INTRODUÇÃO
Com a modernidade novas tecnologias vêm sendo utilizadas pelas empresas, o que leva a um maior número de acidentes do trabalho e a uma maior dificuldade em se provar a culpa das empresas em tais acidentes. Tal prova tem se tornado cada vez mais diabólica.
Os números dos acidentes de trabalho no Brasil são assustadores. O Tribunal Superior do Trabalho informa que há mais de 700 mil acidentes de trabalho por ano no país[1].
A responsabilidade civil, neste sentido, assume fundamental importância, pois, é por meio desta tradicional técnica que a Justiça do Trabalho condena as empresas que dão causa aos acidentes.
Ocorre que, dentre as diversas teorias da responsabilidade civil e diante do princípio protetor, interessa saber qual delas é a que melhor se coaduna com os preceitos do Direito do Trabalho e, assim, transmite a segurança jurídica necessária ao jurisdicionado.
1. Conceito de responsabilidade civil
Não há uma definição legal para o instituto da responsabilidade civil, mas várias definições doutrinárias.
Silvio Rodrigues, apoiando-se em Savatier, conceitua a responsabilidade civil como a “obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam”[2].
Álvaro Villaça Azevedo, em artigo que classifica a responsabilidade civil objetiva em pura e impura diz que responsabilidade civil é “a situação de indenizar o dano moral ou patrimonial, decorrente de inadimplemento culposo, de obrigação legal ou contratual, ou imposta por lei, ou, ainda, decorrente do risco para os direitos de outrem”[3].
Para fins deste estudo, adotamos a que nos parece a mais correta, qual seja, a de Álvaro Villaça Azevedo, pois além de trazer uma definição mais completa em relação a definição de Silvio Rodrigues, separa os termos obrigação de responsabilidade, “schuld” de “haftung”, o que nos parece que o faz com propriedade.
2. A importância do instituto da responsabilidade civil
Salta aos olhos como avançamos em matéria de responsabilidade civil nos últimos 20 anos no Brasil. Esse avanço se deu em três campos, quais sejam:
- Na objetivação da responsabilidade civil. Hoje em dia, a prova da culpa se tornou cada vez mais diabólica, haja vista o dinamismo e o subjetivismo das relações interpessoais, a modernidade tecnológica e o avanço do modo de produção capitalista neste mundo cada vez mais globalizado;
- Na expansão da cobertura dos danos. Não se negue que existe uma gama enorme de interesses merecedores de tutela. O dano biológico, o dano existencial e o dano moral coletivo são exemplos vivos disso;
- Na diluição do nexo de causalidade. Surgiram inúmeras teorias modernas que explicam o nexo causal e a variação da imputação da responsabilidade civil.
Estes três temas confirmam que a responsabilidade civil do século XXI é um dos temas que mais interessa aos civilistas, haja vista sua candente evolução. Soma-se a isto o cada vez mais avançado estado da técnica com os desafios das novas tecnologias. A nanotecnologia já bate à nossa porta.
3. As novas doenças laborais e a responsabilidade civil
No plano físico-mecânico, a lida com ferramentas, insumos e produtos ainda desconhecidos pela comunidade científica pode trazer inúmeros malefícios ao trabalhador. Nem os produtos reconhecidamente perigosos são banidos por completo do labor. Imagine quanta confusão ainda ocorrerá enquanto não se descobrir os efeitos colaterais da nanotecnologia, por exemplo.
Além das doenças físicas, propriamente ditas, existem os novos – nem tão novos - males que batem à porta, quais sejam, as doenças mentais, que podem ocorrer em decorrência do acúmulo de estresse, o que pode levar, inclusive, ao medo do trabalho e à própria morte do trabalhador. A premissa “corpo são, mente sã” parece que é verdadeira forward e backwards.
O que se quer dizer é que a somatização destes males também podem dar causas a inúmeros conhecidos e ainda desconhecidos agentes etiológicos ligados aos acidentes de trabalho cuja natureza é mental. Veja-se a depressão, o mal do século XXI.
Em um ciclo de palestras ocorrido em 2015 no Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), um professor da Universidade de Milão, Giuseppe Ludovico afirmou em sua exposição, cujo tema era “reflexos psicossociais das transformações do trabalho” que os principais problemas de saúde e segurança do trabalho são os mesmos em diversos países e que “cada transformação etimológica traz consigo novos riscos de trabalho”. Ele afirmou que geralmente, os acidentes não são causados especificamente pelo trabalho, mas estão vinculados a ele, ou seja, “o nexo causal é identificado no processo de trabalho”[4].
Corroborando nosso estudo, o especialista afirmou que um dos maiores problemas enfrentados hoje é o estresse. Ele informou que “[...] cerca de 28% dos trabalhadores europeus sofrem de doenças relacionadas ao estresse no trabalho”.
O professor ainda informou que os registros de pessoas afastadas por problemas depressivos “representa um dos maiores índices da atualidade” e os trabalhadores costumam adoecer quando “sentem-se incapacitados de responder às solicitações do ambiente de trabalho”, mormente em um ambiente em que “a alta competitividade no mercado de trabalho atual é um dos fatores de adoecimento."
4. O papel do Direito do Trabalho na evolução da responsabilidade civil
Não é apenas o Direito Civil a pedra angular da evolução do instituto da responsabilidade civil, mas também, o Direito do Trabalho, haja vista que já com a Revolução Industrial houve uma utilização em massa da máquina a vapor e de novas tecnologias, o que potencializou o aumento do número de acidentes laborais. Soma-se a este fato o advento das duas guerras mundiais, mas principalmente da segunda Guerra Mundial.
Naquele momento histórico havia uma subalternização, uma reificação, uma coisificação da pessoa humana, modelo que encontrou seu vale mais profundo, sua pior tradução, em Auschwits[5]. Pode-se dizer que a partir daquele episódio lamentável para a humanidade, passou-se a priorizar o ser humano.
Cláudio Luiz Bueno de Godoy afirma que foi a partir do fracasso do modelo citado que todas as Constituições passaram a se preocupar com a dignidade da pessoa humana como fundamento de seus ordenamentos jurídicos, passando a se pensar um novo modelo de responsabilidade civil onde se procura não mais o culpado pelo acidente, mas o responsável por sua reparação:
No campo da responsabilidade civil, como eu disse, colocou em xeque aquelas três características fundamentais, de tal sorte que, então, passou-se a pensar em um modelo renovado de responsabilidade civil com outras três características fundamentais: em primeiro lugar, não mais uma responsabilidade civil apenas individualizada, mas uma responsabilidade civil socializada, coletivizada. Daí os fundos indenizatórios de maneira geral, sejam eles públicos, como no exemplo dos acidentes, sejam no campo privado, como no exemplo comum dos seguros; em segundo lugar, uma responsabilidade civil não apenas baseada em culpa como o enquanto critério de atribuição da obrigação de indenizar. Daí o papel do risco, que, para alguns em um lugar e para outros juntos, trataremos disso. Com a culpa, passa também a ser um critério de que se vale o legislador para identificar o responsável. Aliás, é exatamente este propósito: nesse renovado sistema não se procura mais necessariamente, ou pelo menos exclusivamente, um culpado para indenizar, e sim um responsável, o que é algo diverso; em terceiro lugar, não mais apenas uma responsabilidade civil patrimonializada, mas uma responsabilidade civil, eu diria, personalizada, em que, portanto, sobressaem não apenas figuras danosas conhecidas do ponto de vista econômico-patrimonial, como também danos extrapatrimoniais, danos pessoais. E de novo, a Justiça do Trabalho [...].[6]
Conforme cita o autor, a partir daquele momento, passou-se a privilegiar o papel do risco na imputação da responsabilidade civil. Houve uma transição que foi, paulatinamente, da culpa ao risco e, conforme demonstrado, o Direito do Trabalho teve papel deveras importante nesta transição.
5. A importância da responsabilidade civil para o Direito do Trabalho
Constatado no item supra, a responsabilidade civil assume protagonismo não somente no direito civil, mas também – e principalmente - no direito do trabalho, haja vista a quantidade de doenças ocupacionais e acidentes de trabalho causados pela falta de prevenção e cuidados sanitários que a empresa deve ao seu empregado, sobretudo se considerarmos os acidentes de trabalho de natureza mental.
Registra-se que a responsabilidade civil é o segundo assunto mais demandado na primeira instância na Justiça do Trabalho e o assunto mais demandado no Tribunal Superior do Trabalho (TST). No ano de 2015, houve 712.616 reclamações trabalhistas cuja pretensão era a declaração da responsabilidade civil da empresa. O número informado representa 7,04% de todas as demandas trabalhistas em primeira instância. O número total de Reclamações Trabalhistas é 4.745.812[7].
Neste diapasão, torna-se relevante o doutrinário questionamento se a lei civil, nada obstante a previsão contida no art. 8o da CLT, aplicar-se-ia ao direito do trabalho.
De um lado, a corrente minoritária diz que o assunto já teria sido tratado pela Constituição Federal no art. 7o, XXVIII, uma vez que ao tratar do seguro contra acidentes de trabalho e da indenização civil quando há dolo ou culpa do empregador, a carta Magna teria esgotado o tema segundo a hierarquia das fontes normativas.
Sergio Cavalieri Filho, rechaça a tese de aplicabilidade do parágrafo único do art. 927 do CC para responsabilizar o empregador por acidentes de trabalho em atividades perigosas:
Embora ponderáveis os fundamentos que o sustentam, não partilhamos desse entendimento, porque a responsabilidade do empregador em relação ao empregado pelo acidente de trabalho ou doença profissional está disciplinada no art. 7o, XXVIII, da Constituição Federal (responsabilidade subjetiva, bastando para configurá-la a culpa leve) – o que torna inaplicável à espécie, por força do princípio da hierarquia, o parágrafo único do art. 927 do Código Civil.[8]
Também, neste sentido, caminha Gustavo Filipe Barbosa Garcia, para quem a norma constitucional prevalece sobre a disposição do Código Civil segundo a já referida hierarquia das fontes normativas[9].
Por outro lado, a corrente majoritária explica que nada obstante haver disposição acerca responsabilidade civil subjetiva na própria Constituição, o caput do art. 7º da Carta Constitucional diz que “são direito dos trabalhadores urbanos e rurais, dentre outros que visem à melhoria de sua condição social [...]”, fato que viria a privilegiar o princípio da melhoria contínua.
Arnaldo Lopes Süssekind, ao analisar o caput do art. 7º da CF, afirma que se a norma inferior não for incompatível com os princípios e prescrições da Lei Maior, ela prevalece. Assim se pronuncia:
[...] e a expressão ‘além de outros direitos que visem à melhoria de sua condição social’, não só fundamenta a vigência de direitos não previstos no artigo em tela, como justifica a instituição de normas, seja por lei, seja por convenção ou acordo coletivo, seja, enfim, por um laudo arbitral ou sentença normativa dos tribunais do trabalho. O que tem relevo para afirmar a constitucionalidade dessas normas jurídicas é que não sejam elas incompatíveis com os princípios e prescrições da Lei Maior.[10]
Sebastião Geraldo de Oliveira diz que o caput do art. 7º da CF/88 prevê mera enumeração exemplificativa de direitos e garantias ao empregado, permitindo que outros sejam conquistados, inclusive por normas infraconstitucionais. Tratar-se-ia tal rol, portanto de numerus apertus, não numerus clausus.
Poder-se-ia argumentar que a previsão do Código Civil, nesse ponto, seria incompatível com o dispositivo constitucional. Em suas palavras:
A rigor, o preceito realmente consagrado no inc. XXVIII do art. 7º é o de que cabe a indenização por reparação civil independentemente dos direitos acidentários. Aliás, o art. 121 da Lei n. 8.213/1991 bem captou esse princípio, ao estabelecer: O pagamento pela Previdência Social, das prestações por acidente do trabalho não exclui a responsabilidade civil da empresa ou de outrem. Observe-se que foi mencionada a responsabilidade civil da empresa ou de outrem. Observe-se que foi mencionada a responsabilidade civil genericamente, o que permite concluir que todas as espécies estão contempladas. Haveria incompatibilidade, se a redação do inciso XXVIII tivesse como ênfase a limitação a uma espécie de responsabilidades, como, por exemplo, se a redação fosse assim lavrada: Só haverá indenização por acidente do trabalho quando o empregador incorrer em dolo ou culpa. Além disso, não há dúvida de que a indenização do acidentado, com apoio na teoria da responsabilidade objetiva, visa à melhoria da condição social do trabalhador ou do ex-trabalhador, como previsto no caput do art. 7o da Constituição da República[11].
Filiamo-nos, assim, à segunda corrente, haja vista que a interpretação teleológica da norma trabalhista ganha concretude quando protege o empregado do abuso do empregador e o art. 2º da CLT é cristalino ao transferir ao empregador os riscos da atividade. Ademais, o mandamento contido no trecho “[...] dentre outros que visem à melhoria de sua condição social [...]” é claro no que permite, ou melhor, comanda ao interprete da lei a efetivação da teleologia do direito do trabalho.
No Direito do Trabalho, ramo oriundo do Direito Civil, o intérprete deve, diante de norma mais favorável, aplicá-la ao empregado, mesmo se esta for de hierarquia inferior em relação à primeira nada obstante à regra da pirâmide de Kelsen, tão estudada na filosofia jurídica e na Introdução ao Estudo do Direito (IED) no que se refere à teoria da hierarquia das normas.
Homero Batista Mateus da Silva registra que “a norma de hierarquia superior deixa uma aparente lacuna a ser colmatada ou preenchida pela norma de hierarquia inferior”.[12]
Quanto a eventual conflito de normas, Américo Plá Rodríguez elucida que no confronto entre normas de conteúdo trabalhista com conteúdo distinto sobre a mesma matéria, “não se aplicará a norma correspondente dentro de uma ordem hierárquica predeterminada, mas se aplicará, em cada caso, a norma mais favorável ao trabalhador”[13].
Ademais, a própria Consolidação das Leis do Trabalho, que prevê a integração da norma trabalhista pela norma civil no parágrafo único de seu art. 8º, também diz que o direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, mas somente naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste. Caso haja incompatibilidade entre o instituto do Direito Civil e do Direito do Trabalho, não deverá o primeiro integrar a norma trabalhista. Não é o caso da responsabilidade civil presente no art. 927 e seguintes do Código Civil, que se coaduna perfeitamente com o Direito do Trabalho.