1. Dos créditos presumidos e a distinção entre hipótese de não-incidência e isenção tributária
Primeiramente, cumpre apontar que, tratando-se dos créditos presumidos, não é difícil constatar uma confusão feita entre hipótese de não-incidência e isenção tributária.
Hipótese de não-incidência tributária é toda ação ou condição que não encontra sua descrição hipotética nas regras jurídicas tributária. Ou seja, é toda ação ou condição não prevista como hipótese tributária ou fato gerador. Portanto, não depende de previsão, tampouco de lei especial (CF, art. 150, §6º), como se caso de exclusão tributária fosse (CTN, art. 97, VI). Toda ação ou condição social no mundo fenomênico que não encontra sua descrição elencada como materialidade tributária é caso de hipótese de não-incidência tributária.
Por exemplo, se os créditos presumidos de ICMS não configuram receita ou renda das empresas, dada sua natureza jurídica, definida em lei complementar (adiante, “LC”), como sendo renúncia de finanças públicas (LC 101/2000, art. 14, §1º), então se está diante de uma hipótese de não-incidência de IRPJ e CSLL, eis que não se subsume a nenhuma destas materialidades tributárias.
Por seu turno, a isenção tributária é caso de mutilação de um dos critérios da regra-matriz de incidência[1] da norma jurídica, impedindo que ocorra a formalização da mesma, seja em função de certos bens (isenção objetiva) ou pessoas (isenção subjetiva), conforme o interesse público. Depende de lei específica (CF, art. 150, §6º), bem como é caso de exclusão tributária (CTN, art. 175, I).
Em poucas palavras, a hipótese de não-incidência tributária é toda situação que não encontra materialidade tributária no direito positivo, enquanto a isenção tributária dirige-se à situação prevista no direito positivo, com intuito de impedi-la de formalizar-se, retalhando um dos critérios de formação da mesma.
Dada a diferença abissal que distingue estes dois fenômenos jurídicos, provoca espécie quando se vê afirmar que os Estados-membros invadem competência da União por ocasião dos créditos presumidos de ICMS, como se legislassem norma de isenção federal. Aliás, é justamente o contrário, pois é sabido que a invasão parte da União, ao passo que tributa as finanças renunciadas dos Estados-membros, ou seja, ao passo que tributam os créditos presumidos de ICMS.
Portanto, os créditos presumidos de ICMS não dependem de norma isentiva para ser excluído da base de cálculo dos tributos federais em discussão. Basta o reconhecimento de que, dada a sua natureza jurídica, ou seja, renúncia de finanças públicas dos Estados-membros, não se presta a subsumir-se às materialidades tributárias do IRPJ ou CSLL.
São preciosas as palavras do Juiz Federal ALTAIR ANTONIO GREGORIO, nos autos da apelação/remessa necessária nº 5042183-64.2015.4.04.7100/RS. Confira:
O cerne da lide é a qualificação dos créditos presumidos de ICMS como receita, renda ou aquisição de disponibilidade econômica que compõem a base de cálculo das referidas exações.
A legislação é clara ao definir as bases de cálculo das referidas exações e, independentemente das exceções previstas em cada legislação, o certo é que os valores que não se enquadrarem nos conceitos de 'receita bruta', 'renda ou proventos tributáveis' ou 'lucro', não devem sofrer a incidência da tributação. E esse é o caso do crédito presumido de ICMS aqui analisado.
O crédito presumido de ICMS é hipótese de ressarcimento de tributo que, no caso, representa uma tentativa do Estado-membro de diminuir os custo de produção e, consequentemente, o preço final das atividades descritas na legislação supramencionada. Para tanto, o Estado de Santa Catarina, como o fazem outras Unidades Federadas, realiza uma renúncia fiscal, direcionando os recursos às empresas dos setores favorecidos.
Como se vê, trata-se de uma estratégia econômica no âmbito estadual de manutenção da competitividade das indústrias catarinenses, não representando faturamento por parte das indústrias beneficiadas, já que o desconto é repassado para o preço final do produto, mantendo-se, dessa forma, a mesma margem de lucro por unidade vendida.
O crédito presumido de ICMS, que não é isenção tributária ou caso de exclusão de crédito tributário, é uma hipótese de não-incidência dos tributos federais, e havendo cobrança sobre seus valores é certo que se incorrerá em desobediência aos princípios constitucionais da estrita legalidade tributária (CF, art. 150, I), da capacidade contributiva (CF, art. 145, §1º), da forma federativa de Estado (CF, art. 60, §4º, I) e, sobretudo, da imunidade recíproca entre os entes da federação (CF, art. 150, VI, a).
2. Dos créditos presumidos de ICMS e da base de cálculo do IRPJ e da CSLL
É comum fazer referência ao critério quantitativo do IRPJ e da CSLL[2], atribuindo aos seguintes comandos legais o poder de delinear a base de cálculo destes tributos: arts. 43 do CTN; 44 da Lei 4.506/1964; 392, 443 e 521 do Decreto 3.000/1999.
Pois bem, dispensado o que se apresenta por via de leis ordinárias (adiante, “LO”), uma vez que não são competentes para estabelecer definições de fato gerador ou base de cálculo de tributos (CF, art. 146, III, a), o CTN, diploma legal recepcionado pela CF de 1988 com status de lei complementar (doravante, “LC”), no que diz respeito à base de cálculo do IRPJ, apresenta os seguintes enunciados prescritivos:
Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
I - de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
II - de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.
(...)
Art. 44. A base de cálculo do imposto é o montante, real, arbitrado ou presumido, da renda ou dos proventos tributáveis.
Diante disso, conclui-se que a condição sem a qual não se exige IR é que a riqueza disponível seja renda ou proventos tributáveis.
Renda, como se vê acima, é um signo jurídico definido como o produto do capital, do trabalho ou combinação de ambos, ou seja, se preferir, o produto econômico da atividade empresarial, tanto pelo manuseio do capital, como pela força de trabalho. Proventos, por sua vez, carrega a semântica de todo acréscimo patrimonial, que não seja renda, desde que também seja tributável, razão que leva o art. 44 a impor o termo proventos tributáveis.
Portanto, haja vista que os créditos presumidos de ICMS são renúncias financeiras dos Estados-membros, conforme disposto na LC nº 101/2000, cujo motivo é sempre um interesse público a ser atingido, certo é que não se confundem com renda ou proventos tributáveis da empresa, e, por dedução, não devem sofrer tributação pelo IRPJ ou CSLL.
Veja-se:
Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:
(...)
§ 1º A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.
Renúncias de finanças públicas traduzidas em créditos presumidos de ICMS não são produto econômico do capital, do trabalho e tampouco são (proventos) tributáveis, dado que o patrimônio e renda dos Estados estão imunes de tributação, segundo princípio da imunidade recíproca (CF, art. 150, VI, a), assim como não assumem os créditos presumidos feição alguma de materialidade tributária.
Nas palavras do Juiz Federal ALEXANDRE ROSSATO DA SILVA ÀVILA, nos autos do processo nº 5042183-64.2015.4.04.7100/RS:
A impetrante, por força da legislação tributária estadual, tem direito ao crédito fiscal presumido de ICMS nas saídas de determinadas mercadorias de fabricação própria, calculado em percentuais variáveis sobre o valor da operação, nos termos do art. 32, VIII, do Decreto Estadual 37.699/97.
Por sua vez, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000), em seu art. 14, § 1º, dispõe que a concessão de crédito presumido configura renúncia de receita, o que caracteriza, na verdade, uma espécie de auxílio à atividade empresarial, mediante transferência indireta de recursos públicos. E é justamente sobre essa renúncia fiscal concedida pelo ente estadual que a União quer fazer incidir o IRPJ e a CSLL.
O crédito presumido é um benefício fiscal. Não é uma receita pura e simples. É um mero crédito escritural que, frente ao princípio constitucional da não-cumulatividade que rege o ICMS, implicará redução do ICMS a ser pago para o Estado. Quer dizer, o incentivo fiscal gera aumento nos créditos escriturais do imposto num determinado período de apuração. Como o saldo credor fica maior que o saldo devedor, há uma redução do imposto apurado a ser pago. Portanto, o incentivo impacta de forma negativa a receita estadual do ICMS. Para compensar a perda de receita, nos Termos de Acordo firmado com o Estado, a impetrante compromete-se a realizar investimentos, manter um número determinado de empregados, etc.
Por força disso, reconhecido que a LC é competente para versar sobre base de cálculo tributária, o que deslegitima as definições enunciadas pela Lei 4.506/1964 e pelo Decreto 3.000/1999, caso transbordem o conceito de renda ou proventos tributáveis do CTN, e assim como a LC 101/2000 define créditos presumidos como sendo renúncia de finanças públicas, conclui-se que:
a) os créditos presumidos de ICMS não configuram renda ou proventos tributáveis da pessoa jurídica, notadamente por decorrer de um interesse público (CF, art. 146, III, a c/c CTN, art. 43, I e II);
b) tributá-los incorreria em ofensa patente ao princípio da estrita legalidade tributária e da imunidade recíproca entre os entes da federação, sobretudo porque os valores tributados são visceralmente ligados às receitas renunciadas pelos Estados-membros (CF, art. 150, I e VI, "a").
Frente a tudo aqui exposto, reunidos estão todos os elementos jurídicos que levaram a 1ª Turma do STJ a pacificar seu entendimento pela não incidência do IRPJ e da CSLL sobre os créditos presumidos[3], cujo exame da LC nº 101/2000 vem sendo a pedra-de-toque para a resolução do tema.
3. Da 1ª Turma do STJ e a resolução do tema a partir da definição de renúncia financeira constante da Lei Complementar nº 101/2000
Tratando precipuamente acerca da natureza jurídica dos créditos presumidos de ICMS, constata-se que não são hipóteses tributárias do IRPJ e da CSLL.
A razão é bem clara: os créditos presumidos de ICMS são créditos fictícios que, a partir da renúncia financeira dos Estados-membros, resultam na diminuição ou mesmo extinção da carga tributária devida pela empresa, motivando-a a competir no mercado a partir de um estímulo fiscal (vide AgRg no REsp. 1.463.364/SC e AgRg no REsp. 1.494.388/ES).
Essencialmente, os créditos presumidos de ICMS são a parcela de renúncia de riqueza do ente federado para atingir determinado interesse público.
À vista disso, conclui-se que os créditos presumidos de ICMS fogem do conceito jurídico de receita, lucro ou renda da empresa, o que faz da sua tributação uma violência ao princípio da legalidade (ausência de hipótese tributária) e da capacidade contributiva da pessoa jurídica (base de cálculo não reveladora de uma riqueza da pessoa jurídica).
Aliás, é nesse sentido que vem decidindo a 1ª Turma do STJ, reforçando a impossibilidade de cobrança do IRPJ e da CSLL sobre os créditos presumidos de ICMS. Confira:
RECURSO FUNDADO NO NOVO CPC/15. TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO. CRÉDITO PRESUMIDO DE ICMS. INCLUSÃO NA BASE DE CÁLCULO DO IRPJ E CSLL. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES DA 1ª TURMA.
1. A Primeira Turma desta Corte, firmou entendimento no sentido da não inclusão do crédito presumido de ICMS na base de cálculo do IRPJ e da CSLL, porquanto referidos créditos foram renunciados pelo Estado em favor do contribuinte como instrumento de política de desenvolvimento econômico daquela Unidade da Federação, devendo sobre eles ser reconhecida a imunidade do art. 150, VI, a, da CF. Precedentes: AgRg no REsp 1227519/RS, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 24/03/2015, DJe 07/04/2015 e AgRg no REsp 1461415/SC, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/10/2015, DJe 26/10/2015.
2. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt no REsp 1463166/RS, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/10/2016, DJe 08/11/2016) (grifei)
TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRÉDITO PRESUMIDO DE ICMS. INCLUSÃO NA BASE DE CÁLCULO DO IRPJ E DA CSLL. IMPOSSIBILIDADE.
1. Recurso especial que discute a possibilidade, ou não, de inclusão do crédito presumido de ICMS na base de cálculo do IRPJ e da CSLL.
2. A Primeira Turma, recentemente, por ocasião do julgamento do REsp 1.210.941/RS, Rel. p/ Acórdão Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 14/11/2014, ao decidir pela impossibilidade de inclusão do crédito presumido do IPI na base de cálculo do IRPJ e da CSLL, posicionou-se no sentido de que esse benefício fiscal não deve ser caracterizado como lucro da pessoa jurídica, mas, sim, como incentivo estatal para que a atividade do contribuinte seja melhor desempenhada e, por isso, não pode justificar a imposição de outros tributos, sob pena de mitigar ou até mesmo esvaziar a benesse concedida. Esse entendimento, mutatis mutandis, também deve ser aplicado ao crédito presumido de ICMS, já que constitui benefício fiscal de mesma natureza.
3. Com efeito, a Lei Complementar 101/2000, em seu art. 14 e § 1º, preconiza que a concessão de crédito presumido configura renúncia de receita e, por isso, deve estar acompanhada de estudo estimativo acerca de seu impacto orçamentário-financeiro.
4. No caso dos autos, com o objetivo de fomentar a atividade da recorrente em seu território, o ente tributante, devidamente autorizado pelo Confaz (Convênio ICMS 94/93), renunciou de parte de sua receita de ICMS, mediante concessão de crédito presumido desse imposto, no valor correspondente às despesas que a contribuinte possui com o frete decorrente das aquisições de aço. E é exatamente sobre essa renúncia fiscal que a Fazenda Nacional quer fazer incidir o Imposto de Renda Pessoa Jurídica - IRPJ e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL.
5. Tem-se, portanto, que, em verdade, a União busca tomar para si parte da receita, não do contribuinte, mas, sim, do Estado do Rio Grande do Sul e que fora renunciada em favor do contribuinte como instrumento de política de desenvolvimento econômico daquela Unidade da Federação. Reconhecida a origem estatal dos valores relativos ao crédito presumido, sobre eles deve ser reconhecida a imunidade de que trata o art. 150, VI, a, da Constituição Federal. 6. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp 1227519/RS, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 24/03/2015, DJe 07/04/2015) (grifei)
Uma vez que a LC nº 101/2000 define “renúncia” como gênero, no qual “crédito presumido” faz-se espécie, é que se percebe a inconstitucionalidade de incluir as renúncias de finanças públicas no rol de hipóteses tributárias, notadamente do IRPJ e da CSLL, cujas ações e condições reveladoras de riquezas tributáveis são sempre designadas por uma ação do particular, na exata medida do que impõe o princípio da capacidade contributiva.
Em linhas finais, a materialidade tributária do IRPJ e da CSLL[4] compreende todo acréscimo patrimonial disponível ao contribuinte mediante a incorporação de nova riqueza, não sendo lícito à União incluir as renúncias financeiras dos Estados-membros, isto é, os créditos presumidos de ICMS, na base de cálculo destes tributos federais, sem desobedecer os princípios constitucionais da estrita legalidade tributária (CF, art. 150, I) e, notadamente, da imunidade recíproca entre os entes da federação (CF, art. 150, VI, a).
Notas
[1] “A construção da regra-matriz de incidência, como instrumento metódico que organiza o texto bruto do direito positivo, propondo a compreensão da mensagem legislada num contexto comunicacional bem concebido e racionalmente estruturado, é subproduto da teoria da norma jurídica, o que significa reconhecer tratar-se de contribuição efetiva da Teoria Geral da Filosofia do Direito, expandindo fronteiras do território científico.” (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 3ª ed. São Paulo: Noeses, 2009. p. 146).
[2] Destaca-se que as mesmas disposições alusivas ao IRPJ aplicam-se à CSLL, conforme dispõe o art. 2º da Lei nº 7.689/1988 e art. 57 da Lei nº 8.981/1995.
[3] Precedentes: AgInt no REsp 1.517.492/PR, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 20/10/2016; AgRg no REsp 1.461.415/SC, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 26/10/2015; AgRg no REsp 1.227.519/RS, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 7/4/2015; AgInt no REsp 1.562.354/CE, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 4/10/2016.
[4] Destaca-se que as mesmas disposições alusivas ao IRPJ aplicam-se à CSLL, conforme dispõe o art. 2º da Lei nº 7.689/1988 e art. 57 da Lei nº 8.981/1995.