No presente artigo, será abordada especificamente a legitimidade recursal de terceiros ("delatados") para fins de discussão da legalidade e dos efeitos gerados pela ocasião da elaboração do acordo de colaboração premiada.
Origem história da delação.
Configurando uma espécie de justiça negociada e amplamente utilizada nos EUA(plean bargaing), a colaboração premiada tem sido utilizada para combater organizações criminosas, garantindo ao "delator" benefícios ligados ao perdão judicial e à redução da pena, possibilitando o desbaratamento de organizações criminosas altamente sofisticadas.
A colaboração teve ampla aceitação na Itália, no combate às famigeradas máfias Italianas (podendo-se citar o famoso caso da "operação mãos limpas”), por garantir proteção ao delator e à sua família, assim como na Espanha, por intermédio da figura do "delinquente arrependido”.
Conquanto a Lei n.º 12.850/2013 utilize a terminologia " colaboração premiada" (gênero), do qual a delação constitui espécie, trataremos no presente texto especificamente da legitimidade recurso dos " delatados" para discutirem os efeitos, validade e repercussão do conteúdo disposto no bojo da "delação premiada", sendo utilizada a nomenclatura "delação" apenas para fins de delimitação do objeto temático.
Com efeito, a colaboração premiada constitui meio de obtenção de prova, por meio do qual o investigado ( ou réu), voluntariamente, manifesta sua vontade, com os seguintes objetivos: 1- identificar os demais coautores e partícipes da organização criminosa;2- revelar a estrutura hierárquica e a divisão de tarefas da organização criminosa; 3- prevenir infrações decorrentes das atividades da organização; 4- recuperar total ou parcialmente o produto ou proveito das infrações penais;5-localizar eventual vítima com sua integridade física preservada ( exemplo clássico seria no caso do "cativeiro" do sequestro).
A história na legislação penal brasileira demonstra que houve previsão da delação ainda na época das ordenações Filipinas, em 11 de janeiro de 1603; contudo, o referido instituto surgiu com mais robustez no ano de 1789, no famigerado caso da Inconfidência Mineira. Com efeito, foi na capitania de Minas Gerais que o Coronel Joaquim Silveiro Reis "delatou" todos os envolvidos em um plano separatista idealizado por Tiradentes, com o objetivo de suplantar as altas taxas da Coroa Portuguesa ao Brasil.
No Brasil, tem previsão nas Leis 7.492/86; 8.072/90; 8.137/90; 9.034/95; 9.269/96; 9.613/98; 9.807/99; 11.343/2006, e mais recentemente na Lei 12.850/13, demonstrando-se um instrumento investigatório de segurança pública, por meio do qual se garante ao colaborador o perdão judicial ou a respectiva redução de pena até 2/3.
Efeitos na esfera jurídica de terceiros (“delatados”).
Indaga-se se os "delatados" no acordo de delação premiada teriam legitimidade para recorrer e discutir sobre a validade e conteúdo inseridos no respectivo termo de colaboração.
A colaboração é negócio jurídico personalíssimo, por meio do qual o investigado detala, aponta, indica o nome e a localização de um partícipe ou coautor envolvido na organização criminosa e até então desconhecido da investigação.
Em contrapartida, o investigado recebe determinados benefícios ( denominados " sanções premiais) previstos em Lei (redução da pena, perdão judicial), condicionados, porém, à efetiva produção de efeitos em relação à descoberta e localização dos demais envolvidos (delatados) na organização criminosa.
O acordo gera obrigações e direitos entre as partes (Ministério Público e investigado), sendo, porém, válido e eficaz, somente se posteriormente homologado pelo magistrado, e servirá como meio de obtenção de prova, porquanto permitirá identificar outros envolvidos na empreitada criminosa, coligindo elementos probatórios aos autos de uma investigação ou processo criminal.
Precedentes do STF e STJ:
Em recente decisão do plenário, o Pretório Excelso firmou o entendimento, no sentido de que o acordo de colaboração premiada não vincularia o "delatado", sendo benefício de natureza personalíssima, cujos efeitos não seriam extensíveis a corréus (STF, Pleno, HC 127483, Rel. Dias Toffoli, DJe 04/02/2016).
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) assentou que a decisão de homologação configuraria simples fator de atribuição de eficácia do acordo de colaboração para a parte que o celebra, no intuito de que, futuramente, pudesse usufruir dos benefícios previstos legalmente, diante da eficácia objetiva das respectivas declarações. Assim, não haveria interesse quanto ao questionamento da legalidade ou ilegalidade da decisão homologatória do acordo de colaboração àqueles que não participassem de sua realização.
Nesse sentido, trazemos o seguinte excerto, extraído da ementa da decisão judicial oriunda do Egrégio Sodalício:
“ ....2. A colaboração premiada é técnica especial de investigação, meio de obtenção de prova advindo de um negócio jurídico processual personalíssimo, que gera obrigações e direitos entre as partes celebrantes ( Ministério Público e colaborador), não possuindo o condão de , por si só, interferir na esfera jurídica de terceiros, ainda que citados quando das declarações prestadas, faltando ,pois, interesse dos delatados no questionamento quanto à validade do acordo de colaboração premiada celebrado por outrem. Precedentes do STF e STJ...” (STJ, 5ª Turma, Rel. Reynaldo Soares da Fonseca, HC 69.988, DJE 07/11/2016).
De outra parte, o "delatado" poderá questionar futuramente, no bojo da ação penal a qual ficarará submetido, o conteúdo e as medidas restritivas de direitos adotadas em seu desfavor, diante dos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa, os quais conferem o direito de questionar e confrontar, em Juízo, as declarações do colaborador e as provas por ele indicadas, além de impugnar eventuais medidas restritivas de direito fundamentais eventualmente fixadas no termo do acordo.
In casu, trata-se do famigerado " contraditório diferido", no qual a oportunidade de contestar, discutir e produzir provas ( por parte do terceiro " delatado") em relação a eventuais declarações contidas no termo de colaboração são postergadas para um momento posterior (eventual ação penal proposta pelo Ministério Público, com fundamento no conteúdo do acordo de colaboração premiada).
Vale ressaltar, diante do princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica, a relevância do dever de o Estado honrar com o compromisso assumido no acordo de colaboração, concedendo-se a sanção premial estipulada, em legítima contraprestação ao adimplemento da obrigação por parte do colaborador, com fundamento, ainda, nas previsões firmadas pelo Brasil nas Convenções adotadas para estimular as formas de colaboração da pena (Convenção de Parlermo- 26.1), e para a mitigação da sanção criminal (Convenção de Mérida- art. 37.2).
Registre-se configurar direito subjetivo do colaborador a obtenção das medidas “premiais” (redução de pena, perdão judicial), caso sua colaboração seja efetiva e produza os resultados efetivamente almejados, trazendo segurança jurídica às partes envolvidas, observando-se, ainda, a proteção da boa-fé objetiva, que deve nortear o negócio jurídico formalizado no termo do acordo da colaboração premiada.
Conclusão:
O acordo de colacoração premiada constitui meio de obtenção de prova, que vincula as partes envolvidas, e produz efeitos jurídicos entre os seus participantes, podendo sua legalidade ser discutida pelas partes que firmaram o termo, não interferindo, porém, na esfera jurídica de terceiros, ainda que estes tenham sido mencionados nos relatos do termo de colaboração, sem prejuízo do posterior questionamento dos seus efeitos na ação penal que tiver como parte quaisquer dos investigados eventualmente "delatados".
Referências:
CARDOSO, Fabio Fettucia . A delação premiada na legislação brasileira. Disponível em https://fabiofettuccia.jusbrasil.com.br/artigos/174959721/a-delacao-premiada-na-legislacao-brasileira. Acesso em 17 de jan/ 2017.
GOMES, Luiz Flávio. Justiça Colaborativa e Delação Premiada. Disponível em https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2108608/justica-colaborativa-e-delacao-premiada. Acesso em 17 de jan/2017.