brasileira determina que a investidura em qualquer cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos (artigo 37, inciso II). No que tange ao ingresso na Magistratura (artigo 93, I) e no Ministério Público (artigo 129, parágrafo 3º), a Constituição faz ainda duas outras exigências: participação da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em todas as fases do concurso e, no mínimo, três anos de atividade jurídica.
Como se sabe, os concursos para as carreiras jurídicas de modo geral são compostos de várias fases, sendo uma delas, eliminatória, a prova oral. O Conselho Nacional de Justiça normatizou os concursos para ingresso na magistratura por meio da Resolução nº 75, de 2009. Em seu artigo 5º essa resolução estabelece as etapas pelas quais se dará o concurso:
Art. 5º O concurso desenvolver-se-á sucessivamente de acordo com as seguintes etapas:
I - primeira etapa - uma prova objetiva seletiva, de caráter eliminatório e classificatório;
II - segunda etapa - duas provas escritas, de caráter eliminatório e classificatório;
III - terceira etapa - de caráter eliminatório, com as seguintes fases: a) sindicância da vida pregressa e investigação social; b) exame de sanidade física e mental; c) exame psicotécnico;
IV - quarta etapa - uma prova oral, de caráter eliminatório e classificatório;
V - quinta etapa - avaliação de títulos, de caráter classificatório.
Além da prova oral, vê-se, ainda, a existência de uma outra fase, a terceira, igualmente eliminatória, que estabelece a investigação da vida pregressa e exames de sanidade e psicotécnico. Tais regras são basicamente as mesmas pra ingresso nas demais carreiras jurídicas e também para procuradores dos Estados e da União.
Sobre tais etapas, são questionáveis, de pronto, pelo menos a terceira e a quinta. A sindicância de vida pregressa e os exames não poderiam vir antes das demais, eis que a Constituição, como visto, estipula como requisitos válidos, as provas e títulos. Esta fase não poderia ser prévia às demais e com caráter eliminatório.
Aliado a isso, e mais grave, é a própria existência da prova oral. Não seria tal tipo de prova um atentado ao princípio da impessoalidade, da igualdade e da transparência? O nível de subjetivismo é grande, como aponta a doutrina:
Cada examinador certamente alcançará suas conclusões com base nos seus valores pessoais, que não constam de lei ou de edital algum. E, o que é pior: valores que podem revelar apego a preconceitos e estereótipos sociais que o nosso ordenamento jurídico democrático combate.
É de se acrescentar, ainda, o elevado número de candidatos aprovados que são familiares ou agregados de membros do Poder Judiciário/Ministério Público/Polícia Judiciária. Ficou famoso o XLI Concurso para a magistratura do Estado do Rio de Janeiro realizado no biênio 2005/2006, que teve 24 (vinte e quatro) aprovados, sendo que, destes, 7 (sete) eram filhos de magistrados. O caso foi levado ao Conselho Nacional de Justiça, que instaurou o Procedimento de Controle Administrativo nº 510. O caso foi julgado em 11.03.2008 e, por maioria, o CNJ manteve o resultado do concurso. O jornal Folha de São Paulo, em matéria de abril de 2014, informa que 16% dos magistrados do Rio de Janeiro têm parentesco com algum integrante do próprio Judiciário daquele Estado.
O concurso público para as carreiras jurídicas não constitui um fim em si mesmo, mas uma garantia da isenção e imparcialidade do Judiciário como um dos Poderes, conforme deixou assente o conselheiro do CNJ Joaquim Falcão, no voto (vencido) proferido por ocasião do citado julgamento do Procedimento de Controle Administrativo nº 510:
O concurso público também não é um fim em si mesmo. Nem apenas privilégio, direito, ou prerrogativa de juízes ou candidatos às vagas da magistratura. É meio também. O concurso, qualquer concurso, deve contribuir para assegurar a independência e a imparcialidade do Poder Judiciário. Deve ser seu testemunho e sua confirmação. Não sua dúvida e sua negação. E o que assegura, aos olhos da Constituição e da cidadania, esta confirmação, este testemunho? A resposta não é difícil. É a garantia de que em todas as fases desde o edital, a inscrição, a seleção das bancas examinadoras, as provas e suas correções, a proclamação dos resultados e a nomeação dos aprovados, prevaleceram os princípios da impessoalidade, da publicidade e da igualdade.
O que se pretende perquirir é: não seria a prova oral um forte mecanismo de retroalimentação do modelo geral de magistrado/procurador/delegado que as análises sociológicas apontam como elitista? Não seria também uma oportunidade para o apadrinhamento nepotista?
Na União Europeia a maior parte dos países não aplica exame oral para seleção de magistrados (exceção é a Espanha). Tais países de modo geral possuem mecanismos de seleção, geralmente um concurso público escrito, que se constitui em etapa prévia a um curso de formação que pode durar até dois anos. Ao final do curso os mais aptos se tornam magistrados (aqui a exceção é a Alemanha, que não realiza concurso: seleciona nas faculdades de Direito os alunos de melhor rendimento).
No nosso entendimento, tendo como base os princípios constitucionais da impessoalidade, da igualdade e da transparência, devemos enfrentar a discussão da forma de acesso às carreiras jurídicas defendendo a seguinte proposta: acabar com o exame oral. Concursos para as carreiras jurídicas devem conter questões escritas objetivas e subjetivas, produção de sentenças, avaliação dos títulos, etc, mas sem a identificação do candidato, sem quebra do princípio da impessoalidade.
Talvez seja um primeiro passo em direção a um Judiciário efetivamente justo, independente e imparcial, com integrantes mais conectados à realidade social brasileira e seus reais problemas e soluções.
P.S. Três outras questões relacionadas ao presente tema também merecem uma discussão mais aprofundada: a) o estabelecimento de idade mínima para ser juiz; b) o aprimoramento da regra que obriga experiência jurídica prévia de três anos e c) o fim do quinto constitucional. No nosso entendimento, uma idade razoável seria a de 30 (trinta) anos para o início do exercício da judicatura, a experiência prévia deveria ser de efetivo exercício na advocacia ou demais carreiras jurídicas e, quanto ao quinto constitucional, deveria ser simplesmente extinto. Fica para o debate.
Notas
2 DA ROS, Luciano. O custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória. Newsletter. Observatório de elites políticas e sociais do Brasil. NUSP/UFPR, v.2, n. 9, julho de 2015. p. 1-15. ISSN 2359-2826 (disponível em: https://observatory-elites.org/wp-content/uploads/2012/06/newsletter-Observatorio-v.-2-n.-9.pdf)
3 Justiça em números 2016: ano-base 2015/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2016 (https://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/10/b8f46be3dbbff344931a933579915488.pdf)
4 https://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2014/04/maioria-dos-crimes-no-brasil-nao-chega-ser-solucionada-pela-policia.html
5 O estudo completo pode ser acessado em:
https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/uploads/2016/12/CESEC_MinisterioPublico_Web.pdf
6 https://www.ucamcesec.com.br/2016/12/06/pesquisa-revela-perfil-elitizado-e-aponta-distorcoes-na-atuacao-do-ministerio-publico/
7 SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro: Leya, 2016, p. 121
8 Ob. cit. p. 121
9 Revista Época, Juízes estaduais e promotores: eles ganham 23 vezes mais do que você, disponível em https://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/06/juizes-estaduais-e-promotores-eles-ganham-23-vezes-mais-do-que-voce.html
10 Como Recrutar Magistrados? in Revista USP, São Paulo, nº 101, março/abril/maio 2014, p. 67-82
11 COUTINHO, Simone Andrea Barcelos. Prova oral é dispensável em concursos públicos. Revista Consultor Jurídico, 02.10.2012. Disponível em https://www.conjur.com.br/2012-out-02/simone-coutinho-prova-oral-dispensavel-concursos-publicos
12 Magistrados emplacam parentes no TJ-RJ: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/04/1266496-magistrados-emplacam-parentes-no-tj-rj.shtml
13 Vide: Portal Europeu de Justiça em: https://e-justice.europa.eu