ICMS declarado e não pago:crime tributário formal

Acordão que descaracteriza a natureza indireta do ICMS e desconsidera sua não cumulatividade

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Reflexões sobre decisão proferida pela 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, na Apelação Criminal nº 294545-55.2007.8.09.0051, que descaracterizou um crime tributário para mero inadimplemento.

ANÁLISE DE CASO CONCRETO

TJ/GO - APELAÇÃO CRIMINAL 294545-55.2007.8.09.0051

DJe 1494 de 27/02/2014

1.             INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo tecer sucinta análise crítica à decisão proferida pela 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás na Apelação Criminal n. 294545-55.2007.8.09.0051, cujo acórdão foi assim ementado, a saber:

APELAÇÕES CRIMINAIS. RECURSOS DA ACUSAÇÃO E DO RÉU. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 2º, II, DA LEI 8.137/90. ICMS PRÓPRIO REGULARMENTE DECLARADO AO FISCO. NÃO RECOLHIMENTO NO PRAZO LEGAL. MERO INADIMPLEMENTO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ABSOLVIÇÃO. A conduta delituosa positivada no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90, exige para sua configuração o não recolhimento de tributo “descontado” ou “cobrado”. Relativamente ao ICMS, apenas o substituto tributário pode descontar ou cobrar o imposto do real contribuinte substituído, apropriando-se de valores na qualidade de depositário para o ordinário repasse ao Fisco. Diferente ocorre quando se trata de ICMS devido pelo próprio contribuinte em relação a circulação de suas mercadorias. Nesse caso, o empresário não cobra do consumidor final o valor do ICMS embutido no preço do produto, mas apenas lhe transfere o ônus, assim como também é repassado todos os dispêndios do custo operacional da bem, a exemplo da folha de salários, insumos, matéria-prima, etc. No âmbito do direito civil, só se pode cobrar de quem deve o que está sendo cobrado. O consumidor final não detém qualquer vínculo ou relação jurídico-tributária com o Fisco, portanto, não lhe pode ser cobrado o tributo. Sendo o ICMS próprio regular e contabilmente lançados nos livros fiscais da empresa contribuinte, bem como declarado à Fazenda, sem contudo, haver o ordinário recolhimento dos valores, a omissão não ultrapassa o mero inadimplemento, passível de persecução no procedimento cível da execução fiscal. Ausência de injusto penal. Denúncia que descreve fato atípico. Absolvição. APELAÇÕES CRIMINAIS CONHECIDAS. DESPROVIDA A PRIMEIRA APELAÇÃO E PROVIDA A SEGUNDA.

(TJGO, APELACAO CRIMINAL 294545-55.2007.8.09.0051, Rel. DES. JOAO WALDECK FELIX DE SOUSA, 2A CAMARA CRIMINAL, julgado em 13/02/2014, DJe 1494 de 27/02/2014)

Extrai-se da ementa supratranscrita que o douto relator firmou entendimento pela atipicidade da conduta prevista no Art. 2º, II da Lei 8.137/90[1], cujas principais razões são assentes na conclusão de que o tributo objeto da conduta, o ICMS, para que cuja supressão configure o tipo penal em tela, necessitaria que o seu não recolhimento fosse precedido de valor efetivamente “descontado” ou “cobrado” de terceiro.

Entendeu o eminente relator que no caso concreto o ICMS é devido pelo próprio contribuinte em relação à circulação de suas mercadorias; e, no caso, o empresário não cobrou do consumidor final o valor do tributo (ICMS) embutido no preço do produto, apenas lhe transferiu o ônus.

Continua com a conclusão de que o consumidor final não possui qualquer relação jurídico-tributária com o fisco; e, por tal, não pode desse ser cobrado o ICMS, o que só ocorreria em caso de a exação se encontrar sujeita ao regime de Substituição Tributária.

Finaliza que o caso é de mero inadimplemento, passível apenas de persecução na esfera civil através dos procedimentos e instrumentos disponibilizados à Fazenda Pública na execução de seus créditos.

2.             DA CRÍTICA

Apesar de, em principio, os fundamentos lançados pelo eminente relator possuírem lastro na lei, doutrina e jurisprudência; entendemos que foram lançados em um contexto equivocado, em especial por se fundar em aspectos jurídico-tributários que envolvem o ICMS; sem, contudo, levar em consideração circunstâncias, características e fatos fundamentais para a compreensão do caso concreto.

As omissões verificadas na construção do voto do eminente relator, que entendemos serem as responsáveis pelo equivocado entendimento, têm por mais patente a desconsideração da natureza indireta do tributo ICMS. Desprezou-se também a sua característica patrimonial, o que acabou por mitigar o princípio da não-cumulatividade nas operações que envolvem o referido tributo.

Consentâneo apontar de inicio a primeira falha verificada na construção do voto vencedor (erro de fato), quando da análise do caso concreto, que mesmo se mostrando sutil, entendemos ter contribuído muito para a sucessão de equívocos operados em seguida.

Em seu eminente voto o ilustre relator foi taxativo: “O comerciante varejista de um produto X tem como escopo vendê-lo ao consumidor final, daí auferindo lucro da atividade [...] Portanto, dúvidas não há, o comerciante varejista acima é contribuinte do ICMS”. (grifamos)

Na lavratura do acórdão assim resume tal entendimento: “Nesse caso, o empresário não cobra do consumidor final o valor do ICMS embutido no preço do produto, mas apenas lhe transfere o ônus”. (grifamos)

Após transcrição dos trechos do venerando voto e acórdão, é nítida a confusão feita pelo eminente relator ao atribuir à atividade empresária que o réu administrava a do ramo varejista, e aos seus respectivos clientes a pecha de mero consumidor final.

È notório o fato de a sociedade empresária administrada pelo réu se tratar de uma grande indústria alimentícia predominando em sua carteira de clientes grandes atacadistas e supermercadistas; razões que excluem esses últimos da acepção jurídica do termo consumidor final dos produtos vendidos pela primeira, e, desta, a condição de varejista.

Tal fato, de per si, joga por terra o entendimento de que a conduta praticada no comando da sociedade empresária exercida pelo réu não pode ser tipificada porque não houve cobrança do ICMS na operação de venda, já que os ditos “consumidores finais” não possuem relação jurídico-tributária no fato gerador.

Se analisarmos o caso concreto como realmente se deve, logo perceberemos que as relações jurídico-tributárias envolvidas nas operações mercantis da industria com seus clientes, em relação ao ICMS, são evidentes.

Para ilustrar tal relação conjecturamos a cadeia de industrialização e comércio, utilizando alíquotas de ICMS e de IVA fixos, em 10% e 100% respectivamente, referente a industrialização a comercialização de macarrão (produto principal da industria administrada pelo réu). Observe:

Ora, atendendo o princípio da não comutatividade e o da natureza indireta do ICMS; e, ainda, em respeito ao preceito contido na LC nº. 87/96, que estipula que o montante do próprio imposto integra a sua base de cálculo, constituindo o seu destaque no documento fiscal “mera indicação para fins de controle”, a ciência contábil atribuiu característica iminentemente patrimonialista ao ICMS.

Tanto é que reservou no ativo circulante conta gráfica específica para o ICMS a recuperar. Observe que na escrituração das operações mercantis o valor egresso do caixa (disponível) para pagamento da mercadoria é exatamente o valor da operação (100%), porém na escrituração dessa mesma operação as mercadorias são contabilizadas excluindo-se o ICMS cobrado no negócio jurídico, que fica reservado para futuras compensações.

Fácil então inferir a lógica do tributo indireto e não cumulativo: o ICMS pago pelo produtor é cobrado do industrial, que por sua vez, cobra do atacadista seu ICMS NORMAL, mais o ICMS que pagou ao produtor rural, repassando ao atacadista o montante do ICMS até então envolvido nas operações anteriores; que por sua vez cobra do varejista o seu ICMS NORMAL, mais o do produtor, mais o do industrial, repassando ao varejista o montante do ICMS até então envolvido nas operações anteriores; que por sua vez finaliza o ciclo cobrando do consumidor final o seu ICMS NORMAL juntamente com todo o montante do imposto envolvido até então nas operações anteriores.

Verifica-se assim que ao contribuinte de fato não é dada a oportunidade de não ser cobrado pelo ICMS nas operações anteriores, restando a este suportar o ônus do referido tributo, e, dependendo de sua posição na cadeia da produção, comercialização e consumo, compensá-lo nas operações futuras.

Ressalta-se que quando o recolhimento do ICMS NORMAL não é efetuado por um dos envolvidos nessa cadeia, o crédito por ele destacado em sua nota fiscal, apurado e não pago, será normalmente aproveitado e compensado pelo próximo sujeito da cadeia empresarial, que afinal foi efetivamente cobrado por tal tributo, tanto é que o contabilizou separadamente em conta específica do seu ativo, como faz com qualquer bem ou direito.

Daí ser evidente que muito além da mera repercussão econômica como ocorre com os tributos diretos, onde o empresário repassa os custos do encargo para o preço da mercadoria, há verdadeiramente uma relação evidenciada pela relação jurídico-tributária entre contribuinte de fato e direito, característica do tributo indireto.

Tal entendimento tem o alicerce dos ensinamentos de Ricardo Alexandre (2011, p. 106) que discorrendo sobre o Imposto de Renda, tributo iminentemente DIRETO, assim lecionou, com grifos nossos:

 Há a repercussão econômica do tributo, mas não o que se poderia chamar de repercussão jurídica, somente verificada nos casos em que há previsão normativa da oficial transferência do encargo. O tributo (IR) é considerado direto.

Os economistas, baseados na indiscutível tese de que praticamente todo tributo tem a possibilidade de ter seu encargo econômico repassado para o consumidor de bens e serviços afirmam que a classificação dos tributos como diretos ou indiretos e irrelevante. Não obstante tal entendimento, existe uma profunda relevância jurídica na classificação quando se comparam as regras relativas a restituição de tributo direto com aquelas referentes aos tributos indiretos. Ademais, a inaplicabilidade de critérios econômicos para qualificação de um tributo como direto ou indireto e ponto pacífico da Jurisprudência do STJ (REsp 118.488).

Desta feita, a relação jurídico-tributária entre contribuintes de fato e de direito é intrínseco às operações que envolvem o tributo indireto

No mesmo sentido, Sabbag (2011, p. 164), leciona sobre o tema o seguinte:

[...] os chamados impostos indiretos, ou seja, tributos que comportam, por sua natureza, a transferência do respectivo encargo financeiro, conforme dispõe o art. 166 do CTN. Trata-se de gravames marcados pela repercussão tributária, isto é, pela transferência do encargo tributário do realizador do fato jurídico-tributário para o consumidor final, adquirente do bem.

Ilustramos ainda o entendimento desposado pelo STJ nos primórdios da discussão sobre tributos diretos e indiretos, com grifos nossos:

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TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. ICMS. TRIBUTO INDIRETO. TRANSFERÊNCIA DE ENCARGO FINANCEIRO AO CONSUMIDOR FINAL. ART. 166, DO CTN. ILEGITIMIDADE ATIVA. 1. ICMS é de natureza indireta, porquanto o contribuinte real é o consumidor da mercadoria objeto da operação (contribuinte de fato) e a empresa (contribuinte de direito) repassa, no preço da mesma, o imposto devido, recolhendo, após, aos cofres públicos o tributo já pago pelo consumidor de seus produtos. Não assumindo, portanto, a carga tributária resultante dessa incidência. 2. Ilegitimidade ativa da empresa em ver restituída a majoração de tributo que não a onerou, por não haver comprovação de que a contribuinte assumiu o encargo sem repasse no preço da mercadoria, como exigido no artigo 166 do Código Tributário Nacional. Prova da repercussão. Precedentes. 3. Ausência de motivos suficientes para a modificação do julgado. Manutenção da decisão agravada. 4. Agravo Regimental desprovido. AgRg no REsp 440.300/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/11/2002, DJ 09/12/2002, p. 302)

Por fim, para os que entendem que não existem palavras inúteis na lei, a redação dos incisos, parágrafos e alíneas que se seguem ao Art. 155 da Constituição Federal, não deixam dúvidas de que o ICMS é cobrado nas operações anteriores, com grifos nossos, verbis:

Art. 155. [...]

§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;

[...]

X - não incidirá:

a) sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

3.                 CONCLUSÃO:

Pelo exposto, diante toda evidência fática e jurídica de que o ICMS é cobrado do sujeito passivo que adquire bens para uso, consumo, transformação ou revenda; não só por se tratar de um tributo indireto, mas, no caso concreto, pela simples, mas cabal demonstração do tratamento contábil dispensado ao mesmo, cuja respectiva ciência o separa e o classifica como um direito da entidade com registro no ativo circulante, não há como concordar com a conclusão assentada no r. e criticado acórdão.

Nesse se constata que o seu ilustre relator, durante todo o seu voto, tratou o ICMS como um tributo de repercussão DIRETA, o que, por óbvio, acabou por conduzir seu voto ao equivoco de que: “o empresário não cobra do consumidor final o valor do ICMS embutido no preço do produto, mas apenas lhe transfere o ônus, assim como também é repassado todos os dispêndios do custo operacional da bem, a exemplo da folha de salários, insumos, matéria-prima, etc”.

Nessa senda, entendemos que a conduta de deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos, trata-se de conduta típica, que só pode ser ilidida mediante a ausência de dolo, elemento subjetivo essencial ao tipo.

_____________________

BIBLIOGRAFIA:

ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado - 5. ad. - Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2011.

SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário – 3. ed. – São Paulo: Saraiva, 2011.

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Sobre o autor
Claudio Cesar Santa Cruz Modesto

Possui graduação em Direito pela Uni-Anhanguera, Goiânia/GO (2013) com pós graduação em Direito e Processo Tributário pela PUC/GO (2015). Auditor Fiscal da Receita Estadual da Secretaria da Fazenda do Estado de Goiás (1998).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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