INTRODUÇÃO.
As associações de profissões – também chamadas corporações de ofício - desempenharam, ao longo de toda a história humana, papel importante na defesa de interesses de classe bem como de aperfeiçoamento dos profissionais. Na maior parte dos países ocidentais existiram e ainda existem associações das mais variadas profissões.
No Brasil, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), criada pelo Decreto 19.408 de 1930, possui, entretanto, uma faceta diferente das outras corporações de ofício. É que, além do óbvio caráter corporativo, a Ordem tem inegavelmente uma função institucional e um papel central na defesa das instituições do Estado Democrático e de Direito.
Nesse sentido, a Carta de 1988 conferiu à Ordem um status de que nenhuma outra associação de profissões goza, bem como elevou o advogado a figura indispensável à administração da justiça (Art. 133). Para além, ao seu órgão de cúpula – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – foi outorgada a excelsa prerrogativa de propor as ações do controle concentrado de constitucionalidade (Art. 103, VII), como forma mesmo de possibilitar à Ordem o exercício de sua finalidade de defesa da ordem democrática e de direito.
Mostra-se evidente, portanto, a importância de se atentar para as condições e prerrogativas que permitem à Ordem manter a sua independência, não só como garantia de sua dignidade, mas também, e principalmente, a fim de manter a eficiência no desempenho de sua singular atividade.
Nessa senda, o presente estudo se preocupará em analisar o julgamento da ADI 3026/DF, na qual o Supremo Tribunal Federal definiu que a Ordem não é, como por muito tempo se considerou, uma autarquia especial e, portanto, não é parte da Administração Pública Indireta e com ela não possui vínculo de subordinação algum.
1.O julgamento da ADI 3026/DF pelo Supremo Tribunal Federal.
A ADI 3026/DF foi proposta em 28 de outubro de 2003 pelo então Procurador-Geral da República contra o trecho final do parágrafo 1º do artigo 79 da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da OAB), que ostenta a seguinte redação:
“Art. 79. Aos servidores da OAB, (sic) aplica-se o regime trabalhista.
§1º. Aos servidores da OAB, sujeitos ao regime da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, é concedido o direito de opção pelo regime trabalhista, no prazo de noventa dias a partir da vigência desta lei, sendo assegurado aos optantes o pagamento de indenização, quando da aposentadoria, correspondente a cinco vezes o valor da última remuneração.”[1]
Outrossim, o Ministério Público Federal pretendia fosse dada interpretação conforme o inciso II do artigo 37 da Constituição Federal ao caput do artigo 79 do Estatuto, para que fosse firmado o entendimento de que o provimento dos cargos da Ordem dos Advogados do Brasil devesse ocorrer por meio de concurso público.
Em relação à alegada inconstitucionalidade da parte final do citado parágrafo primeiro do artigo 79 do Estatuto da OAB, o Procurador-Geral alegava que o preceito estaria em desacordo com o caput do artigo 37 da Carta Política, pois violaria o princípio da moralidade administrativa nele insculpido. Aduzia, ainda, que a OAB deveria se sujeitar a tal princípio por possuir natureza de autarquia.
Especificamente, sustentava que a OAB se trata de uma autarquia, uma vez que fora criada por lei específica, cujo regulamento decorreu de processo legislativo. Possui a Ordem personalidade jurídica própria, sendo capaz de se auto-administrar, atuando no exercício de atividade pública e específica do Estado e gozando de prerrogativas inerentes à condição de pessoa jurídica de direito público da Administração Indireta.
O julgamento é iniciado pelo Pleno do STF em 23 de fevereiro de 2005 com o voto do relator, Ministro Eros Grau.
O Ministro relator inicia apontando que o fundamento de ambos os pedidos, declaração de inconstitucionalidade e interpretação conforme, baseia-se, fundamentalmente, no entender de ser a OAB uma autarquia.
O relator observa, nesse aspecto, que o simples fato de ter sido a Ordem criada por lei não lhe atribui, por si só, o caráter de autarquia, uma vez que a União também cria ou autoriza a criação de entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado.
Após referir o conceito dado para a Ordem por alguns doutrinadores, e diferenciá-la do anterior Sindicato dos Advogados, o Ministro Eros Grau é claro:
“O fato é que, iniludivelmente, a OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco de personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro.
Ela, sim, é um serviço independente, de feitio único. Distinta e diversa da categoria na qual estariam inseridas essas que se tem referido como “autarquias especiais”, para pretender-se afirmar, e de modo equivocado, certa independência das hoje chamadas “agências”.[2] (grifos no original)”
O relator segue obtemperando acerca do seu entender de que existe uma pluralidade de Administrações Públicas no Direito Brasileiro, todas titulares de relações jurídico-administrativas. Essa pluralidade de Administrações, no entanto, atua de modo harmônico, através de uma unidade estrutural e sistemática que, para o votante, decorre do disposto no artigo 37 da Constituição Federal.
Especificamente em relação às autarquias, a pena do relator envereda para a afirmação de que, embora não subordinadas a órgão algum do Estado, não são absolutamente independentes, uma vez que sujeitas ao vínculo da tutela administrativa[3].
E é exatamente por esse motivo que o Ministro refuta a assertiva de ser a OAB uma autarquia, porquanto a compreende como não sendo parte da Administração Indireta e tampouco se sujeitando à tutela administrativa.
Sobre essa não-vinculação, assevera:
“[...]é formal e materialmente necessária. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça, nos termos do que dispõe o artigo 133 da Constituição do Brasil. Entidade cuja finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de advogados não poderia vincular-se ou subordinar-se a qualquer órgão público.
A Ordem dos Advogados do Brasil é, em verdade, entidade autônoma, porquanto autonomia e independência são características próprias dela, que, destarte, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional. Ao contrário deles, a Ordem dos Advogados do Brasil não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas, mas, nos termos do art. 44, I da lei, tem por finalidade “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”. Esta é, iniludivelmente, finalidade institucional e não corporativa.”[4]
Após referir algumas atribuições conferidas pela Constituição Federal à Ordem, bem como traçar um histórico de seu desenvolvimento desde a sua criação em 18 de novembro de 1930, o Ministro relator reafirma não ser a OAB uma autarquia, mas anuncia, diante da índole de causa aberta da ação direta de inconstitucionalidade, que considera inconstitucional todo o preceito veiculado no parágrafo 1º do artigo 79 do Estatuto, embora não pelo motivo ventilado pela Procuradoria-Geral da República.
O relator adjetiva de inconstitucional o aludido dispositivo por entender desprovida de pertinência a normal legal, porquanto inadmissível a atribuição de tratamento estatutário aos empregados da OAB.
Posteriormente, o Ministro analisa o requerimento de que seja conferida interpretação conforme o artigo 37, II da Constituição Federal ao artigo 79 do Estatuto da OAB. Essa análise, entretanto, refoge da proposta do presente trabalho, uma vez que se cinge a analisar a adequação da técnica eleita da interpretação conforme.
Finalmente, o relator profere um aditamento ao seu voto, informando que a norma em análise produziu efeitos concretos e solicitando, caso haja decreto de inconstitucionalidade, sejam temperados os efeitos daí decorrentes.
Findo o voto do relator, seguiu-se discussão entre os Ministros Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence, Eros Grau e Marco Aurélio acerca de aspectos formais da ação proposta. No decorrer do debate, todavia, o Ministro Marco Aurélio apontou o que estava verdadeiramente em debate na referida ADI 3026/DF:
“Agora, o que está em discussão neste processo não bem a cabeça do artigo 79, nem o §1º. O tema mais importante é a definição da natureza jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil, do Conselho Federal, e notamos que nos defrontamos com uma entidade, com um ente ao qual se atribuiu não apenas o cadastramento de certo segmento profissional, mas também a fiscalização, podendo haver exclusão, inviabilizando-se o exercício profissional e, mais do que isso, podendo ser exercido o poder de polícia, poder de punir. Deu-se ainda a esse Conselho, como a dezenas de conselhos – estamos julgando indiretamente o sistema -, a possibilidade de impor, como se integrante realmente da Administração Pública, contribuições obrigatórias, com um detalhe: todos sabemos que a capacidade pressupõe a inscrição na Ordem dos Advogados. Daí a importância, para mim até maior quanto a outros conselhos, do próprio Conselho revelado pela Ordem.”” [5]
É levantada, então, uma questão preliminar sobre a admissibilidade do pedido de interpretação conforme acerca do caput do artigo 79 do Estatuto. Na votação preliminar, merece destaque o voto proferido pelo Ministro Cezar Peluso, que apreende bem o objeto de discussão da ação:
“[...] conheço do pedido, porque entendo que há dúvida, e esta nasce exatamente da fundamentação, que a suscita sobre a natureza jurídica da OAB, ensejando duas interpretações: uma, que a OAB é entidade de Direito Privado, e a outra, que seria de Direito Público.
No primeiro caso, não se exigiria concurso público para preenchimento de cargo; e, na segunda hipótese, exigir-se-ia, a despeito de o regime de pessoal ser celetista.”[6]
Finda a votação preliminar, e tendo o Plenário conhecido o pedido na questão da interpretação conforme, o relator, Ministro Eros Grau, confirma o seu voto, entendendo desnecessária a realização de concurso público para admissão dos empregados da OAB, e assenta: “Entidade que não participa da Administração não fica sujeita, a meu ver, a concurso público”[7]. Em seguida, conclui: “A Ordem dos Advogados do Brasil e os partidos políticos, que também têm características semelhantes, não estão sujeitos a concurso público”.[8]
Na sequência da tomada dos votos, o Ministro Joaquim Barbosa firma o seu entendimento de que a OAB é sim uma autarquia e, portanto, parte da Administração Indireta, inaugurando a divergência. Aderiu também à divergência o Ministro Carlos Britto.
Após o voto do Ministro Carlos Britto, inicia-se novo debate no Plenário, sendo que, no seu decorrer, o Ministro Cezar Peluso observa uma questão particularmente importante para o presente estudo.
É que a OAB é fruto de um processo histórico, político e institucional sui generis do país, sendo que, em decorrência disso, torna-se particularmente difícil enquadrá-la em alguma categoria do Direito Administrativo, sob pena de se justamente trair esse processo. Disse o Ministro Peluso:
“[...] há uma tendência óbvia na ciência do Direito e entre os seus aplicadores, também de, diante de certas dificuldades conceituais, se recorrer (sic) às categorias existentes e já pensadas como se fosse escaninhos (sic) postos pela ciência, onde um fenômeno deva ser enquadrado forçosamente.
Recordo, a propósito, a secular tentativa de explicação do que era o processo e o procedimento, hoje postos como categorias autônomas na Teoria Geral do Direito; hoje ninguém mais discute que o processo e o procedimento são categorias autônomas. [...].
Toda dificuldade que vejo, nesta caso, é de tentar colocar forçosamente essa instituição dentro de um desses caminhos preestabelecidos, como se isso fosse suficiente para resolver todos os problemas, que é a falta de uma definição mais clara por parte do ordenamento.”[9]
E, na sua conclusão, o Ministro Cezar Peluso apreende com particular clareza a questão:
“Isso significa, para abreviar, que a instituição está sujeita a normas de direito público e, ao mesmo tempo a normas de direito privado, independentemente de saber se é autarquia típica, se é autarquia especial. Isto não importa para se resolver o caso concreto, admitir que, perante o ordenamento jurídico, a OAB está sujeita, em alguns aspectos, a normas de direito público e, em outros, a normas de direito privado.”[10]
Após esse voto, o Ministro Carlos Britto reconsidera o seu, referindo, em suma, que a OAB, embora inegavelmente de natureza sui generis, é uma instituição da sociedade civil, e não da sociedade estatal. Conclui colocando a OAB ao lado da Imprensa como as duas grandes instituições da sociedade civil e, por sua própria natureza, infensas a controles estatais.
Prosseguindo, o Ministro Gilmar Mendes pediu vista dos autos e, em sessão de 08 de junho de 2006, proferiu o seu voto que aprofunda bastante a discussão sobre a natureza jurídica da OAB. Em suma, o Ministro refere ser a OAB um serviço público stricto sensu, tratando-se de organização pública que, sob a nomenclatura de autarquia ou não, desempenha papel institucional com forte caráter estatal e público, responsável que é por atividade de inegável relevância pública[11].
Após um extenso arrazoado acerca das características peculiares da OAB, o Ministro Gilmar Mendes propõe a aplicação, ao caso, da doutrina americana dos public function cases, inferindo que a Ordem, embora não guarde vínculo de subordinação algum com o Estado, deve se submeter, no caso específico da contratação de empregados, aos princípios que regem a Administração Pública, notadamente a regra constitucional do concurso público.
Depois do voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, instaurou-se novo debate entre os Ministros. Nessa oportunidade, uma das manifestações do Ministro Carlos Britto é de especial importância para a ilustração da aura cinzenta que cerca a definição do caráter jurídico da OAB, e, mais importante, quais os reflexos de tal definição.
“A OAB pode ser considerada entidade pública no plano do múnus, no plano do ofício – vamos chamar de função -, no plano da função, mas não é entidade pública no plano da composição dos seus quadros, da formação da sua diretoria, da forma de investidura da sua diretoria, na forma de recrutamento de seus servidores. Bifronte nesse sentido. Ela é ambivalentemente pública e privada. O seu regime jurídico é necessariamente público e privado.”[12]
Finalizada a discussão, proferiu voto o Ministro Lewandowski, acompanhando o relator. Em seguida, o voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio foi econômico ao enfrentar a questão da natureza da OAB, atendo-se a questões outras que refogem do presente trabalho.
Depois de nova discussão, o Ministro Joaquim Barbosa afirma ponto de vista de grande valia para este estudo, no qual se preocupa em analisar o que denomina de caráter anfibológico da Ordem, inferindo que, para determinadas situações, a OAB quer ser Poder Público, mas para outras, no entanto, invoca para si caráter privado, notadamente afastando-se da fiscalização estatal.
“[...] ela [a OAB] deveria sair das costelas do Estado, abrir mão desse seu papel de co-auxiliar na formação da vontade do Estado e assumir uma postura liberal. Há países nos quais não se admite sequer a possibilidade de existência de um advogado público. A profissão é liberal, então, é inadmissível o exercício da função de advogado público, porque seria incompatível com esse caráter liberal. Mas, aqui, temos essa situação anfibológica: a Ordem, para certas coisas, quer ser Poder Público, forma a vontade do Estado, recebe verba pública, tem o privilégio de ingressar nas mais relevantes funções do Estado sem prestar concurso público e, por outro lado, quer ter um status absolutamente liberal. É essa incongruência que, um dia, terá de ser eliminada.”[13]
O julgamento foi finalizado com os sucintos votos dos Ministros Sepúlveda Pertence e Ellen Gracie, então presidente da Corte, acompanhando o relator.
Depreende-se desse julgado, ora em análise, que a grande preocupação do Supremo Tribunal foi a de apartar a OAB da classificação clássica trazida por grande parte da doutrina de Direito Administrativo como sendo uma autarquia especial. Não por outro motivo, aliás, isso constou expressamente na ementa do aresto.
E com razão. Novamente ancorando-se na lição de Odete Medauar[14], tem-se que autarquia significa, literalmente, “poder próprio”, sendo usado pela primeira vez pelo publicista italiano Santi Romano, em 1897, a fim de identificar a situação de entes territoriais e institucionais do Estado unitário italiano.
Para referido autor, entretanto, à míngua do significado literal da palavra, autarquia significava sempre administração indireta do Estado exercida por pessoa jurídica, no interesse próprio e do Estado.[15]Ou seja, havia vínculo direto entre o interesse estatal e o interesse da autarquia.
E esse vínculo atenta contra o processo histórico de formação da Ordem, a qual deita raízes ainda na Roma antiga, com os seus collegium, togatorum e suas ordo, em que os advogados se reuniam, privadamente e sem a interferência estatal, para definir as regras de sua atuação.
Essa característica se perpetua, posteriormente, com as corporações de ofício e as guildas, na Idade Média, completamente apartadas de qualquer interferência do Poder Público.
Tal modelo é também implantado no Brasil, sendo que tanto a atuação como a organização da Ordem sempre foram absolutamente independentes do Estado. No já citado parecer, datado de 1950, Dario de Almeida Magalhães ilustra a situação.
“Na realização de sua tarefa, e no exercício de seus poderes, a Ordem não está subordinada senão á lei. Não se colocou na dependência hierárquica de qualquer outro órgão ou entidade. Não conhece ela qualquer outra forma de contrôle, senão o jurisdicional, que pertence à justiça ordinária, na sua missão de preservar inviolável o ‘rule of law’, assegurando na maior amplitude pela Constituição[...].
De outro lado, garantido-lhe plena independência e íntegro auto-gôverno, todos os órgãos de direção da Ordem são eleitos pelos membros da corporação.[16](sem grifos no original)”.
Tem-se, assim, que tanto o DNA histórico[17] das autarquias quanto o da OAB não se imbricam a fim de permitir catalogar esta como uma espécie daquela. Entendido que o Direito se compõe de uma estrutura discursiva, composta de doutrina e jurisprudência, a partir da qual é possível sempre fazer uma reconstrução da história institucional, daí a expressão DNA histórico[18], imputar à OAB a qualidade de autarquia seria cometer um atentado contra o seu processo histórico de formação.