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Aspectos históricos da responsabilização civil do Estado

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05/01/2020 às 09:20
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4 Evolução Histórica e Teórica no Brasil

Enquanto a Europa já influenciava todo o mundo na disseminação do pensamento subjetivo da responsabilidade do Poder Público, o Brasil surgia como Estado independente e autônomo no ano de 1822, sob o regime monárquico, deixando de ser colônia de exploração. Nesse contexto, as primeiras legislações já foram assentes em reconhecer a responsabilização, sendo unânime entre os historiadores que a teoria da irresponsabilidade já mais foi adotada no Brasil.

Dois anos depois da inauguração do Estado Imperial, a Constituição de 1824 trazia previsões acerca do tema em seu art. 179, XXXIX: “Os empregados públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões praticados no exercício de suas funções e por não fazerem efetivamente responsáveis aos seus subalternos” (BRASIL, 1824). Num primeiro momento, parece tal norma atribuir a responsabilidade do Estado exclusivamente aos empregados públicos, porém, como bem assevera Celso Antônio Bandeira de Melo:

Ditos preceptivos, todavia, jamais foram considerados como excludentes da responsabilidade do Estado e consagradores da responsabilidade pessoal do agente. Pelo contrário: entendia-se haver solidariedade do Estado em relação aos atos de seus agentes [...] (2007, p. 996).

Só seriam responsabilizados “pelos abusos e omissões”, ou seja, somente quando houvesse a prática de atos ilícitos é que haveria a imputação. Percebe-se, assim, que é extraível de tal preceito constitucional a responsabilização subjetiva.

Essa mesma linha, da necessidade do elemento culpa, seguiu a Constituição seguinte – a de 1891 –, já sob a república, que, em seu art. 82, previa: “Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos” (BRASIL, 1891), traduzindo-se no mesmo sentido da Constituição anterior.

Mais de duas décadas depois, o Código Civil de 1916 ainda indicava a subjetividade como caráter de apreciação da responsabilidade estatal, em seu art. 15:

As pessoas jurídicas de Direito Público são civilmente responsáveis por atos de seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito em lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano. (BRASIL, 1916)

O dano só restaria configurado se houvesse um comportamento ilícito “contrário ao direito” ou “faltando a dever prescrito em lei”.

A Constituição de 1934 foi a primeira a trazer, de forma expressa e clara, a responsabilidade do ente estatal e não apenas dos funcionários. As anteriores mencionavam apenas estes, apesar de, na prática, ser reconhecida a responsabilidade do Estado.

Segundo previsão do art. 171: “Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos”. No § 1º, previa-se que “Na ação proposta contra a Fazenda pública, e fundada em lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como litisconsorte” (BRASIL, 1934).

Em seguida, no § 2º, assegurava-se ao Poder Público a promoção da execução contra o funcionário culpado nos casos em que fosse responsabilizado. Apesar do maior esclarecimento, denotando a responsabilidade solidária, a possibilidade de litisconsórcio e a ação regressiva, repetiu-se no ordenamento brasileiro a imputação subjetiva aos danos causados aos administrados.

O Brasil manteve a mesma identidade teórica – responsabilização subjetiva – até a Constituição de 1937. Em seu art. 158, essa Carta Constituinte estabelecia: “Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos” (BRASIL, 1937). Portanto, não houve preceituação inovadora, mas apenas repetitiva do que já se havia feito nas normas anteriores.

Foi somente a partir da Constituição de 1946 que houve a recepção no ordenamento brasileiro da teoria da responsabilidade objetiva. Segundo seu art. 194: “As pessoas jurídicas de Direito Público Interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros”.

Sequencialmente, no parágrafo único, preceituava-se: “Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes” (BRASIL, 1946). Assim, reconheceu-se a imputação direta ao Poder Público, independentemente de a conduta ser ilícita e a possibilidade de ação regressiva no caso de culpa dos funcionários, demonstrando a responsabilidade subjetiva destes.

A Constituição de 1967 seguiu a mesma referência teórica em seu art. 105: “As pessoas jurídicas de Direito Público respondem pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros”. E, no seu parágrafo único: “Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo” (BRASIL, 1967). Houve evolução apenas técnica na distinção entre dolo e culpa – não feita pela carta constitucional anterior –, mas que na prática não efetivou nada do que já havia se interpretado da legislação antecedente.

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Da mesma forma, preceituou a Constituição de 1969, em seu art. 107, caput: “As pessoas jurídicas de Direito Público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros”. Em seguida, no parágrafo único: “Caberá ação regressiva nos casos de dolo ou culpa” (BRASIL, 1969).

A mais recente das Constituições, a Carta Magna de 1988, em seu art. 37, §6° estabelece: “As pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa” (BRASIL, 1988).

É evidente a manutenção da responsabilização civil objetiva do Estado, pois, não há distinção se o dano causado é decorrente de ato ilícito ou não. Porém, a legislação é inovadora ao trazer a expressão “agente”, diferentemente das anteriores que se referiam aos “funcionários públicos”, incluindo, assim, qualquer pessoa que, temporária ou definitivamente, atue em nome do Poder Público.

Outra importante ampliação feita é a inclusão da responsabilização tanto de pessoas jurídicas do Direito Público, quanto às do Direito Privado que prestem serviços públicos. Nesse sentido, caberá responsabilização tanto das pessoas jurídicas públicas (entes federativos, autarquias e fundações) quanto das privadas que componham a administração indireta (sociedades de economia mista e empresas públicas) e as privadas que prestem serviços originariamente públicos (concessionárias e permissionárias de serviços públicos).

Quanto à legislação infraconstitucional, como maior referência, há o Código Civil de 2002. Segundo o art. 43 do CC: “As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo” (BRASIL, 2002).

Assim, a única diferença quanto à Carta Constitucional, é a omissão das pessoas jurídicas de Direito Privado, fato que não é capaz de isentá-las da responsabilização, se conjugada a interpretação com o preceito constitucional.


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Sobre o autor
Ronisberg Rodrigues Lima

Ronisberg Rodrigues Lima é Servidor Público Federal e advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Ronisberg Rodrigues. Aspectos históricos da responsabilização civil do Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6031, 5 jan. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55455. Acesso em: 29 mar. 2024.

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