Recentemente, com advento da Lei nº 10.406/2002, foi instituído o novo Código Civil no nosso ordenamento jurídico, passando a disciplinar o Direito de Empresa e, por via de conseqüência, as sociedades não empresárias e empresárias, tendo sido acolhido a Teoria da Empresa.
Uma das inovações, ao meu sentir retrógradas, consta no artigo 977 que, de forma expressa, faculta aos cônjuges a contratação de sociedade entre si ou com terceiros, mas de forma condicionada, ou seja, desde que o regime matrimonial de bens não seja o da comunhão universal ou da separação obrigatória de bens.
Em outras palavras, se os cônjuges adotarem o regime legal, qual seja o da comunhão parcial é livre a constituição de uma sociedade entre eles ou juntamente com terceiros.
Diz-se que a "inovação" foi retrógrada porque antes do advento do referido ato normativo a própria doutrina e a jurisprudência, de forma dominante [1], entendiam pela possibilidade de os cônjuges constituírem sociedade limitada entre si ou com terceiros, independentemente do regime matrimonial de bens, até porque o artigo 3º da Lei nº 4.121/1962 ("Estatuto da Mulher Casada"), de forma clara, distinguia o patrimônio de cada cônjuge, ainda que o regime fosse o da comunhão universal.
Certo é que não se poderia presumir a intenção de os cônjuges alterarem o regime matrimonial de bens pelo fato de terem constituído uma sociedade entre eles ou com terceiros, até porque, caso fosse constatada alguma fraude seria possível a incidência da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, hoje também acolhida, de forma imprecisa, no artigo 50 do CC/2002.
Como requisitos de validade de um a sociedade tem-se a capacidade do agente, objeto lícito, possível e determinável, a forma prescrita ou não vedada por lei, a contribuição para formar o capital social e a participação nos lucros e nas perdas. Portanto, o fato de os sócios serem casados, por si só, não pode gerar a invalidade de uma sociedade.
É de se verificar que nos dias atuais é muito comum um cônjuge, ao invés de exercer a empresa individualmente, procurando sair da responsabilidade ilimitada, que é característica do empresário individual, procura o outro cônjuge, conferindo-lhe uma pequena participação societária, a fim de constituir uma sociedade, mas não necessariamente para burlar o regime matrimonial de bens, mas sim para viabilizar o exercício da empresa pela pessoa jurídica e assegurar a proteção ao seu patrimônio particular.
Ora, ao invés de o legislador ter vedado a sociedade entre cônjuges quando o regime for o da comunhão universal ou da separação obrigatória, poderia, seguindo outros ordenamentos jurídicos, acolher a figura do empresário individual com responsabilidade limitada, que afetaria parte de seu patrimônio para o exercício da empresa, acabando com a situação hipócrita que ocorre em várias sociedades denominadas fictícias, em que formalmente são formadas por, no mínimo, dois sócios, porém, substancialmente são unipessoais, levando-se em consideração que um dos sócios acaba possuindo uma participação irrisória.
Porém, o legislador, distanciando-se do posicionamento predominante entre os operadores do direito, acabou optando por vedar a possibilidade de constituição de sociedade entre cônjuges, em sendo o regime da comunhão universal ou da separação obrigatória.
Não se pode olvidar, no entanto, que antes do atual Código Civil muitos casais, adotando o regime da comunhão universal, constituíram sociedades empresárias (padarias, restaurantes, dentre outras), sendo certo que o artigo 2031 daquele diploma legal, cuja constitucionalidade é duvidosa, prevê que as sociedades constituídas na forma das leis anteriores terão o prazo de um ano [2] para se adaptarem às disposições deste Código, a partir de sua vigência, conferindo igual prazo aos empresários.
Como fica a situação destes casais ? Terão que resolver parcialmente ("dissolução parcial") a sociedade ? Poderão alterar o regime matrimonial de bens justamente para escaparem da proibição do artigo 977 do CC ? Qual a solução ?
É certo e sabido que o CC/2002, no artigo 1639, § 2º, de forma expressa, admitiu a possibilidade de o regime matrimonial de bens ser alterado, desde que através de autorização judicial em pedido fundamentado de ambos os cônjuges.
Desta forma, através de uma análise perfunctória, num primeiro momento, poderia ser adotada como solução a possibilidade daqueles casais requererem ao respectivo Juízo a mudança de regime, a fim de possibilitar a continuidade da sociedade entre eles.
Mas, e se não fosse admitida a alteração do regime, seria caso de "dissolução parcial", ou seja, resolver o vínculo de um dos cônjuges com a sociedade ?
Com a devida vênia, entendo que as duas soluções acima referidas afrontam não só o estado jurídico daqueles cônjuges, mas principalmente o próprio ordenamento jurídico, uma vez que desrespeitam direitos e garantias fundamentais, precisamente o princípio da segurança jurídica, senão vejamos :
Na esteira deste raciocínio, não se pode perder de vista o disposto no artigo 2039 do CC/2002, que preceitua que o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior é o por ele estabelecido. Em outras palavras, aquelas pessoas casadas antes do atual CC/2002 não podem alteram o regime de bens, vez que a disciplina anterior previa a imutabilidade.
No tocante à "dissolução parcial", acaso adotada como "solução", na realidade acaba ofendendo direitos subjetivos daqueles cônjuges, pois quando constituíram a sociedade o legislador não vedava tal constituição. Pelo contrário, o entendimento doutrinário e jurisprudencial admitia, inclusive, o Órgão administrativo com incumbência do registro das sociedades realizava o arquivamento dos atos constitutivos.
A solução deve passar obrigatoriamente pela Constituição da República, nossa Lei Maior, vez que o artigo 2031 do CC/2002 não pode ser aplicado à hipótese, sob pena de ser considerado inconstitucional, face à flagrância violação ao disposto no artigo 5º, inciso XXXVI, da Carta Magna, que prestigia o princípio da segurança jurídica, várias vezes violado pelo legislador infraconstitucional, ou seja, a lei não pode violar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
No presente caso, aqueles cônjuges quando constituíram a sociedade acabaram formalizando o ato constitutivo, sendo assim, urge que sejam respeitados o ato jurídico perfeito e o direito adquirido.
Ademais, o próprio artigo 2035 do CC/2002 acaba por contribuir para esta solução quando preceitua que a validade dos negócios jurídicos e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no artigo 2045 do mesmo diploma legal.
À época do Código Comercial e do Código Civil de 1916 não existia qualquer vedação para a constituição de sociedades entre cônjuges independentemente do regime matrimonial de bens, o que faz com se chegue à conclusão de que aquelas sociedades devem ser consideradas válidas, até porque atenderam aos requisitos genéricos e específicos de validade.
Em suma, os cônjuges casados antes do atual CC/2002 não podem modificar o regime matrimonial de bens, pois quando casaram o mesmo era imutável, já sabiam da regra do jogo. No entanto, caso tenham constituído sociedade entre si ou com terceiros, de toda sorte, esta não pode, com fundamento no artigo 977 do CC/2002, ser dissolvida sequer parcialmente, sob pena de ser violado o princípio constitucional da segurança jurídica.
Esta é a singela contribuição, respeitando-se os entendimentos em contrário.
Notas
1 Por todos, Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, volume 1, editora Saraiva-2003
2 A Lei nº 10.838, de 30 de janeiro de 2004, artigo 1º, ampliou o prazo para dois anos.