3. APLICAÇÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL AO DIREITO À SAÚDE: CUSTEIO DE TRATAMENTO DE ALTO CUSTO NO EXTERIOR:
O presente caso (processo nº 0014308-63.2010.4.05.8100)[1], ajuizado na 2ª Vara do Tribunal Regional Federal da 5ª Região da Seção Judiciária do Estado do Ceará) trata de uma ação ordinária com pedido de antecipação de tutela ajuizada por D. L. S. P em face da União Federal, do Estado do Ceará e Município de Fortaleza, objetivando que os réus custeiem tratamento de Terapia de Transplante de Células Tronco, na Alemanha, tendo em vista que o autor sofre de uma doença genética rara, denominada Distrofia Muscular Progressiva do tipo Becker, que ocorre devido à ausência ou formação inadequada de proteínas essenciais para o funcionamento da fisiologia das células musculares e pode levar o paciente a óbito em torno dos quarenta anos. Os principais sintomas da referida doença são: fraqueza muscular progressiva, comprometimento de membros inferiores e superiores, aumento do volume das panturrilhas, acentuação de lordose lombar e marcha anserina (andar de pato). Conforme a petição inicial, a doença grave de que é acometido o autor.
Na inicial, o autor afirma que o tratamento para a doença consiste no transplante de células-tronco, a ser realizado na entidade X CELL CENTER, situada na cidade de Dusseldorf, República da Alemanha. Informa também que o início do tratamento foi agenda para o dia 03.01.2011, com realização do transplante no dia 07.01.2011, que o custo total do procedimento médico alcança o montante de R$ 13.451,00 (treze mil, quatrocentos e cinqüenta e um euros), incluindo estadia, alimentação e transporte na cidade de Dusseldorf, na Alemanha e que o custo total de passagens aéreas no trecho Fortaleza - Dusseldorf - Fortaleza, incluídas as taxas de embarque, importam no valor de R$ 9.468,00, não tendo, o postulante, condições financeiras para tanto, motivo pelo qual suplica ao Poder Judiciário que os réus sejam compelidos a custearem o tratamento.
O pedido liminar foi deferido, e os custos foram rateados e pagos entre a União, o Estado do Ceará e o Município de Fortaleza.
Inconformados, os Entes Federativos interpuseram agravos, que não foram providos, tendo sido confirmada a liminar pelo juiz da 2ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará julgou procedente a ação, confirmando a liminar, sob o fundamento de que “[...] em matéria de saúde, é solidária a obrigação imposta aos entes federados, de modo que o Estado do Ceará e a União devem figurar no polo passivo do presente feito, sendo, em consequência, competente a Justiça Federal para processar e julgar o feito”; “A promoção da saúde pública, em face do disposto no artigo 196 da Constituição Federal, constitui dever do Estado a ser cumprido, nos termos da Lei nº 8.080/90, com a conjunta participação dos entes que compõem a Federação” e de que “[…] o promovente, portador de Distrofia Muscular Progressiva tipo Becker, busca provimento jurisdicional que lhe assegure a realização de transplante de células-tronco, como forma de conter o avanço da doença.” [...] “A teoria da "reserva do possível" somente tem amparo quando demonstrado o sério comprometimento orçamentário oriundo da realização do procedimento.”
Ao final, declarou cessada a responsabilidade dos réus, devido à conclusão do tratamento.
Ainda assim, os réus apelaram, fundamentando que, não obstante o decreto de cessação de responsabilidade subsiste o interesse de que a tese seja apreciada pelos Tribunais (tratamento experimental no exterior), já que o tema é no mínimo polêmico, sendo necessário estabelecer segurança jurídica quanto aos limites de atuação da política de saúde pública.
As apelações foram apreciadas pelo Tribunal Regional Federal da 5ª região, mas foram improvidas, sob o fundamento de que que a Constituição assegura o direito à saúde, que deve ser prestado amplamente, por meio do SUS, tendo, todos os Entes Federativos, obrigação solidária de prestá-la. Afirmou, ainda que “A teoria da "reserva do possível" somente tem amparo quando demonstrado o sério comprometimento orçamentário oriundo da realização do procedimento.”
Inconformados, os réus interpuseram recurso especial, alegando que o tribunal de origem não e sem que, contudo, o Tribunal de origem enfrentasse a legislação que rege (e veda) a questão do custeio de tratamentos experimentais. Teceram considerações abstratas sobre o direito fundamental à saúde, mas não abordou aquele que é o ponto crucial e diferencial da presente ação em relação a tantas outras que versam sobre direito à saúde.
Interpuseram também recurso extraordinário, fundamentando na violação aos artigos 2º, 6º, 167, 196, 197, 198 e 200, da Constituição Federal, que tratam do princípio da isonomia, da reserva do possível, da separação dos poderes e do direito à saúde, no que diz respeito ao custeio de tratamento experimental por parte dos entes federativos. Tais recursos ainda não foram julgados pelos Tribunais Superiores.
Pode-se concluir do caso em questão que o Estado tem o dever de proporcionar o direito constitucional e social a saúde, inerente a todos os cidadãos, conforme já explicitado no item 1 do presente trabalho. Ocorre que, como visto no item, o Estado, na prestação dos direitos sociais, encontra-se limitado pelos orçamentos, de maneira que não pode atender a todos indistintamente. A solução para tanto é a necessidade de fazer escolhas, considerando a relevância da questão, a eficácia e a igualdade entre os cidadãos, que não deve ser apenas formal, mas também material.
No caso da terapia experimental no exterior, o caso não é corriqueiro, como o fornecimento de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde, nem tem custo baixo, para que possa ser financiado sem que atinja outros direitos inerentes à coletividade.
Em verdade, o referido tratamento não tem sequer eficácia comprovada, tendo, na verdade, muita esperança e pouca confiança, apesar dos avanços científicos nesse ponto, de maneira que muito se experimenta, mas ainda não há resultados conclusivos do alcance de tais tratamentos.
No caso em discussão, o direito a saúde de um cidadão está se contrapondo com a limitação orçamentária do Poder Público, que, fornecendo o referido tratamento que, ressalte-se, não tem eficácia comprovada, pode atingir outros direitos da coletividade, como saúde, segurança, transporte, lazer, dentre outros. Desse modo, deveria ter sido ser aplicada a reserva do possível, utilizando os critérios de necessidade, possibilidade e eficácia.
CONCLUSÃO
Pode-se concluir do presente trabalho que a saúde, sendo um direito fundamental social inerente à vida, ser assegurada pelo Poder Público, conforme disposto no artigo 196 da Constituição. Tal artigo, embora seja uma norma de caráter programático, a qual trata de diretrizes e projetos futuros do poder executivo para ver assegurada a intenção do legislador, não deve ser interpretado como uma mera promessa, pois a saúde, como dito, é um direito fundamental, tendo aplicação imediata.
Para assegurar a saúde, o Poder Público criou o Sistema único de Saúde— SUS, por meio das Leis nº 8.080/1990 e 8.142/1990, que tem o objetivo de melhorar o acesso à saúde, por meio da criação de uma política descentralizada e solidária, ou seja, cabe à União, em conjunto com os Estados e Municípios, assegurar a prestação do direito à saúde, bem como disponibilizar hospitais e postos de saúde e outros meios que facilitem o atendimento da população, priorizando as ações preventivas, nos moldes da Carta de 1988, bem como informando à população acerca de seus direitos e dos riscos à saúde.
O Estado, entretanto, não possui recursos ilimitados, pois arrecada-os por meio de tributos pagos à população e por outros meios, e a gestão pública depende do orçamento.
Diante da limitação de recursos, aliada à escassez dos mesmos, o Estado deve obedecer ao princípio da reserva do possível, segundo o qual o Poder Público atua balizado por cada caso, levando em consideração a concreta necessidade do cidadão, a distributividade dos recursos e a efetividade do serviço, para que seja assegurado o direito pretendido, observando, ainda, o mínimo existencial, ou seja, as mínimas e dignas condições necessárias de sobrevivência, considerando a necessidade do cidadão e as possibilidades do Estado.
Assim, se o Estado observar, no caso concreto, que há necessidade, recursos disponíveis e que o serviço tem possibilidade de efetividade, deve assegurar o direito, para fazer jus ao princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade material, pois deve se ater às prioridades, levando em conta a necessidade da coletividade.
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Nota
[1]<http://www.jfce.jus.br/consultaProcessual/resconsproc.asp> Acesso em 15 fev. 2015.
<http://www.trf5.jus.br/processo/0014308-63.2010.4.05.8100> Acesso em 20 fev. 2015.