A exigência da CID em atestados médicos:

violação ao direito à intimidade do empregado ou um mal necessário para um bem maior?

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12/03/2017 às 19:27
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O CID consiste na Classificação Internacional de Doenças, em que a grande maioria dos diagnósticos médicos pode ser encontrada e associada a um código. Sua função é uniformizar os diagnósticos e permitir análises estatísticas necessárias para a saúde pública.

RESUMO: O presente artigo tem por escopo trazer à lume o debate sobre a afronta ao direito à intimidade do obreiro pelo empregador, visto a exigência do CID como requisito para aceitação de atestado médico apresentado para abonar faltas em virtude de doença. Tal imposição das empresas já estava sendo debatido, tanto pelos médicos, os quais, com supedâneo na Resolução CFM n.º 1.658/2002, posicionavam-se contrariamente à teratológica exigência, quanto pelos empregados e empregadores. No entanto, acertadamente, o Tribunal Superior do Trabalho abriu importante precedente entendendo que tal imposição das empresas viola o direito fundamental do empregado à privacidade. O presente trabalho tratará, ainda, da evolução dos direitos fundamentais, em qual dimensão se encaixa o direito à intimidade e saúde, o conceito de CID e sua finalidade, tecerá breves comentários sobre a Resolução CFM n.º 1.658/2002, a afronta ao direito do obreiro à intimidade e, por fim, demonstrará a importância da douta decisão da Corte Trabalhista.

PALAVRAS CHAVE: Direitos fundamentais. Direitos à intimidade e saúde. CID. Empregado. Empregador. Decisão do TST.


1 INTRODUÇÃO 

O direito à privacidade é direito fundamental inerente a todo ser humano, motivo pelo qual foi constitucionalmente positivado. Tal direito não diz respeito somente à vida íntima, também se aplica para afastar qualquer ameaça à imagem e honra do cidadão.

Tendo vista se tratar de direito do cidadão, o qual está positivado no art. 5º, inciso X, da Constituição da República de 1988, sua aplicação se estende às relações trabalhistas. Dessa forma, o empregador deve guardar sigilo quanto vida privada dos seus funcionários, já que o direito à intimidade abrange o acesso, a divulgação de aspectos da esfera íntima e pessoal e da vida familiar, afetiva e sexual, o estado de saúde e as convicções políticas e religiosas.

O empregador não pode exigir dos empregados informações relativas à sua vida privada, salvo quando particulares exigências inerentes à natureza da atividade profissional o justifiquem ou forem estritamente necessárias e relevantes para a avaliação da sua aptidão para o trabalho.

Mesmo diante da inviolabilidade do direito fundamental à privacidade, hodiernamente os empregadores vêm exigindo de seus empregados a indicação do CID nos atestados entregues por estes, o que agride um dos direitos mais importantes para o homem, sua intimidade. Ao solicitar a indicação do CID nos atestados médicos, o empregador deixa de cumprir os princípios insculpidos na Constituição Federal de 1988 e como é cediço, a violação de um princípio é muito mais grave do que violação da própria lei. Assim, não pode o empregador exigir a indicação do CID nos atestados médicos, pois é única e exclusivamente do obreiro o interesse sobre a doença ao qual foi acometido e o impossibilitou de trabalhar.

Ademais, tal prática das empresas é fortemente criticada pelo Conselho Federal de Medicina, pois não há qualquer obrigação do médico em indicar o código da doença ao qual foi acometido o obreiro/paciente, pois trata-se de relação sigilosa entre médico e paciente. Inclusive, é vedado pela Resolução CFM n.º 1.658/2002 o fornecimento de atestados codificados pelos médicos, salvo justa causa, exercício de dever legal, solicitação do próprio paciente ou de seu representante legal.

Portanto, tal artigo buscará mostrar a importância do direito fundamental à privacidade, a posição do Conselho Federal de Medicina sobre a indicação do CID em atestados médico e atual posicionamento do TST a respeito do tema, sendo essa a proposta objetiva desse trabalho. Mostrar a importância do direito à privacidade do trabalhador e a sua total violação pelos empregadores.


2. SÍNTESE DA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Segundo a melhor doutrina, a história dos direitos fundamentais desemboca no surgimento do moderno Estado constitucional, cujo âmago e motivo de existência residem no reconhecimento e na proteção do primado da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais do homem, podendo, ainda, ser considerado como a história da limitação do poder estatal.[1]

Tendo por base essa importante lição e não pretendendo esgotar o tema – tendo em vista sua importância e fascínio –,   o presente tópico tem por finalidade expor a evolução dos direitos fundamentais, identificar o momento da sua positivação e, por fim, suas dimensões.

Dito isto, é necessário trazer à lume lição de Ingo Wolfgang Sarlet{C}[2], cujos ensinamentos relatam que:

Num primeiro momento, é possível destacar [...] algumas concepções doutrinárias e formas jurídicas que antecederam e influenciaram o reconhecimento, em nível do direito constitucional positivo, dos direitos fundamentais no final do século XVIII, até a sua consagração ao longo do século XX.

Buscando sintetizar tal trajetória quanto aos seus principais momentos, Klaus Stern identifica três etapas: a) uma pré-história, que se estende até o século XVI; b) uma fase intermediária, que corresponde ao período de elaboração da doutrina jusnaturalista e da afirmação dos direitos naturais do homem; c) a fase da constitucionalização, iniciada em 1776, com as sucessivas declarações de direitos dos novos Estados americanos. (Grifo nosso)

 A fase pré-histórica consiste na fase embrionária dos direitos fundamentais, pois, “a antiguidade foi o berço de algumas ideias essenciais para o reconhecimento dos direitos humanos [...] e posteriormente dos direitos fundamentais”[3], encontrando suas raízes na filosofia clássica, especialmente no pensamento greco-romano e na tradição judaico-cristã. Ou seja, nessa fase os direitos fundamentais não estavam tão desenvolvidos e tampouco positivados nas constituições da maioria dos Estados como na atualidade, sendo apenas tema de debate dos pensadores da época.

Concernente a afirmação natural dos direitos do homem, Paulo Gustavo Gonet Branco professa que relevante impulsionador para o acolhimento da ideia de uma dignidade única do homem com proteção especial, foi o cristianismo, cuja doutrina ensina ser o homem à imagem e semelhança de Deus e que próprio Deus assumiu a condição humana para redimi-la, transmitindo, assim, alto valor intrínseco à natureza humana, o que influenciou a elaboração do próprio direito positivo[4].

Na esfera do direito positivo, em que pese não ser o primeiro documento a tratar dos direitos fundamentais, a Magna Charta Libertatum, firmada em 1215, pelo Rei João Sem-Terra e pelos bispos e barões ingleses, é considerada o principal o documento que dispõe sobre os direitos fundamentais, o qual é referência para os estudiosos do assunto. Apesar de não contemplar todos os indivíduos (apenas os nobres ingleses), este documento tratou de “alguns direitos e liberdades civis clássicos, tais como o habeas corpus, o devido processo legal e a garantia da propriedade”.[5]

Na fase de constitucionalização dos direitos fundamentais, ensina Alessandra Gotti[6] que o “processo de constitucionalização das declarações de direitos foi desencadeado, no final do século XVIII, com a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, de 1776, a Constituição norte-americana, de 1787, e a Declaração francesa, de 1789.

Em suma, sintetizando a trajetória dos direitos fundamentais, Gotti citando as lições de Norberto Bobbio diz que:

Esse processo de positivação das declarações de direitos no texto das Constituições corresponde, como leciona Norberto Bobbio, à passagem da teoria (porquanto as declarações de direitos nascem como meras teorias filosóficas) à prática, do direito somente pensado ao direito realizado, já que, consoante sintetiza Bobbio, os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais. (Grifo nosso)

Após breve relato histórico dos direitos fundamentais, passemos a discorrer sobre suas gerações (dimensões).

2.1 gerações (dimensões) dos direitos fundamentais

Prezando pela objetividade do presente trabalho, não adentraremos na discussão doutrinária sobre a melhor terminologia para cognominar as etapas de evolução dos direitos fundamentais, nos limitando a discorrer sobre cada geração (dimensão) dos direitos fundamentais.

Sobre os direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações (dimensões), Uadi Lamengo Bulos[7] leciona o seguinte:

a)  Direitos fundamentais de primeira geração: direitos individuais

A primeira geração, surgida no final do século XVII, inaugura-se com o florescimento dos direitos e garantias individuais clássicos, os quais encontravam na limitação do poder estatal seu embasamento.

Nessa fase, prestigiavam-se as cognominadas prestações negativas, as quais geravam um dever de não fazer por parte do Estado, com vistas à preservação do direito à vida, à liberdade de locomoção, à expressão, à religião, à associação etc.

b)  Direitos fundamentais de segunda geração: direitos sociais, econômicos e culturais

A segunda geração, advinda logo após a Primeira Grande Guerra, compreende os direitos sociais, econômicos e culturais, os quais visam assegurar o bem-estar e a igualdade, impondo ao Estado uma prestação positiva, no sentido de fazer algo de natureza social em favor do homem.

Aqui encontramos os direitos relacionados ao trabalho, ao seguro social, à subsistência digna do homem, ao amparo à doença e à velhice.

c)  Direitos fundamentais de terceira geração: direitos de fraternidade ou solidariedade

A terceira geração, por alguns chamada de novíssima dimensão, engloba os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade (Karel Vasak).

Tais direitos têm sido incorporados nos ordenamentos constitucionais positivos e vigentes de todo o mundo, como nas Constituições do Chile (art. 19, § 8), da Coreia (art. 35, 1) e do Brasil (art.  225).

Os direitos difusos em geral, como o meio ambiente equilibrado, a vida saudável e pacífica, o progresso, a autodeterminação dos povos, o avanço da tecnologia, são alguns dos itens componentes do vasto catálogo dos direitos de solidariedade, prescritos nos textos constitucionais hodiernos, e que constituem a terceira geração dos direitos humanos fundamentais.

Sobre os direitos fundamentais supracitados, vale trazer o posicionamento do Supremo Tribunal Federal:

Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e politicos) - que compreendem as liberdades classicas, negativas ou formais - realcam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos economicos, sociais e culturais) - que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas - acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuidos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansao e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponiveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.  (MS 22164, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 30/10/1995, DJ 17-11-1995 PP-39206 EMENT VOL-01809-05 PP-01155)

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No que tange aos direitos fundamentais de terceira geração (dimensão), pode-se afirmar que são direitos transindividuais, ou seja, direitos que ultrapassam os interesses do indivíduo, pois dizem respeito à proteção do gênero humano, cujo teor de humanismo e universalidade é demasiadamente elevado.

Sobre os direitos fundamentais de quarta geração (dimensão), André Ramos Tavares[8], citando as lições do notável Paulo Bonavides, diz que nesta quarta dimensão, segundo professa o grande mestre, tem se inserido o direito à democracia, ao pluralismo e à informação, ancorado na ideia de uma globalização política. No entanto, discorda do constitucionalista cearense dizendo:

No particular, parece mais acertado, para manter a estrita coerência com o critério de identificação das demais dimensões (e a própria ideia de dimensão), falar, na quarta dimensão, de uma diferenciação de tutela quanto a certos grupos sociais, como, por exemplo, as crianças e os adolescentes, a família, os idosos, os afro-descendentes etc. Enquanto os direitos de participação democrática poder-se-iam reconduzir aos clássicos direitos políticos, presentes desde os direitos de primeira dimensão, estes direitos não deixam de ser direitos já existentes, mas que sofrem não um alargamento (extensão) de conteúdo, senão uma diferenciação qualitativa quando aplicados a certos grupos.

Bonavides, em sua originalidade, sustenta, ainda, que a quarta dimensão

é o resultado da globalização dos direitos fundamentais, no sentido de uma universalização no plano institucional, que corresponde, na sua opinião, à derradeira fase de institucionalização do Estado Social. Para o ilustre constitucionalista cearense, esta quarta dimensão é composta pelos direitos à democracia (no caso, a democracia direta) e à informação, assim como pelo direito ao pluralismo.[9]

Sustenta, ainda, Bonavides a quinta geração de direitos fundamentais, que seria a imposição da positivação no texto das diversas constituições, o reconhecimento do direito à paz como condição imprescindível à convivência humana, de igual forma como ocorre na Constituição Brasileira de 1988, na qual estabelece a defesa da paz como um dos princípios fundamentais que regem o Estado Brasileiro em suas relações internacionais (art. 4°, inciso VI, da Constituição). Tal posicionamento do autor se justifica por entender que a forma que Karel Vasak tratou o tema “– que inclui a paz no rol de direitos ligados à fraternidade (terceira dimensão) – teria se revelado incompleto e lacunoso, permitindo que o referido direito caísse no esquecimento”.[10]

 2.2. O direito à privacidade/intimidade

De acordo com Constituição de 1988, em seu art. 5º, inciso X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Como pode se observar, a Constituição Federal, optou por referir tanto a proteção da privacidade, quanto da intimidade, como bens autônomos, tal como no caso da honra e da imagem. Porém, tendo em vista ser a esfera da vida íntima (intimidade), mais limitada que a da privacidade, não é possível dissociar uma da outra, sendo imperioso um tratamento conjunto de ambas as situações.[11]

Tendo em vista a proteção constitucional atribuída à intimidade, é possível afirmar que a divulgação do CID em atestados médicos depende de prévia autorização do paciente, já que compreende informações confidenciais e segredos pessoais do paciente, ou seja, abrange as relações do indivíduo com o meio social nas quais não há interesse público na divulgação.

Em que pese existir proteção constitucional em relação ao direito à privacidade, tal direito não é absoluto e pode haver restrições no âmbito de sua proteção, quando:

I) adequadas para fomentar outros princípios constitucionais;

II) necessárias, por não haver outro meio similar com igual eficácia; e

III) proporcionais em sentido estrito, por fomentarem princípios constitucionais que, diante das circunstâncias do caso concreto, fornecem razões mais fortes que as oferecidas pelo direito à privacidade.[12]

Agarrando-se às exceções, empresas Brasil afora vem solicitando dos seus empregados a indicação do CID em seus atestados médicos para que haja o abono da falta, o que nitidamente viola o direito à privacidade.

Para tratar do assunto de forma mais aprofundada, abriremos alguns tópicos específicos, conceituando o que seria CID, a posição do Conselho de Medicina a respeito do tema e por fim, a decisão do TST sobre o assunto.

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Sobre o autor
Michael Rodrigues Vasconcelos

Graduado em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal -UDF. Advogado. Atua em demandas que envolvem Direito de Família, Consumidor, Previdenciário e Criminal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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