O presente trabalho objetiva demonstrar a importância da tributação dos dividendos recebidos pelas pessoas naturais e jurídicas de sociedades das quais participam como detentoras de parte do capital social, o que, por desdobramento, considerando a situação fiscal pela qual passa o país, será uma das fontes de recursos orçamentários e permitirá a aplicabilidade efetiva do princípio da capacidade contributiva, visando a otimização da justiça distributiva e a diminuição da regressividade do sistema tributário atual.
Como se sabe, o país passa por uma grave crise econômica que, para muitos especialistas, não encontra precedente na história nacional, pois nem mesmo a moratória decretada por José Sarney na década de 80 teve seus efeitos comparados à atual quadra. Neste ambiente, onde se evidencia a desconfiança do setor privado ante o descontrole fiscal – especialmente o desenfreado crescimento do gasto público -, buscam-se soluções para que haja um ajuste fiscal que traga maior segurança tanto interna, quanto no cenário internacional, notadamente acerca da capacidade do Brasil em honrar os compromissos econômicos assumidos e manter a meta de superávit a que se propôs nos últimos anos.
Neste sentido, o professor Paulo Roberto Arvate (USP/SP), ao examinar o complexo sistema orçamentário, explicita a ilusão fiscal sobre o verdadeiro tamanho do Estado, notabilizada por uma estrutura tributária complexa, elevações automáticas de alíquotas e financiamento do governo através de endividamento, que permite a criação e aumento de tributos. Não obstante o gasto público praticamente insustentável, o ajuste fiscal se realiza somente sob o prisma da receita.1
No entanto, embora unívoca a necessidade premente de concertação das despesas públicas às receitas governamentais, verifica-se que o foco do ajuste – do atual e de praticamente todos os anteriores – resume-se a um só mister: aumento de arrecadação, pautado na via mais fácil e com menos repercussão política na economia. Aumenta-se a tributação regressiva sobre o consumo, o que incide diretamente sobre a classe média, preservando os mais ricos. Blinda-se o sistema financeiro, sobejamente com a manutenção da isenção sobre os dividendos, perpetuando os efeitos do art. 10 da Lei nº 9249/95 (não incidência em vigor desde 1º de janeiro de 1996).
É bem verdade que uma corrente minoritária, no intuito de aproveitar o momento de desequilíbrio, tenta impor a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), que previsto na origem da Carta Política vigente, ainda não teve aduzida sua eficácia plena no confuso sistema tributário nacional. Vale dizer, proposta que guarda uma relevante plausibilidade, haja vista a regressividade imposta permitir a crescente concentração de renda, fato que, em última análise, apresenta-se como um nefasto efeito colateral a atingir a justiça distributiva e a própria igualdade de oportunidades entre os cidadãos, aumentando o abismo entre as rendas advindas do capital e aquelas adstritas ao trabalho.
Veja-se o que diz Thomas Piketty, em nível global, sobre a grande disparidade entre as rendas nacionais do capital e seus deletérios efeitos em face das rendas do trabalho:
(...) A partir dos anos 1990-2000, entretanto, inúmeros estudos trataram da alta significativa da participação dos lucros e do capital na renda nacional dos países ricos desde 1970-1980, correlacionando-a com a queda da participação dos salários e do trabalho. A tese da estabilidade universal foi questionada e nos anos 2000 vários relatórios oficiais publicados pela OCDE e pelo FMI vieram alertar para esse fenômeno (prova de que a questão se tornará séria).
A novidade deste trabalho é que se trata, a meu ver, da primeira tentativa de colocar a questão da divisão capital-trabalho num contesto histórico mais abrangente, além de avaliar a alta recente da participação do capital acentuando a evolução da relação capital/renda desde o século XXVIII até o início do século XXI. O exercício, sem dúvida, sem limitações, sobretudo quando se consideram as imperfeições das fontes históricas disponíveis, mas permite, parece-me, cercar as apostas e renovar o estudo desta questão2
Esta miopia intencional do Governo Federal sobre o ajuste ideal, embora possa trazer algum efeito de curto prazo, não ajuda a melhorar o cenário de maneira a permitir um ajuste no sistema tributário, notadamente no que tange à máxima eficácia que deve ter o princípio aduzido no art. 145, § 1º, da CR/88, o princípio da capacidade contributiva. Tal postulado significa dizer que a progressividade na incidência tributária deve ter o condão de produzir justiça social, expressão que, sem embargos do seu conceito formal – tratar os desiguais de maneira desigual-, deve ser traduzida do modo mais escorreito possível, segundo ensina John Finnis, como a efetiva busca pelo bem comum de toda a coletividade.
A professora Tathiane Piscitelli (FGV/SP), com base no conceito aduzido pelo indigitado autor, discorre de maneira preclara acerca do tema norteador do critério substancial a ser empreendido quando da definição de justiça:
A partir dessas considerações, Finnis relaciona o conceito de “justiça” com um dos seus requerimentos básicos de razoabilidade prática, aquele que denota o dever de as pessoas perseguirem e favorecerem o bem comum em uma certa comunidade. “Bem comum”, neste aspecto, não deve ser entendido como uma dessas expressões vazias de conteúdo e aplicáveis em quase todas as situações, A depender do discurso que se use, para Finnis o bem comum está delimitado: trata-se de uma série de condições que “possibilitam aos membros de uma comunidade obter para si mesmos objetivos razoáveis, ou realizar razoavelmente para si mesmos o valor (ou valores), para o bem daqueles eles têm razão para colaborar uns com os outros (positiva e/ou negativamente) em uma comunidade.
Isso implica que “deve haver um conjunto (ou diversos conjuntos) de condições que devem ser obtidas se cada membro da comunidade pretende obter seus próprios objetivos
(...) O conhecido princípio da justiça (formal) não resolve as questões de justiça distributiva. “Tratar igualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades”, não fornece, para Finnis, um critério apropriado para a avaliação de problemas que podem emergir na justa distribuição de ônus e direitos: a igualdade seria um princípio residual de justiça distributiva. O objetivo da distribuição não é a igualdade, mas o bem comum3
Para resolver este grave problema da vida econômica e social brasileira e buscar a justiça social em sua plenitude, não se nega que o IGF deva ser objeto de uma análise aprofundada visando sua implementação o mais rápido possível, mas antes deve ser focalizada a resolução de distorções que perpetuam a concentração de riquezas, como é o caso da isenção sobre as rendas de dividendos.
Partindo-se da premissa que o ajuste deva ser realizado sob a perspectiva somente das receitas – o que, diga-se mais uma vez, implica nas graves deficiências acima aportadas, considerando a equivocada visão estatal sobre o gasto público e o tamanho do Estado-, não se deve descartar a necessidade da observância do princípio da capacidade contributiva e da progressividade como seu subprincípio, o que nos conduz à seguinte indagação: Por que não se revoga a isenção do imposto de renda sobre os dividendos?
Registre-se que o referido princípio se encontra positivado na maioria das Constituições escritas dos países, substituindo o vetusto princípio do benefício, que ainda tem eco na doutrina assim denominada Law and Economics, largamente empregada nos países que adotam políticas neoliberais, como, v.g., os Estados Unidos da América.
Esta mesma análise econômica do Direito, no Brasil, ainda que de modo tácito, tem sido introduzida gradativamente nas relações jurídicas, principalmente com base no seu carro-chefe, o princípio da eficiência, albergado com status constitucional a partir da EC nº 19/98, tendo como um de seus consectários a mudança do agir da administração tributária, que, não obstante os pilares constitucionais, pauta sua atuação mais precipuamente sob a perspectiva basilar da eficiência na arrecadação dos tributos, em detrimento, muitas vezes, das garantias e direitos fundamentais previstos no art. 150 da CR/88, os quais são, em verdade, um verdadeiro contraponto das garantias coligidas no art. 5º da Carta Maior.
Pois bem, para responder tão intrincada pergunta, interessante perscrutar, inicialmente, o teor do art. 10 da Lei nº 9249/95, abaixo transcrito:
Art. 10. Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior.
A publicação da referida norma se deu em momento de transição política, onde o então Governo eleito, com vistas a ganhar confiança do mercado, tinha a intenção de implementar políticas de natureza neoliberal para garantir a entrada investimentos privados no país. Dentre as medidas adotadas à época, havia a necessidade de estabilização monetária e as privatizações de empresas estatais, que tinham como objetivo diminuir o tamanho da máquina pública e, ao mesmo tempo, permitir a entrada de recursos para promover um balanço de pagamentos superavitário que desse suporte ao plano de estabilização econômica.
A Exposição de Motivos nº 325, de 31/08/1995, categoricamente expressa que a norma em tela tinha o condão de permitir a estabilização econômica, possibilitando a articulação e a fluidez dos investimentos no território nacional. Em outras palavras, a missão era afastar o que a equipe econômica entendia como “travas” à atração de investimentos e às privatizações das estatais. As demais conclusões, portanto, eram e ainda são mera decorrência deste motivo!
O problema, no entanto, reside no fato de que tais conclusões passaram a ser uma espécie de mantra para alguns economistas, tais como a bitributação da renda, tendo em vista já ter havido incidência do IR sobre as operações da pessoa jurídica, o que prejudica as prescrições trazidas pela doutrina da Optimal Taxation Theory; a possível fuga de capitais, já que o investidor abandonaria o Brasil para colocar seu dinheiro em outro lugar; a incidência tributária sobre muitas pessoas, considerando a “pejotização” vivida nos últimos anos, para ficar apenas com os que mais reverberam no contexto das finanças públicas.
Em primeiro lugar, releva destacar que não há estudos sólidos sobre a aplicabilidade da Optimal Taxation Theory no Direito brasileiro, o que inviabiliza qualquer conclusão de seus efeitos sobre a tributação dos dividendos. Ainda assim, tal teoria leva em consideração, utilizando sempre a análise econômica, a existência de três critérios: equidade, simplicidade e eficiência econômica.
Contudo, descarta a prescrição ínsita ao princípio da capacidade contributiva, que, querendo ou não alguns pensadores neoliberais, ainda é o princípio reitor do sistema tributário nacional, juntamente com o princípio do não confisco. Disso decorre o tão propagado conceito americano do trade off equidade e eficiência na economia.
Não se pretende simplesmente desconsiderar o aludido conceito, mas apenas sopesá-lo com a ordenamento jurídico brasileiro, tendo em conta que a finalidade desta teoria, em último nível, é a promoção do bem-estar social, que inegavelmente tem sua existência comprometida tributando os mais pobres e isentando os mais ricos.
Na verdade, a isenção sobre os dividendos causa um efeito inverso, na medida que potencializa a regresssividade e fomenta a concentração de rendas, efeito extremamente danoso na busca pela justiça distributiva, diferentemente do que se define na doutrina da tributação ótima, pois naquele entendimento, a redistribuição de renda só se atinge com a eficiência econômica, a partir da eliminação das falhas de mercado e da modificação das decisões dos agentes econômicos4.
Premissas equivocadas levam a conclusão igualmente errada! O Estado Social brasileiro, com suas garantias, direitos fundamentais e sociais positivados na Lei Maior, não permite que se veja implementado o conceito em tela, que fica comprometido, logo de início, diante de uma elementar ponderação principiológica. Não se pretende afastar a eficiência - e um possível trade off - nos moldes aportados pela mencionada doutrina, mas sim aplicá-la segundo as realidades fáticas e jurídicas nacionais, sobretudo as condições espelhadas na característica de um país ainda subdesenvolvido, que apresenta graves problemas sociais, de distribuição de renda e de desigualdades de oportunidades.
Outro ponto que merece destaque é o fato de haver uma relevante inconsistência na alegação da indigitada bitributação, já que as rendas dos acionistas já foram objeto de tributação na pessoa jurídica, havendo um eventual bis in idem na incidência sobre os dividendos. Ora, o que dizer dos rendimentos do trabalho dos empregados, que tem a mesma origem e que sofrem incidência do imposto de renda das pessoas físicas, com alíquotas muito mais gravosas do que aquelas que figuravam sobre os dividendos antes de 1996. Não se pode usar dois pesos e duas medidas somente para legitimar um argumento falacioso!
No que tange ao argumento da volatilidade de capitais, importa esclarecer que o Brasil ainda é um dos poucos países onde não se tributa a renda de dividendos, o que, em tese, implicaria na limitação dos investidores a um ou outro destino. Considerando como parâmetro, v.g., países da OCDE, o Brasil - juntamente com outro não participante, a Estônia – é o único que isenta integralmente os dividendos, o que, por dedução lógica, implica no reconhecimento de que o investidor não terá muitas opções de destino seguro de seu dinheiro, considerando ainda o razoável estágio da democracia brasileira e das regras de mercado aqui impostas.
Em terceiro lugar – e talvez o que tenha maior relevância prática-, deve-se analisar a tal “pejotização” desenvolvida no país. É cediço que, com espeque na eficiência (novamente a eficiência!), o fisco nacional tem adotado e proposto procedimentos ao legislador no sentido de otimizar a arrecadação e a fiscalização dos tributos.
Neste sentido, tem-se a extensa faculdade de opção pelo lucro presumido e o alargamento das hipóteses de inclusão das atividades econômicas no Simples, ficando o lucro real somente como opção para as grandes empresas. Por este fato, pessoas naturais acabam exercendo suas atividades laborais a partir de sociedades empresárias constituídas e de empresas de pequeno e médio porte, onde adotam o regime mais simplificado, menos oneroso – e mais preciso - de apuração de seus tributos.
De fato, uma revogação da isenção dos dividendos poderia alcançar estas pessoas e, numa visão mais abrangente, poderia igualmente trazer um teor de regressividade ao sistema, pois certamente atingiriam contribuintes que já são tributados pelo consumo e que “escolheram” o caminho da formalização pela constituição de pessoa jurídica.
A solução, com efeito, seria a adoção de alíquotas progressivas para a incidência do imposto sobre os dividendos recebidos, de maneira que, nos moldes do IRPF (ou até com maior número de alíquotas), fosse encetada a cobrança, sugerindo-se ainda uma faixa de isenção para os microempreendedores. Portanto, este eventual problema seria de fácil solução, não implicando em óbice para a revogação da isenção em exame.
Em quarto lugar, a tributação dos dividendos, no atual momento, pode trazer um efeito econômico benéfico, já que as empresas podem optar, em sede de planejamento tributário, por realizar novos investimentos em vez de distribuir ganhos aos sócios, o que geraria maior número de empregos e revitalizaria a saúde da economia, mitigando os efeitos da atual recessão. Isto tem sido observado, em alguma proporção, na economia americana, onde, a despeito da tributação favorecida dos dividendos, um número razoável de empresas tem otimizado o investimento em detrimento do pagamento dos questionáveis bônus a seus acionistas e executivos. A motivação pode até ser diferente, mas o efeito é o mesmo: redirecionamento dos recursos das empresas para alocação em investimentos.
Não resta dúvida sobre a necessidade premente de um ajuste fiscal efetivo na economia brasileira, com uma ampla revisão sobre o gasto público e a otimização da carga tributária, mas que a intenção do legislador não esteja voltada somente para o fomento das receitas incidentes sobre o consumo e sobre as rendas das classes com menor representatividade no cenário político.
Faz-se necessário o aumento dos tributos especialmente em respeito ao princípio da capacidade contributiva, devendo haver incidência sobre as rendas adstritas aos dividendos recebidos pelas pessoas naturais e jurídicas, sócias ou acionistas, com vistas a máxima aplicabilidade de tão caro princípio. Até nos Estados Unidos, a sociedade tem vislumbrado esta necessidade. Em recente artigo elaborado, em conjunto, pelo centro de estudos Fiscal Policy Institute e pelo projeto Responsible Wealth, constatou-se a intenção de milionários americanos de pagar mais tributos, com objetivo de buscar por maior responsabilidade corporativa e justiça social mais efetiva.
Portanto, o esforço estatal deve se voltar para a tributação dos dividendos, pois tal como prevê o economista Vitor Tanzi5, é imperativo que haja recolhimento das receitas fiscais de modo mais equitativo possível, já que a incidência ineficiente e injusta de impostos, a partir de uma excessiva proteção legal aos mais ricos, produz o pior mundo possível das finanças públicas de um país.
Notas
1 ARVATE, Paulo Roberto, BIDERMAN, Ciro. Economia do Setor Público no Brasil, São Paulo, Elsevier, 2005. p. 340.
2 PIKKETY, Thomas, tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. O Capital no Século XXI, Rio de Janeiro, Intrínseca, 2014. p. 216
3 PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Revista de Direito Tributário 104: O Imposto sobre Grandes Fortuna à Luz da Justiça Distributiva, São Paulo, Malheiros. p. 130.
4 BARBOSA, Ana Luiza Neves de Holanda. SIQUEIRA, Rozane Bezerra de Siqueira. Imposto Ótimo sobre o Consumo: Resenha da teoria e uma aplicação ao Caso brasileiro. Rio de Janeiro. IPEA, 2001.
5 TANZI, Vitor. The Challenges of Taxing the Big. Revista de Economía Mundial 37, 2014, 23-40.