4 Disparidade: cônjuge X companheiro no campo do direito sucessório
No campo do direito sucessório, essa igualdade não se operou totalmente, chegou muito próximo disso, como por exemplo, o fato de o convivente adquirir não só direito à meação dos bens comuns para os quais tenha contribuído para a aquisição de forma direta ou indireta, ainda que em nome exclusivo do falecido, como também adquiriu direito a um usufruto. Isso sem se falar na colocação da companheira na terceira ordem de vocação hereditária logo após os descendentes e os ascendentes, tudo isto por força da Lei Federal n.º 8.971, de 29 de dezembro de 1994. (BRASIL, Lei Federal n.º 8.971/1994).
Sobre essa questão, vale destacar o que determina o artigo 1.790 do vigente Código Civil, cujo conteúdo é o objeto fundamental do presente projeto:
Artigo 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. (BRASIL, Lei Federal n.º 10.406/2002).
Pela leitura do dispositivo legal acima exposto, tem-se, de início, a regra de que a sucessão, em caso de uniões estáveis, limita-se tão somente aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, o que significa dizer que os bens particulares adquiridos antes da formação da união e também aqueles adquiridos durante a constância da relação, mas a título gratuito – como aqueles adquiridos por doação ou sucessão – não englobam a massa patrimonial herdada pelo companheiro sobrevivente, restando a este somente os aquestos.
Situação bem diferente é encontrada nas relações estáveis levadas à chancela estatal, haja vista que, no caso do matrimônio, o cônjuge sobrevivente é herdeiro da totalidade dos bens do falecido, não havendo distinção com relação ao título de sua aquisição dos mesmos. Nessa configuração familiar, o regime de bens só interessará quando existir a concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes, mas nunca lhe é retirado à condição de herdeiro dos bens, mesmo que adquiridos onerosamente e antes da realização do matrimônio.
Percebe-se, assim, que o companheiro sobrevivente concorre na condição de proprietário, com ascendentes e descendentes do companheiro falecido, mas somente com relação aos bens adquiridos a título oneroso e no período de constância da união.
Tal tratamento, contudo, apesar de conferir um direito menos abrangente do que aquele encontrado em casos de matrimônio, significou uma notória evolução no que tange ao tratamento dos direitos sucessórios em caso de união estável.
Ocorre que a Lei Federal n.º 8.971/1994, que regulamentava as regras referentes aos alimentos e a sucessão em caso de união estável, estabelecia que, em caso de haver concorrência com os descendentes do falecido, o companheiro tinha direito tão somente ao usufruto de ¼ dos bens deixados de herança. (BRASIL, Lei Federal n.º 8.971/1994).
Além disso, se a concorrência se desse com relação a ascendentes, esses receberiam a totalidade da herança e o companheiro teria direito de usufruto sobre metade dos bens. Era apenas na falta de descendentes ou ascendentes que o companheiro sobrevivente teria direito de propriedade sobre os bens do falecido.
Artigo 2º. As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições:
I - o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujos, se houver filhos ou comuns;
II - o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujos, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;
III - na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança. (BRASIL, Lei Federal n.º 8.971/1994).
Assim, pela sistemática adotada pelo Código Civil de 2002, o companheiro foi privilegiado ao ver perdida sua condição de usufrutuário dos bens deixados pelo falecido e passar a ser tratado como coproprietário dos mesmos. Contudo, o artigo 1.790 do já mencionado diploma legal deu ao companheiro um tratamento muito distante àquele conferido ao cônjuge, mesmo após a Constituição da República ter conferido à união estável o status de entidade familiar, equiparando-a ao casamento, e ter consagrado o principio da isonomia como norma basilar do ordenamento jurídico pátrio. (BRASIL, Lei Federal n.º 10.406/2002).
5 Discussões à respeito da (in)constitucionalidade 1.790 do Código Civil de 2002
Nesse sentido, Renato Felipe de Souza, em seu artigo “Anotações sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790, III, do Código civil brasileiro”, faz a seguinte observação:
Verifica-se, pois, que o CC/2002, quando tratou da sucessão dos companheiros, rebaixou o status do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge, ao diferenciar o regime de sucessão na herança. Trata-se, pois, de regra inconstitucional, uma vez que vulnerou os princípios da igualdade e da dignidade (...). Assim, uma vez dada à execução a uma norma constitucional de caráter programático, através de lei infraconstitucional, não pode o legislador ordinário retroceder através de edição de lei ordinária superveniente que venha a reduzir o alcance da norma constitucional, sob pena de ser declarada inconstitucional. (SOUZA, 2006).
Dessa forma, enquanto que os cônjuges ganharam no Código Civil vigente a condição de herdeiros necessários, o companheiro aparece no texto legal como herdeiro facultativo, podendo, inclusive, ser excluído da herança por testamento. Além disso, pela regra insculpida no artigo 1.790 do Código Civil de 2002, ao companheiro é conferido apenas o direito hereditário sobre os aquestos – bens adquiridos onerosamente e na constância da união –, e não com relação à totalidade da herança, como ocorre em caso de matrimônio. (BRASIL, Lei Federal n.º 10.406/2002).
Vale destacar o que preleciona o artigo 226, § 3º, da Carta Magna:
Artigo 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(...)
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. (BRASIL, Constituição Federal de 1988).
O supratranscrito artigo legal ainda gera polêmicas no que tange à sua interpretação. Existe uma corrente na doutrina e na própria jurisprudência pátria que defende que a Constituição Federal não equiparou o instituto da união estável ao do casamento, o que é embasado pelo fato de a Carta Magna ter facilitado a conversão da união estável em casamento, o que teria conferido a este um patamar de superioridade sobre aquele instituto. De acordo com este argumento, defende-se que a legislação civil apenas resguardou o direito do cônjuge, o qual possui prerrogativas que não são asseguradas ao companheiro. (BRASIL, Constituição Federal).
Por essa sistemática, o tratamento diferenciado conferido pelo Código Civil para cônjuges e companheiros, sobretudo no que diz respeito à participação na herança do companheiro ou cônjuge falecido, não geraria qualquer ofensa ao princípio da isonomia, haja vista o fato de o texto constitucional não ter contemplado a igualdade de tratamento entre cônjuges e companheiros, mas apenas trazido à vedação à ausência de direitos sucessórios. (BRASIL, Lei Federal n.º 10.406/2002).
Nesse sentido, têm-se os seguintes julgados:
INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 1.790 CAPUT DO CÓDIGO CIVIL. TRATAMENTO DISTINTO PARA DIREITOS SUCESSÓRIOS DE COMPANHEIROS. O art. 226, § 3º da Constituição Federal estabelece que para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão, numa eloqüente demonstração que o casamento e a união estável não são iguais para todos os efeitos, ou mesmo para os efeitos patrimoniais e sucessórios; senão era desnecessário converter a união em casamento. Não possível converter uma coisa em outra, a menos que sejam desiguais. O propósito foi proteger e não igualar as duas modalidades. Assim, se é constitucional essa diferenciação no casamento, não se poderia supor inconstitucional a opção legislativa de criar regime próprio, como fez o Código Civil. Inexistência de vício de inconstitucionalidade no disposto no art.1.790 do CC. Incidente de inconstitucionalidade julgado improcedente, por maioria". (TJ-RS, Incidente de Inconstitucionalidade Nº 70055441331, Tribunal Pleno, Relator: Marco Aurélio Heinz, Julgado em 24/02/2014).
INVENTÁRIO. DECISÃO QUE DETERMINOU QUANTO AO DIREITO SUCESSÓRIO DA COMPANHEIRA A APLICAÇÃO DA REGRA DISPOSTA NOART. 1790, II, DO CÓDIGO CIVIL. INSUURGÊNCIA DA AGRAVANTE. PRETENSÃO À DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1790, DO CÓDIGO CIVIL. IMPOSSIBILIDADE. CONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO ÓRGÃO ESPECIAL. 1. Em razão do falecimento do companheiro, ajuizou-se ação de inventário para partilha de bens, requerendo a agravante o reconhecimento do seu direito sucessório em concorrência com os descendentes do de cujus no tocante aos bens adquiridos a título gratuito, afastada a aplicação do art. 1790, II, do CC. 2. A constitucionalidade do art. 1.790 do CC já foi reconhecida pelo Órgão Especial do Tribunal de São Paulo e deve prevalecer. Em razão da cláusula constitucional de reserva e da súmula vinculante nesse sentido, somente o Tribunal Pleno pode declarar a inconstitucionalidade do dispositivo legal em referência, de modo que, já decidido em sentido contrário pelo Órgão Especial do Tribunal de São Paulo, não se admite solução diferente, cumprindo ao órgão de jurisdição fracionário de segundo grau aplicar a norma declarada constitucional. 3. Portanto, tendo o de cujus deixado herdeiros (descendentes), cabe à agravante apenas metade da herança que couber a cada um deles no que diz respeito aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, além do direito à meação sobre os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Decisão mantida. Recurso não provido". (TJ-SP, AI 21616945620148260000 SP 2161694-56.2014.8.26.0000, 10ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Carlos Alberto Garbi, julgamento em 28/10/2014).
Contudo, é de observar que a determinação constitucional contida no parágrafo terceiro do artigo 226 da Constituição da República Federativa do Brasil não tem por finalidade a constituição de uma relação hierárquica entre o casamento e a união estável. O que se tem é uma norma de conteúdo proibitivo, que veda a existência de óbice à conversão da união estável em casamento. (BRASIL, Constituição Federal de 1988).
Seguindo esta mesma linha, existe uma corrente que defende a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, pois o mesmo não estaria de acordo com as regras e valores estabelecidos em ordem constitucional, pois o casamento e a união estável guardam as mesmas características – são uniões públicas, contínuas e duradouras – e mantêm os mesmos princípios e deveres recíprocos entre seus componentes. Sendo assim, pelo princípio basilar da isonomia, não deveriam ganhar tratamentos tão diferentes da legislação infraconstitucional. (BRASIL, Lei Federal n.º 10.406/2002).
São duas posições antagônicas e que dividem a jurisprudência pátria. Dessa forma, cumpre anotar o Supremo Tribunal Federal, inicialmente, inclinava-se a favor do reconhecimento da constitucionalidade do artigo 1790, do Código Civil, como pode ser observado a seguir:
INSTRUMENTO. DIREITO DE HERANÇA. MEAÇÃO. COMPANHEIRA. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA INDIRETA. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. FUNDAMENTOS INFRACONSTITUCIONAIS DEFINITIVOS. AGRAVO IMPROVIDO. I – O acórdão recorrido decidiu a questão com base em normas infraconstitucionais, no caso, o Código Civil. A afronta à Constituição, se ocorrente, seria indireta. II - Com a negativa de provimento ao recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça, os fundamentos infraconstitucionais que amparam o acórdão recorrido tornaram-se definitivos. III - Agravo regimental improvido”. (AI-AgR 699.561, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, DJ 07.04.2011).
Contudo, o julgamento do Recurso Especial n° 646.721 RG deu à questão um novo enfoque e asseverou ainda mais a pertinência das discussões acerca do tema, especialmente pelo fato de ter sido reconhecida a repercussão geral da controvérsia:
UNIÃO ESTÁVEL – COMPANHEIROS – SUCESSÃO – ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL – COMPATIBILIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL ASSENTADA NA ORIGEM – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – REPERCUSSÃO GERAL CONFIGURADA. Possui repercussão geral a controvérsia acerca do alcance do artigo 226 da Constituição Federal, nas hipóteses de sucessão em união estável homoafetiva, ante a limitação contida no artigo 1.790 do Código Civil. (RE 646721 RG. Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 10/11/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-232 DIVULG 06-12-2011 PUBLIC 07-12-2011).
Por todo o exposto, torna-se claro que as posições que defendem a constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil vigente ainda são baseadas em ideias conservadoras acerca das relações humanas e da constituição de família, conceito atualmente amplo e de difícil definição. Certo é que a Carta Magna em nenhum momento estabeleceu uma relação de hierarquia entre o casamento e a união estável, o que não poderia ter sido feito pela legislação infraconstitucional. (Brasil, Lei Federal n.º 10.406/2002).