6 Da inconstitucionalidade da sucessão do companheiro
Embora já visto que a Constituição Federal reconheça a união estável como entidade familiar, a norma infraconstitucional opta por conceder diversos privilégios ao matrimônio, gerando para o companheiro(a), no campo do direito sucessório, prejuízos que fogem do bom senso e da pretensão do legislador constituinte.
Por se concluir que a união estável, configurada pela convivência continua e duradoura, entre um homem e uma mulher ou até mesmo entre pessoas do mesmo sexo conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, podendo até não coabitar, mas que, se apresente como casal publicamente aos olhos da sociedade e com a intenção de constituírem família, possui origem constitucional e é reconhecida uma entidade familiar, deve então ao legislador ordinário, acompanhar as mudanças da sociedade, contemplando as modificações da família atual, devendo o companheiro receber o mesmo tratamento dedicado ao cônjuge, e, não mais colocar um na condição de herdeiro necessário e o outro numa situação de concorrência com tios, avós e demais herdeiros colaterais, fazendo com que os participantes de união estável, na sucessão hereditária, fiquem numa posição inferior e injusta.
Nesse sentindo, dispõe a Desembargadora Maria Berenice Dias:
Se a sociedade muda e as relações entre as pessoas evoluem, as leis, para cumprirem seu papel de regrar a vida e estabelecer pautas de conduta, também têm que se plasmar às novas realidades. Da mesma forma, devem os operadores do Direito interpretá-las com uma visão que mais se identifique com a justiça. (DIAS, 2007, p. 128).
O Código Civil de 2002 trata, de forma discriminatória, fazendo visível diferenciação entre a união estável e o casamento, uma vez que, os casados voltaram a ter um amparo legal superior aos companheiros, por força da revogação das Leis Federais n.º/s 8.971/1994 e 9.278/1996, que notadamente equiparavam esses institutos. Tal dessemelhança fez com que não se operasse a igualdade determinado pelo legislador constitucional, especialmente no campo do Direito Sucessório.
Conforme o que dispõe o artigo 1.725 do Código Civil, salvo convenção em contrário, aplicam-se à união estável, as normas do regime da comunhão parcial de bens, ou seja, a regra da comunicabilidade do patrimônio adquirido onerosamente por quaisquer dos cônjuges durante a convivência, é o que disciplina o Direito das Famílias. Porém, quanto a sua sucessão, ao contrário do que se dá com os cônjuges unidos sob o regime da comunhão parcial, que, por força da norma do artigo. 1.829, I, do mesmo ordenamento, também herdam o patrimônio que não lhes tocou por meação e só encontram concorrência entre descendentes e ascendentes, excluindo os companheiros da sucessão legítima, que por sua vez, estes só teriam direito a herdar patrimônio havido onerosamente durante a união e, ainda assim, podendo concorrer até com parentes colaterais do falecido, de acordo com o artigo 1790 do atual Código Civil.
Verifica-se, então, um confronto com princípio da igualdade, uma vez que, nossa legislação deve privilegiar os laços afetivos em face dos biológicos, e de forma alguma, como fez o código civil ao tratar as famílias de forma diferentes, tendo em vista que nossa atual Constituição não permite fazer tal diferenciação. O que relata, Zeno Veloso:
Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando não extintas, as relações de afetividade entre parentes colaterais de 4º grau (primos, tios-avós, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram. E o novo Código Civil brasileiro... resolve que o companheiro sobrevivente, que formou uma família, manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vai herdar, sozinho, se não existirem descendentes, ascendentes, nem colaterais até 4º grau do de cujus (VELOSO, 2009, p. 236).
Nota-se, um retrocesso em relação à legislação anterior, dado que o Código Civil atual limitou o direito de herança do companheiro aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, e ainda, tendo que dividir tais bens com até mesmo parentes colaterais, e, em coerente manifestação. Acrescenta, nessa acepção, Belmiro Pedro Welter, que:
O texto constitucional de 1988 representa um pacto social em que estão inseridos direitos e deveres recíprocos entre o Estado e o indivíduo... Dessa forma, no Estado Democrático de Direito vige o princípio da proibição do retrocesso social, motivo pelo o qual o poder judiciário não tem o direito de agasalhar a desigualdade sucessória entre os companheiros e cônjuges, devendo julgar inconstitucional o art. 1790 do Código Civil de 2002, já que em função de aplicar o princípio da justiça, acimentado no art. 3º, I, da Constituição Cidadã de 1988. (WALTER, 2010, p. 220).
Sobre as jurisprudências que versam à respeito do tema, destaca-se a do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, publicado no Diário Oficial da Justiça, a fim de respaldar o que já foi discutido:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. SUCESSÃO DA COMPANHEIRA. ABERTURA DA SUCESSÃO OCORRIDA SOB A ÉGIDE DO NOVO CÓDIGO CIVIL. APLICABILIDADE DA NOVA LEI, NOS TERMOS DO ARTIGO 1.787. HABILITAÇÃO EM AUTOS DE IRMÃO DA FALECIDA. CASO CONCRETO, EM QUE MERECE AFASTADA A SUCESSÃO DO IRMÃO, NÃO INCIDINDO A REGRA PREVISTA NO 1.790, III, DO CCB, QUE CONFERE TRATAMENTO DIFERENCIADO ENTRE COMPANHEIRO E CÔNJUGE. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA EQUIDADE. Não se pode negar que tanto à família de direito, ou formalmente constituída, como também àquela que se constituiu por simples fato, há que se outorgar a mesma proteção legal, em observância ao princípio da eqüidade, assegurando-se igualdade de tratamento entre cônjuge e companheiro, inclusive no plano sucessório. Ademais, a própria Constituição Federal não confere tratamento iníquo aos cônjuges e companheiros, tampouco o faziam as Leis que regulamentavam a união estável antes do advento do novo Código Civil, não podendo, assim, prevalecer a interpretação literal do artigo em questão, sob pena de se incorrer na odiosa diferenciação, deixando ao desamparo a família constituída pela união estável, e conferindo proteção legal privilegiada à família constituída de acordo com as formalidades da lei. Preliminar não conhecida e recurso provido. (Agravo de Instrumento Nº 70020389284, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 12/09/2007).
No que pesa o posicionamento jurisprudencial supracitado, o mestre Silvio de Salvo Venosa critica a norma sucessória do artigo 1.790 do Código Civil de 2002, quando em suas palavras expressa, que:
O novo Código conseguiu ser perfeitamente inadequado ao tratar do direito sucessório dos companheiros (…) concorrerá na herança com o vulgarmente denominado tio-avô ou com o primo irmão de seu companheiro falecido, o que, digamos, não é uma posição que denote um alcance sociológico e jurídico digno de encômios. (VENOSA, 2003, pp.118-120).
Para bater o martelo a cerca do presente estudo, salienta Maria Berenice Dias, que:
É necessário adequar a justiça à vida e não engessar a vida dentro de normas jurídicas, muitas vezes editadas olhando para o passado na tentativa de reprimir o livre exercício da liberdade. (DIAS, 2011, p. 11).
Diante disso, resulta a conclusão de que as regras referentes à sucessão que são aplicáveis ao cônjuge devem ser as mesmas observadas nos casos da união estável, devendo ser extinta a atual situação vivida pela legislação pátria, onde o companheiro encontra-se desprovido de total proteção de seus direitos sucessórios. Portanto, resta a tarefa de afirmar a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, defendendo a já mencionada valorização da relação afetiva, conforme a própria proteção conferida à família pelo Estado.
7 Da (in)legitimidade do tratamento diferenciado dado ao cônjuge e a companheiro, à luz do Supremo Tribunal Federal
O Supremo Tribunal Federal (STF) discutiu para fins de sucessão a legitimidade do tratamento diferenciado dado a cônjuge e a companheiro, pelo artigo 1.790 do Código Civil. O recurso teve repercussão geral reconhecida pela Corte em abril de 2015 e começou a ser julgado na sessão 31 de agosto de 2016.
Embora o julgamento esteja suspenso por um pedido de vista do ministro Dias Toffoli a matéria já está decidida, uma vez que, nesta ocasião sete ministros (são eles: Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia) votaram pela inconstitucionalidade do aludido artigo, uma vez que, compreendem que a Constituição Federal assegura a equiparação entre os regimes do casamento e da união estável no tocante ao regime sucessório, já discutido nessa produção acadêmica.
O ministro relator do caso, Luís Roberto Barroso, o qual votou pela procedência do pedido, salientou que o regime sucessório sempre foi conectado ao conceito de família, considerando o casamento como formador da família tradicional. Mas que, esse modelo passou a sofrer modificações com o passar dos anos, e o matrimônio fora substituído pela afetividade e por um projeto de vida comum. À vista disso, sugeriu o ministro pela aplicação de tese segundo a qual “no sistema constitucional vigente é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil de 2002”. (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL).
Também acrescentou o ministro, que o entendimento de que a relação oriunda do casamento tem peso distinto da relação advinda da união estável é incompatível com a Constituição Federal de 1988, uma vez que violenta aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da proteção da família, como também, transgredi ao princípio da vedação ao retrocesso.
7.1 Efeitos
Devido à pluralidade de sucessões de companheiros ocorridas desde o advento do Código Civil pátrio, essa discussão é de suma importância para sociedade no que tange aos seus efeitos.
Os efeitos da decisão no que diz respeito a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, não alcançam as sucessões que já tiveram sentenças transitadas em julgado ou partilhas extrajudiciais com escritura pública, será aplicada somente às partilhas que ainda não foram estabelecidas. (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL).
Essa previsão visa à certeza nas relações jurídicas sucessórias com o efeito ex-nunc, conforme já fora citado. Embora, desde sempre, o feito deveria ser ex-tunc, retroagindo assim à data da abertura da sucessão, assistindo inúmeras delas já finalizadas sob as regras antigas.
Conclusão
Este artigo tratou, durante toda a sua extensão, sobre os efeitos jurídicos sucessórios dos companheiro(a)(s), a fim de se reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil. Em razão disso, nota-se, diante de todo o exposto, que a união estável foi equiparada à entidade familiar, no entanto, o Código Civil, conferiu tratamento destino entre tal instituto e o casamento no que diz respeito aos direitos sucessórios.
O direito sucessório dos companheiros(a)(s) se encontra disposto no Código Civil, em seu artigo 1.790, fato que é objeto de discussão quanto a sua inserção em capítulo que versa sobre as disposições gerais do direito das sucessões, uma vez que, merecia está inseridos nos artigos 1.829 e seguintes, como acontece com o direito dos cônjuges.
Verifica-se, sobretudo, que além de não ter expressamente reconhecido o direito à meação, o companheiro sobrevivente não concorre em igualdade com os demais herdeiros, tendo a sua quota parte devidamente estipulada pela lei.
Assim, o companheiro será obrigado a concorrer com todos os herdeiros necessários do de cujus, antes de ter direito a herança em sua totalidade, ao mesmo tempo em que o cônjuge terá o mesmo direito mesmo quando houver herdeiros colaterais, sendo necessário apenas que não existam ascendentes e descendentes do falecido.
Dessa forma, é evidente o vício de inconstitucionalidade contido no artigo 1.790 do Código Civil de 2002, no qual deixa de lado princípios que emergem da Constituição brasileira aplicáveis ao direito de família, como a exemplo: dignidade da pessoa humana; solidariedade familiar; igualdade; afetividade; e, favorece vínculos biológicos distantes, de parentes colaterais de até 4º grau, denotando uma imensurável incoerência, como também um retrocesso social, uma vez que, até mesmo as legislações antecedentes de 1994 e 1996 igualaram companheiros e cônjuges, no que se refere ao direito das sucessões, o que não poderia então lei posterior retroceder situações menos vantajosas, percebendo também, afronta aos princípios da isonomia e do pluralismo das entidades familiares.
Disso resulta, por consequência, que as regras sucessórias aplicáveis ao companheiro devem ser as mesmas dos direitos sucessórios do cônjuge, já que não há argumento aceitável para o tratamento diferenciado, uma vez que, tanto a união estável como o casamento comunga da mesma natureza jurídica.
Embora alguns tribunais já entendessem nesse sentido, para bater o martelo na discussão, o Supremo Tribunal Federal também discutiu essa questão. Embora a matéria já esteja decidida, uma vez que, sete (maioria) dos dez ministros tenham votado pela inconstitucionalidade desde artigo, justificando que garante a Constituição Federal à equiparação entre os regimes da união estável e do casamento no tocante aos direitos sucessórios, o julgamento foi suspenso pelo pedido de vistas do ministro Dias Toffoli.
Para o ministro relator do caso, Luís Roberto Barroso, a hierarquização entre as entidades familiares e consequentemente a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros é inconstitucional no atual sistema jurídico. E, que desta forma, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil de 2002, deve ser aplicado em ambos os casos, como já fora evidenciado.
Ainda que o julgamento não esteja encerrado, essa discussão é de grande importância para sociedade, sobretudo para aqueles que vivem em união estável. Tendo em vista que, prevalecendo essa decisão, cairá por terra o sistema do artigo 1790 do Código Civil e o companheiro passará a figurar ao lado do cônjuge na ordem de sucessão legítima.
Diante dessa inovação, o companheiro concorrerá com os descendentes, a depender do regime de bens adotado, independe do regime concorrerá ainda com os ascendentes. E, na ausência de descendentes e de ascendentes, como ocorre com o cônjuge, receberá a herança sozinho, excluindo os colaterais até o quarto grau (são eles: irmãos, tios, sobrinhos, primos, tios-avôs e sobrinhos-netos).
Embora seja majoritário o argumento da equiparação da união estável ao casamento, conformidade também aplicada pelo Código de Processo Civil atual, em seus dispositivos e para os devidos fins processuais, essa igualdade não aconteceu na modulação dos efeitos dessa decisão. Isso se dá, tendo em vista que a recente discussão no Supremo Tribunal Federal entende que o efeito da decisão deve ser o ex-nunc, dali em diante e não o ex-tunc, que retroage. Isso se dá apenas para não tumultuar as relações já apreciadas pelo Poder Judiciário.
Deste modo, apesar de alcançar processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como às partilhas extrajudiciais em que ainda não tenha sido lavrada escritura pública, deixa de versar sobre sucessões já finalizadas sob a égide de uma norma arcaica, a qual nesta produção acadêmica em demasia se discutiu a sua inconstitucionalidade.