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O Uber e o dano social indenizável

23/03/2017 às 13:20
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Reflete-se sobre a necessidade de o Estado agir para evitar danos sociais decorrentes da modernização. Seria possível pleitear indenização do Uber pelos danos sociais decorrentes da sua chegada?

Uma conhecida musica brasileira diz que o futuro sem pedir licença muda nossa vida e depois convida a rir ou a chorar. De maneira geral, o mercado, um campo de batalha onde o ser humano busca seu sustento e demais bens e serviços desejados, com suas constantes inovações tecnológicas, é uma prova da realidade de tais versos poéticos. A profissão estável de hoje, é a denegrida de amanhã. O produto lucrativo de agora será em breve esquecido nas prateleiras. O serviço essencial se tornará supérfluo. Neste “jogo”, todas as peças parecem mudar constantemente. Neste ritmo, vale perguntar: Até quando a “peça essencial”, o homem, será respeitada? Ou há tempos o homem já é encarado apenas como mais uma engrenagem desta máquina?

Aparentemente, o princípio da igualdade se revela no campo das inovações (quer tecnológicas ou não). Assim, notamos no mercado traços característicos do estado democrático de direito, liberal, que permite igualmente a todos opinar, crescer economicamente e inovar. Falácia! É sabido que as oportunidades não são iguais para todos, e que, ao invés do saber condicionar o poder, é o poder que condiciona o saber, o que impede a efetivação material do princípio da igualdade na sociedade. É certo que se pode argumentar que o sistema garante ao menos a igualdade formal, mas de formalismo nos basta a própria legislação, que é violada sistematicamente.

Na realidade, ocorre que determinadas inovações trazem grandes prejuízos ao ser humano. A revista VEJA, Edição 2520, de 08/03/2017, comentando sobre a inteligência artificial, citou as palavras do presidente Barack Obama: “A próxima onda de deslocamentos econômicos não virá do exterior, mas sim do ritmo implacável da automação, que torna obsoleto um monte de bons trabalhos da classe média”.

Significa que as inovações tecnológicas, a par do bem que trazem, podem, sim, causar graves ofensas a diversos trabalhadores. Tome-se o exemplo do Uber, aplicativo conhecido que conecta uma pessoa a um motorista particular (na prática, ao invés de pedir o táxi regular, contrata-se o mesmo serviço, só que pelo aplicativo). Alguém que trabalhou a vida inteira em seu ponto de táxi, efetuando investimentos em seu negócio, tendo ainda família para cuidar, em pouco tempo, viu sua inteira fatia no mercado se perder, em decorrência deste excelente aplicativo desenvolvido.

Não somos contra as inovações tecnológicas, uma vez que elas realmente facilitam a vida do homem, como é o caso do Uber. Mas é inegável que, neste momento da história, diante dos avanços na seara dos direitos fundamentais, não se pode fechar os olhos à necessidade de regulação legal neste assunto. Por exemplo: como proteger os trabalhadores, que não possuem sequer condições de se adaptar a novos empregos? E, mais importante do que pensar em como manter o emprego de alguém, seria ainda se questionar como manter a dignidade do homem frente aos avanços tecnológicos.

Para alguns, já se pode falar em direitos humanos de quarta, quinta e até sexta geração. Não se pretende discutir em que dimensão tal direito se enquadraria, mas é certo que parcela da doutrina internacional (e também nacional) reconhece a necessidade do ordenamento jurídico resguardar a dignidade dos trabalhadores frente aos avanços (e desmandos) do mercado, inclusive no campo dos avanços tecnológicos.

Reconhecido este aspecto dos direitos humanos, desde já é possível se pensar em aplicações para se resguardar os trabalhadores. Não é necessário se aguardar uma leva de pessoas, desamparadas, sofrendo as consequências do sistema, para o direito então entrar em ação. Para exemplificar o assunto com a questão do Uber, fornece-se a seguir algumas sugestões jurídicas.

A eficácia horizontal dos direitos fundamentais encontra guarida em nossa Constituição. Aceitando que existe o direito fundamental na manutenção da dignidade humana frente inovações tecnológicas.`É possível se vislumbrar que o avanço do mercado desde já deve respeitar o ser humano, que não é apenas uma peça da engrenagem, mas sim o cliente para o qual a máquina funciona.

Uma saída seria conscientizar os agentes inovadores, talvez por meio de legislações infraconstitucionais, de que a atividade deles tem o potencial de causar danos aos trabalhadores que anteriormente executavam o mesmo trabalho. Obviamente que isto não se aplica a todos os agentes inovadores, mas somente a casos em que, por exemplo, a concorrência se torna impossível, o dano é gigantesco e os trabalhadores têm claramente uma posição de hipossuficiência.

Para exemplificar: a energia hidrelétrica é uma excelente fonte de energia no Brasil, e se, por alguma razão, tivesse sido obstaculizada ou impedida sua implementação, as repercussões ao país seriam muito ruins. Porém, é inegável que o empreendedor deste tipo de obra necessita avaliar previamente os danos ambientais e compensá-los. Da mesma forma, podemos encarar como danos sociais aqueles emergentes das inovações digitais. Especialmente no caso de empresas que lucram estratosfericamente neste campo. Lógico que isto dependeria de uma regulação estatal, para que os limites sejam claros.

Uma outra possibilidade, fundamentando-se na eficácia horizontal dos direitos humanos, seria a concessão de indenização por grandes corporações por ato lícito. Assim como é possível este tipo de indenização contra o Estado, por que não contra grandes corporações, que deveriam levar em conta este risco ao implantar suas atividades? A atividade desenvolvida pelo Uber é lícita, mas isto não afastaria o direito dos taxistas afetados pedirem uma indenização por ato lícito in casu.

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Situação diversa quando apenas um produto é substituído por outro, mas a empresa ainda tem condições de concorrer no mercado. No caso do Uber, toda uma classe de taxistas, com grandes investimentos feitos no passado, não tem absoluta condição de concorrer com o aplicativo (e muitos não têm a possibilidade de ingressar no mercado novamente, sendo o dano inegável).

Soa retrógrado querer proibir o aplicativo Uber para que o emprego de uma classe resista à inovação tecnológica. Mas as empresas de inovações devem avaliar os danos causados por suas ferramentas. Assim como o dano ambiental emergiu no direito no passado, e se consolidou como importante aspecto a ser considerado na implantação de empreendimentos, hoje o dano social decorrente da digitalização dos serviços também não deve passar despercebido. O Estado deve ser liberal, mas não desumano. O Estado deve ser progressista, mas não insensível. O Estado é composto de diversas engrenagens, que devem operar em função do homem.

Haverá outras inovações, e quem incentiva o Uber, hoje, pode ser a mesma classe a reclamar de alguma inovação amanhã. No atual estágio dos direitos humanos, esta discussão deve ser aberta, até para que o direito não faça vista grossa da atual fase da modernização da sociedade, e seja ele mesmo tragado por sua ineficácia.

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Sobre o autor
Mathews Pereira

Advogado, pós-graduado em direito notarial e registral

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Mathews. O Uber e o dano social indenizável. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5013, 23 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56370. Acesso em: 18 abr. 2024.

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