6. Uma nova Assembleia Constituinte?
A convocação de uma Assembleia Constituinte tem sido cogitada, inclusive na variante de Constituinte exclusiva, como o fez a ex-presidente Dilma, em 2013, quando propôs a realização de um plebiscito para obter o apoio popular a uma reforma política. Ainda mais complicada se apresenta a hipótese da convocação de uma Constituinte plena, sem qualquer condicionamento decorrente da atual Carta Magna, inclusive as suas cláusulas pétreas. Tal poder originário só pode emanar da soberania popular, a qual, segundo o Art. 14, I, da CF, “será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – consulta popular”.
No caso, a lei respectiva é a de Nº 9.709/98, cujo Art. 2º remete a nossa questão ao plebiscito, por se tratar de matéria de acentuada relevância e de natureza constitucional. Mas, a mesma lei esclarece que o plebiscito tem natureza de “consulta formulada ao povo”, cabendo a este “aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido” (Art. 2.º e seu § 1.º). Ora, sendo a convocação do plebiscito atribuição exclusiva do Congresso Nacional, segundo o Art. 49, XV, da Carta vigente, somente a ele caberia submeter à aprovação popular a proposta de convocação da Constituinte, ou seja, não haveria plebiscito sobre a matéria sem a iniciativa do Congresso. Será razoável esperar dos atuais congressistas tal iniciativa?
De qualquer forma, se a CF proíbe até mesmo a apreciação de emendas que envolvam as cláusulas pétreas, parece lógico concluir que os congressistas estão também proibidos de provocarem a população a examinar as matérias nelas previstas, o que, em si mesmo, constituiria uma quebra da ordem constitucional.
Não bastasse, há divergências sobre o efeito vinculatório do plebiscito, visto não haver expressa disposição constitucional nesse sentido. Para Carlos Ayres Britto, ex-presidente do STF, por exemplo, o resultado do plebiscito não vincula o poder legislativo, porque o Poder Legislativo não pode ser obrigado a legislar, ao contrário do Poder Judiciário, que é obrigado a julgar. Segundo o jurista, como o plebiscito é regulado por lei ordinária, ele só pode operar como sucedâneo da própria lei ordinária; se essa lei pudesse ir além, no assunto, passaria de Lei Ordinária a Lei Extraordinária, de hierarquia máxima, na medida em que decidiria da própria sorte das leis complementares e até das emendas constitucionais (MELO, 2016).
Ainda mais, transcendendo o âmbito da ordem constitucional vigente, é de se perguntar se a eventual admissão do efeito vinculante do plebiscito, que deliberasse pela nova Constituinte, por maioria, poderia conduzir ao resultado esperado de conciliação nacional. Ou se estaria sujeito à repulsa da minoria da população contrariada (ditadura da maioria), como mais uma “folha de papel” destinada a sucumbir “necessariamente, perante a constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país.” (LASSALE, 2001, P. 33)
Enfim, as considerações acima corroboram a opinião generalizada de que a convocação de uma Assembleia Constituinte dotada de legítimo poder constituinte originário pressupõe uma ruptura da ordem constitucional, seja por força de uma revolução, seja pelo entendimento soberano da maioria da população de que a ordem constitucional demanda uma reformulação completa, ilimitada e incondicionada.
7. Conclusão: duplo processo revisional – um caminho?
Se administrar é prever, é hora de se pensar numa forma de evitar qualquer das alternativas precárias antevistas: nem correr o risco de, por omissão, fomentar uma excepcionalidade; nem deixar que o destino da nação – e, quiçá, do regime democrático – recaia nas mãos de tão restrito grupo de juízes, por mais ilustre e erudito que seja ele.
Como vimos, a alternativa da convocação de uma nova Assembleia Constituinte confunde-se, de certa forma, com a hipótese de ruptura institucional, uma vez que aquela só acontece quando esta já ocorreu ou se manifesta na iminência de ocorrer. Entretanto, doutrinadores renomados apontam para uma possibilidade de evitar a ruptura da constituição jurídica, contornando a imutabilidade das cláusulas pétreas por meio do duplo processo revisional, assim descrito pelo mestre Canotilho:
“Num primeiro momento, a revisão incidiria sobre as próprias normas de revisão, eliminando ou alterando esses limites [absolutos de revisão]; num segundo momento, a revisão far-se-ia de acordo com as leis constitucionais que alteraram as normas de revisão. Desta forma, as disposições consideradas intangíveis pela constituição adquiririam um caráter mutável, em virtude da eliminação da cláusula de intangibilidade operada pela revisão constitucional.” (CANOTILHO, 2000, P. 1033)
Dois respeitáveis doutrinadores, Biscaretti de Rubia e Jorge Miranda, subscrevem o método (CORRÊA, 2010, p. 83), ainda que se possa experimentar, desde logo, a sensação de aí estar mera manobra jurídica, visando a eliminar de todo o direito protegido, uma vez que pode ocorrer a não realização da segunda etapa do procedimento. Gomes Canotilho chega a falar em “sério indício de fraude à Constituição”, enquanto repele a “técnica de dupla revisão”, entendendo que as normas de revisão seriam “normas superconstitucionais”, que atestariam a superioridade do legislador constituinte originário e cuja violação atingiria a própria garantia da Constituição. Para o renomado constitucionalista:
“A violação das normas constitucionais que estabelecem a imodificabilidade de outras normas constitucionais deixará de ser um acto constitucional para se situar nos limites de uma ruptura constitucional”. (CANOTILHO, 2000, P. 1033)
Não obstante, há eminentes juristas que sustentam a possibilidade de modificação ou abolição das cláusulas pétreas, entre os quais, além dos citados Biscaretti de Rubia e Jorge Miranda, encontramos Ferreira Filho e os por ele referidos: Duguit, Burdcau e VedeI. Argumentam que a dupla revisão constituiria uma contrapartida à dupla proteção conferida às cláusulas pétreas. Ferreira Filho rebate os que taxam de fraude à Constituição a supressão de cláusula pétrea, argumentando que tal pecha só caberia se a Constituição incluísse, entre as cláusulas pétreas, o próprio processo de modificação constitucional que consagrou, como é o que consta na Constituição do Estado alemão de Hesse, de 1946, art. 50. E reforça sua argumentação citando casos em que dito processo foi objeto de mudanças, jamais declaradas inconstitucionais, na França, em Portugal e, aqui, o da já referida Emenda n.º 26/85, que, suprimiu as "cláusulas pétreas" consagradas na Constituição de 1967. (FERREIRA FILHO, p. 14-15)
Então, o que para uns se apresenta como uma forma de evitar a ruptura é o que outros apontam como uma possível causa desta. Sem pretender tomar partido em debate de nível doutrinário acima de nosso alcance, vislumbramos aqui, no processo de dupla revisão, uma oportunidade para que o Congresso Nacional, ainda que dotado de poder constituinte derivado, não deixe escapar de suas mãos o destino das reformas que envolvam cláusulas pétreas. Em outras palavras, tal processo poderia ser um caminho para uma “transição por transação”, análoga àquela que produziu a própria e sumamente respeitável Constituição vigente.
Referências
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 4.ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2000.
CORRÊA, Paulo José Machado. Rawls, Habermas e a revisão de cláusulas pétreas. Prismas: Dir., Pol. Publ. e Mundial. Brasília, v. 7, n. 1, p. 77-97, jan./jun. 2010.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Significação e alcance das "cláusulas pétreas". In Revista Dir. Adm. Rio de Janeiro, 202: 11-17, out./dez. 1995.
GODOY, Dagoberto Lima. Luhmann e o direito como sistema de generalização congruente das expectativas comportamentais. Rev. Disc. Jur. Campo Mourão, v. 4, n. 1, p. 74-107, jan./jul. 2008.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001.
LEITE, George Salomão et al. Ontem, os códigos! Hoje as constituições: homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2016.
LEITE, Livia Maria Firmino. Superproteção dos direitos fundamentais no Brasil. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 21, n. 4703, 17 maio 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/ artigos/48937>. Acesso em: 21 out. 2016.
MARTINS, Yves Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil, 4º volume, Tomo I, ed. Saraiva, 1995).
MELO, Angelo Braga Netto Rodrigues de. Conteúdo dos institutos do plebiscito, referendo e iniciativa popular. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3780, 6 nov. 2013. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/25704>. Acesso em: 24 nov. 2016.
NICOLA, D. R. M. Estrutura e função do direito na teoria da sociedade. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Ciências Jurídicas. Repositório Institucional da UFSC. 96757, 1994. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/106383. Acesso em: 29-11-2016.
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Reflexões sobre a teoria das cláusulas pétreas. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/93266/Pedra%20Adriano.pdf? sequence=1. Acesso em 06-12-2016.
SANTOS, Marcos André Couto. A efetividade das normas constitucionais. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 204, 26 jan. 2004. Disponível em: <https://jus.com.br/ artigos/4731>. Acesso em: 28 out. 2016.
SARLET, Ingo Wolfgang. In Ontem os códigos, hoje as constituições: homenagem a Paulo Bonavides / George Salomão Leite ... [et al.] (coordenadores). São Paulo: Malheiros, 2016.
Notas
[1] Ferdinand Lassalle, nascido em Breslau em 11 de abril de 1825, é considerado um precursor da socialdemocracia alemã. Foi contemporâneo de Karl Marx, com quem esteve junto durante a Revolução Prussiana de 1848 até romper com ele em 1864. Combativo e ativo propagandista dos ideais democráticos. Proferiu, em 16 de abril de 1862, numa associação liberal-progressista de Berlim, sua conferência que serviu de base para um livro importante para o estudo do direito constitucional. Lassalle morreu em 31 de agosto de 1864, nos subúrbios de Genebra, três dias depois de ser mortalmente ferido em um duelo pela mão de sua ex-noiva, Hélène von Dönniges. Seu corpo foi enterrado num cemitério judeu de Breslau - atualmente Wroclaw, na Polônia. pt.wikipedia.org
[2] Konrad Hesse tornou-se professor catedrático de Direito Público da Universidade de Freiburgo, onde permaneceu até se aposentar em 1987. No período de 1961 a 1975, Konrad Hesse foi magistrado no Tribunal Administrativo de Baden-Wüttemberg. A partir de 1975, ele assumiu o cargo de juiz do Tribunal Constitucional Federal alemão, no qual permaneceu até 1987. Atuou no Primeiro Senado e sua indicação deveu-se ao Partido Social Democrata e ao Partido Democrático Liberal. Integrou a Academia Bávara de Ciências de 2003 até sua morte em 2005
[3] “duplos intercâmbios” (tradução nossa)
[4] Em 18 de outubro de 1984, participando em seminário promovido pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, na qualidade de vice-presidente da Federação das Indústrias do RS (FIERGS), pude examinar a situação que precedia a eleição do Congresso Nacional, aquele que, segundo já se cogitava, viria a se converter em Assembleia Constituinte. No pronunciamento, antevi os equívocos que vieram a acontecer na elaboração da Carta, pondo sua eficácia em séria dúvida. Chamei atenção para os pré-requisitos para a convocação de uma Constituinte que pudesse decidir livre e soberanamente, representando todos os setores da sociedade e resultando em uma Constituição democrática e eficaz. E adverti para o risco de que a falta da realização dos pré-requisitos viesse a redundar numa ordem constitucional efêmera. Por fim, destaquei a importância fundamental daquele sentimento que Hesse chamou de “vontade de Constituição”, e concluí com um voto de fé constitucional.
[5] Sem querer ressuscitar a polêmica sobre o movimento de março de 1964, tachado de “golpe” pelos que foram então alijados do poder, trago o conceito de revolução formulado por Ralf Dahrendorf e referendado por Gomes Canotilho: “revolução é o fenómeno político-social (ou conjunto de fenômenos) originador de mudanças rápidas e radicais essencialmente trazidas no plano político-social pela deslegitimização de toda uma classe governante, com a consequente substituição da maioria dos seus principais membros e uma transformação constitucional de vastíssimas consequências”. (CANOTILHO, 2000, p. 203) (grifo no original).
[6] PORTUGAL. Tribunal Constitucional de Portugal. Acórdão n.º 39/84. Disponível em: gestor.pradpi.org/download.php?id_doc=1818. Acesso em: 29-11-2016.
[7] “§ 2º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 33 MC, voto do rel. min. Gilmar Mendes, j. 29-10-2003, P, DJ de 6-8-2004.
[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal . C 90450 / MG - MINAS GERAIS - HABEAS CORPUS. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO - Julgamento: 23/09/2008 - Órgão Julgador: Segunda Turma – Publicação DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009.
[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 33 MC, voto do rel. min. Gilmar Mendes, j. 29-10-2003, P, DJ de 6-8-2004. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%20783. Acesso em 30-11-2016.
[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 466 (j. 3-4-1991, P, DJ de 10-5-1991). Disponível em: https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chrome-instant&ion=1&espv=2&ie=UTF-8#q=ADI+466+(j.+3-4-1991%2C+P%2C+DJ+de+10-5-1991). Acesso em: 30-11-2016.
[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. [MS 23.452, rel. min. Celso de Mello, j. 16-9-1999, P, DJ de 12-5-2000.] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/constituicao.asp. Acesso em 07-12-2016.