A contemporaneidade da eficácia da função social do contrato

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3. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

Conceituando a função social se pode entender melhor seu papel significante nos contratos. De acordo com Bobbio apud Santiago (2005, p. 76), se traduz a função* como a “prestação continuada que um determinado órgão dá para a conservação e desenvolvimento, segundo um ritmo de nascimento, crescimento e morte, de todo o organismo, é dizer, do organismo considerado como um todo.” Ou seja, é a ligação que existe entre algo para a realização de um determinado acontecimento, este dependendo daquele.

No entendimento de De Plácido e Silva apud Santiago (2005, p. 76), a função é o direito ou dever de agir em que uma pessoa é incumbida por lei para assegurar a realização de uma missão. Dessa forma, é possuidor da função um funcionário público, pois age impelido no seu dever no qual foi-lhe atribuído através de uma lei.

Para Bonavides apud Santiago, o vocábulo social* é de grande imprecisão semântica, por isso não se conceitua precisamente, (2005, p. 76). Caracterizando-se assim, uma dificuldade para sua tradução por não ter um conceito exato.

Se acordo com o conceito de Hedemman apud Santiago (2005, p. 76), a palavra social significa “el punto de partida ideológico de la contraposición entre pobres y ricos o, como frecuentemente se dice en la literatura científica, entre los que tienen bienes y los desheredados”*. Assim, pode-se verificar que o verbete social tem a ver com a denominação da classe em que se encontra determinada pessoa, separando-as de acordo com seu status na sociedade.

É com a junção dos vocábulos função e social que se tem a função social, que Gorla apud Santiago (2005, p. 77) contribui para exemplificar o modelo de contrato que não atende a função social:

Un contrato que se dirija a realizar intereses fútiles, caprichosos, que no representen ningún interés para la sociedad o ninguna ‘utilidad social’, un contrato ‘socialmente fútil o improductivo’ no sería digno del reconocimiento jurídico, sino que sería jurídicamente indiferente.*

Com este posicionamento, pode-se verificar que, ao não atender os interesses sociais, da coletividade, o contrato deixa de ter sua função útil do mundo jurídico, não devendo, dessa forma, ter o reconhecimento jurídico.

Renner apud Branco (2006, p. 102) se posiciona de maneira contrária perante os caracteres da função social ao afirmar que:

A função social (...) é representada por todo o complexo de efeitos que um instituto jurídico exercita sobre a sociedade: ‘le funzioni particolari si fondono nell´única funzione sociale’*. (...) não é, portanto, um meio de realização do princípio da socialidade, mas o conjunto de funções econômicas que atingem a sociedade na sua complexidade.

Assim, não se entende que haverá a supremacia dos interesses sociais toda vez que houver colisão com os interesses individuais, mas a consideração que cada instituto jurídico exerce sua função social vinculado no modo de produção da sociedade, qual seja o modo capitalista. Verifica-se que é inerente aos institutos jurídicos sua capacidade de conter a função social, não necessariamente atendendo a dicotomia indivíduo/coletividade.

De acordo com o ponderamento de Comparato apud Godoy (2004, p. 111), com a união dos termos “função” e “social” se tem o propósito de garantir que os fins almejados no contrato não se reduzam à realização dos interesses individuais das partes.

(...) quando se fala em função, tem-se, em geral, a noção de um poder de dar destino determinado a um objeto ou a uma relação jurídica, de vinculá-los a certos objetivos; o que, acrescido do adjetivo ‘social’, significa dizer que esse objetivo ultrapassa o interesse do titular do direito – que, assim, passa a ter um poder-dever – para revelar-se como de interesse coletivo.

As partes contratantes devem fazer com que seu contrato beneficie a coletividade em si, atendendo o interesse comum e prevalecendo o que melhor acolher à pretensão pública. Não é permitido efetivarem apenas suas pretensões individuais colimadas, sendo consoante com a compreensão de Popp apud Godoy (2004, p. 115) ao se referir à função social do contrato como um mecanismo que intervém para que ocorra a diminuição da desigualdade e se possa ampliar a liberdade das partes contratantes.

No mesmo sentido se posiciona Cimbali apud Branco (2006, p. 90):

A função social serve para temperar o excesso de egoísmo existente entre as classes e para assegurar um maior grau de cultura e força para cada particular. Por isso o Estado ingere para garantir higiene, moralidade e educação dos operários, bem como modera a concorrência ilimitada do capital, impede os efeitos desastrosos do monopólio (...). Em resumo, o Estado tempera certas desigualdades para evitar conflitos que surgem do progresso da sociedade.

Pode-se verificar assim que, o instituto da função social surgiu como maneira de diminuir as desigualdades entre as classes e consequentemente aumentando a força dos indivíduos contratantes. Para evitar o prejuízo da parte mais fraca, aparece o Estado administrando os efeitos que a sociedade em desenvolvimento produz de maneira tal que ameniza as desigualdades e beneficia a justiça social.

Cimbali apud Branco (2006, p. 96) compreende a função social e o contrato de maneira integrada no mundo jurídico e ainda que a liberdade e a função social não precisam necessariamente ser contrárias, mas são elementos diferentes de um mesmo problema.

Em matéria de contratos, pode-se dizer que houve uma mudança na forma de sua elaboração, passando do Estado Liberal, individualista, para o Estado Social, que preza a igualdade social, desempenhando grande contribuição à nova visão do contrato e possibilitando uma outra interpretação do solidarismo social (GODOY, 2004, p. 126).

Com a evolução da forma de elaborar contratos, pode-se considerar que houve grande desenvolvimento nesta área em se tratando de sua interpretação, pois hodiernamente está mais voltada para a igualdade social.

A função social dos contratos não pode ser divorciada da concepção que norteou o processo legislativo. De fato a lei expõe mais que o legislador, porém para entender o Código Civil faz-se necessário analisar as idéias que nortearam a criação desta lei.

3.1 A contemporaneidade da aplicação da função social do contrato

Em análise doutrinária verifica-se que doutrinadores falam de maneira geral sobre o contrato, sua evolução, sobre princípios contratuais, elementos do negócio jurídico, porém desconhecem a finalidade e a aplicação da função social do contrato. Até dizem que tem como finalidade a distribuição de riquezas, mas acerca de sua aplicação prática não contemplam nada, não dão exemplos.

Na visão de Martins-Costa apud Godoy (2004, p. 156):

A operatividade da função social representa uma forma legislativa em que a concreção especificativa da norma não está já pré-constituída, devendo por isso ser construída pelo julgador, e cada novo julgamento, com auxílio dos precedentes e da doutrina.

Infere-se que para se ter exemplos que servirão de precedentes deve haver julgamentos em favor da aplicação da função social que serão embasados a partir da interpretação deste princípio.

Assim, rara é a doutrina que contempla qualquer exemplo de aplicação da função social do contrato, ensejando sua concretude.

Nesta seara, onde inexistem obras que exemplifiquem a aplicação deste princípio, faz-se necessário a análise de jurisprudências onde esta lacuna será preenchida e demonstrada como de fato está sendo utilizada nos julgamentos contemporâneos.

A priori, serão analisados alguns acórdãos do Superior Tribunal de Justiça. Verifica-se neste acórdão um dos efeitos deste princípio, que reitera os conceitos fornecidos pelos doutrinadores: “A função social do contrato veta seja o interesse público ferido pelo particular.”*

Julgamento que apenas corrobora com a doutrina examinada, onde prevalece o interesse público sobre o privado e o coletivo sobre o individual.

Outro acórdão do Superior Tribunal de Justiça prevalece que é imprescindível a análise dos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato na decisão de controvérsia, ainda que se trate de questão de ordem pública.*

Exemplo encontrado em trecho de acórdão do referido Tribunal sobre a aplicação deste princípio:

RECURSO ESPECIAL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. IMPUGNAÇÃO EXCLUSIVAMENTE AOS DISPOSITIVOS DE DIREITO MATERIAL. POSSIBILIDADE. FRACIONAMENTO DE HIPOTECA. ART. 1488 DO CC/02. APLICABILIDADE AOS CONTRATOS EM CURSO. INTELIGÊNCIA DO ART. 2035 DO CC/02. APLICAÇÃO DO PRINCIPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS.

O art. 1488 do CC/02, que regula a possibilidade de fracionamento de hipoteca, consubstancia uma das hipóteses de materialização do princípio da função social dos contratos, aplicando-se, portanto, imediatamente às relações jurídicas em curso, nos termos do art. 2035 do CC/02.*

O acórdão faz referência ao artigo 2.035, do Código Civil de 2.002, por se tratar de contrato realizado na vigência do Código Civil de 1.916, porém conforme aplicação deste artigo, o contrato tem seus efeitos regidos pelo atual Código Civil, devendo assim, respeitar o princípio da função social do contrato.

Mais um acórdão do Superior Tribunal de Justiça que diz respeito à aplicação da função social em contrato de prestação de serviços educacionais:

CONSUMIDOR. CONTRATO DE PRESTAÇÕES DE SERVIÇOS EDUCACIONAIS. MENSALIDADES ESCOLARES. MULTA MORATÓRIA DE 10% LIMITADA EM 2%. ART. 52, § 1º, DO CDC. APLICABILIDADE. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA E TELEOLÓGICA. EQÜIDADE. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.*

O contrato de prestação de serviços educacionais, conforme este acórdão, não pode ter multa moratória superior a 2%, fato que pela interpretação sistemática e teleológica ensejaria um desrespeito a função social do contrato. Pois este contrato deve exercer sua função social que é a prestação de serviços educacionais, beneficiando toda a coletividade, não dando prioridade ao lucro e nem querendo obter um enriquecimento demasiado neste contrato.

Analisam-se agora os acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que são em maior número e versam sobre outras circunstâncias.

Acórdão proferido com o provimento do recurso onde se requereu a revisão contratual no Sistema Financeiro de Habitação, garantindo a efetivação do direito constitucional à moradia:

Os contratos firmados no âmbito do sistema financeiro de habitação têm a função social de efetivar o direito constitucional à moradia. Inclusive, é neste intuito que as condições e encargos contratuais devem ser avençados de modo a permitir o atendimento deste fim. Sendo assim, quando verificada abusividade na cobrança de encargos, é de se permitir a revisão contratual para o fim de readequar o pacto ao seu fim maior.*

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Fica evidenciada a concretude da função social do contrato neste acórdão, pois o contrato do Sistema Financeiro de Habitação tem o condão primordial de efetivar o direito à casa própria, direito este com amparo constitucional. Dessa forma, as parcelas do financiamento devem ser readequadas e os juros aplicados devem ser os simples.

 Acórdão que também versa sobre a questão do Sistema Financeiro de Habitação trata do abrandamento da obrigatoriedade contratual:

Os princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva flexibilizam o princípio da obrigatoriedade dos contratos e permitem a revisão contratual, a qual já foi oportunizada em primeiro grau de jurisdição.*

Assim, mais um julgamento que prioriza a aplicação do princípio da função social do contrato para revisão contratual em financiamentos realizados para habitação, prevalecendo o direito à moradia sobre o lucro excessivo da outra parte do contrato.

Mais um julgamento que prioriza a observância da boa-fé objetiva e da função social do contrato:

A hodierna doutrina, bem como o atual ordenamento jurídico brasileiro, permitem a revisão dos contratos, já que mitigam o princípio do pacta sunt servanda, sendo que o Novo Código Civil prima pela observância da boa-fé e da função social do contrato, obliterando a observância cega do contratado.*

Verifica-se que o princípio do pacta sunt servanda tem sua mitigação face a aplicação dos princípios da boa-fé e da função social do contrato, permitindo assim a revisão contratual.

Acórdão de ação revisional de contrato de cartão de crédito:

O princípio clássico da obrigatoriedade dos contratos, bem como os princípios da autonomia da vontade e da liberdade de contratar, devido à evolução e à complexidade das relações contratuais que se estabelecem hodiernamente, passaram a ser interpretados em conjunto com os princípios modernos da equivalência material das partes, boa-fé objetiva e função social do contrato. Daí que possível e necessária a revisão e modificação do contrato quando nele presentes cláusulas contratuais que estabeleçam obrigações e prestações desproporcionais para as partes contratantes, sem que se cogite de violação do princípio da pacta sunt servanda.*

É cabível a revisão do contrato quando este estabelece obrigações e prestações desproporcionais para os contratantes, o princípio da obrigatoriedade dos contratos não está sendo violado, mas apenas sofrendo uma limitação frente aos modernos princípios contratuais, quais sejam o da boa-fé objetiva e da função social do contrato.

Ação de responsabilidade obrigacional de seguro habitacional, com contrato de adesão tem suas cláusulas contratuais com interpretação mais favorável ao consumidor:

1. Em todo o pacto de adesão como o contrato de seguro se lhe aplicam as regras constantes do Código de Defesa do Consumidor, que deve ser interpretado de forma mais favorável ao consumidor.

2. As cláusulas contratuais contraditórias devem ser interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor, em consonância com a norma inscrita no artigo 47, do CDC. De modo que se faz necessário o reconhecimento da cobertura securitária por vícios de construção, uma vez que inserida na responsabilidade civil do construtor, mais benéfica aos aderentes e apta a cumprir a função social do contrato de seguro habitacional.

3. É de se reconhecer a abusividade da cláusula restritiva, porque desnatura o objeto do contrato de seguro (art. 51, inc. IV, e §1º, II), negando cobertura aos danos mais recorrentes nos imóveis financiados, em afronta à finalidade social do seguro habitacional nos casos de contratos celebrados no âmbito do SFH.*

Inegável é que celebrado o contrato de seguro habitacional e ocorrendo qualquer lesão ao patrimônio segurado, deve o seguro ser acionado e responsável pelo ressarcimento dos reparos, pois há de ser responsabilizado pela cobertura de danos mais recorrentes nos imóveis financiados, atendendo assim sua finalidade social.

Em ação revisional de contrato e encargos, no contrato de abertura de crédito em conta corrente foi limitado a cobrança dos juros à 12% ao ano, excluindo a capitalização e a cobrança de encargos sem previsão contratual:

(...) A VALIDADE DO CONTRATO NÃO IMPEDE A DISCUSSÃO ACERCA DA ABUSIVIDADE DE SUAS CLÁUSULAS. RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA 'PACTA SUNT SERVANDA' EM RAZÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO DE ADESÃO E ONEROSIDADE EXCESSIVA. (...).*

Verifica-se a relativização do princípio da pacta sunt servanda, da doutrina clássica dos contratos, face o princípio da função social - da doutrina moderna dos contratos. Mesmo a obrigatoriedade dos contratos, que faz lei entre as partes, é mitigada quando o contratante é a parte mais fraca da relação, ocorrendo no presente caso com o contrato de adesão somado com a onerosidade excessiva.

Frente às inúmeras jurisprudências recentes do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que anseiam pela aplicação da função social do contrato, fica claro que este moderno princípio contratual está sendo respeitado e aplicado em praticamente todos os julgamentos.

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Sobre os autores
Diogo Lopes Cavalcante

Procurador da Fazenda Nacional. Mestre em Processo Civil pela Unipar. Especialista em Direito Público pela UnB.

Mariane Mergen

Acadêmica de Direito da Unipar

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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