Artigo Destaque dos editores

Tombamento e função socioambiental da propriedade

Um estudo jurídico a partir da Operação Patrimônio

Exibindo página 4 de 5
19/04/2017 às 15:50
Leia nesta página:

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resta claro, portanto, que o advento da Constituição Federal de 1998, do Código Civil de 2002 e do Decreto-lei nº 25/37 petrificaram de forma incisiva a proteção ao meio ambiente, abarcando o patrimônio cultural, bem de uso comum do povo.

O Código Civil, ao modificar a concepção de propriedade, afastou o caráter individualista, adotando um caráter social à mesma, uma vez que condiciona seu uso a finalidades sociais e ao equilíbrio ecológico. Na mesma seara, a Carta Magna assentou o direito ao meio ambiente com o status de norma fundamental, inerente a toda coletividade, através de seu artigo 225.

Considerando que o patrimônio histórico e cultural de um povo está englobado como meio ambiente cultural, nota-se a importância de sua tutela, que deve ser concretizada tanto por parte dos órgãos do poder público quanto pela coletividade. É neste compasso que torna-se imprescindível o afastamento da percepção da propriedade como caráter absoluto, trazendo-se a tona a importância do cumprimento das funções social e ambiental da mesma, fazendo prevalecer o interesse coletivo em detrimento do individual.

Para tanto, oportuno registrar que a promoção do direito fundamental ao meio ambiente deve ser concretizada a partir da interação e atuação entre os atores sociais – comunidade, proprietários e poder público, sendo este último parte legítima para intervir nos bens tombados, sejam eles públicos ou privados. Evidencia-se, assim, os instrumentos jurídicos utilizados para a tutela do patrimônio cultural, tais como limitação administrativa, desapropriação, parcelamento compulsório, tombamento, dentre outros.

O instrumento do tombamento, por derivar de um ato administrativo através do qual o Estado interfere na propriedade privada, visa o acautelamento do patrimônio histórico e artístico nacional, sendo adequado para a proteção do mesmo a partir do momento em que impõe deveres aos proprietários de imóveis tombados, objetivando o cumprimento da função socioambiental da propriedade.

Nesse sentido, a partir do momento em que um bem é tombado, seu caráter individual é afastado, não perdendo o proprietário seus direitos perante o imóvel, sofrendo apenas restrições quanto ao uso, gozo e disposição do mesmo. O bem passa a ser, portanto, de interesse da coletividade, sendo reafirmada a necessidade de cumprimento de funções de cunho social e ambiental na propriedade tombada.

Vale ressaltar que o proprietário de um bem tombado é responsável pela realização de possíveis reformas no mesmo, mas dependerá de aprovação estatal, que será observada de acordo com o nível de preservação do bem, estando vinculada à necessidade de serem mantidas as características que justificam o tombamento. Ademais, o órgão responsável pela preservação fornece aos interessados toda a orientação sobre as possíveis reformas, a fim de que estas possam ser executadas com êxito, garantindo o cumprimento da função social da propriedade, que vai ocorrer quando um imóvel for preservado e destinado à determinada obrigação.

No decorrer das pesquisas feitas nos órgãos que tutelam o centro histórico de São Luís, constatou-se que, apesar da atuação dos órgãos públicos, a comunidade e os proprietários não se preocupam com a importância cultural que possui o Conjunto Arquitetônico. Assim, abandonam, degradam e acabam demolindo os casarões, prejudicando por completo a estrutura dos edifícios, visando, na maioria dos casos, a transformação dos mesmos em estacionamentos, não verificando os aspectos sociais tampouco ambientais inerentes aos imóveis, que têm somente uma finalidade lucrativa.

Verificou-se que a operação patrimônio, atuação conjunta entre diversos órgãos públicos no ano de 2008, teve como objetivo coibir o uso de casarões tombados pelo patrimônio como estacionamentos. Ocorre que, após análise de documentos, foi possível constatar que o próprio poder público desrespeita as normas impostas, utilizando casarões com essa finalidade, como é o caso do estacionamento que funciona em prol dos servidores da Secretaria de Segurança Pública do Estado, na Rua 14 de Julho, nº xx.

Ademais, destaca-se que a operação não logrou êxito, uma vez que diversos casarões ainda são utilizados como estacionamento no centro histórico de São Luís, conforme verificou-se na pesquisa realizada no IPHAN. Contudo, devido à efetiva atuação dos órgãos púbicos no ano de 2008, em alguns casos foi perceptível a reversão da problemática dos estacionamentos, ainda que de forma lenta e ínfima.

Outrossim, frisa-se a dificuldade na pesquisa de campo, pois mesmo que o meio ambiente cultural seja considerado bem de uso comum do povo, os órgãos públicos dificultam o acesso aos documentos referentes à operação, alegando, inclusive, o caráter sigiloso do procedimento, que foi o caso da Polícia Federal. Contudo, apesar da impossibilidade de acesso ao P.A nº 1.19.000.000820/2008-30, o IPHAN e o MPF foram os órgãos que disponibilizaram os documentos para a realização deste trabalho, quais sejam, ações civis públicas decorrentes da operação, bem como informações técnicas sobre os bens tombados.

Apesar dos esforços por parte do poder público, conclui-se que o tombamento dos imóveis do centro histórico de São Luís é insuficiente para a tutela dos mesmos, uma vez que os proprietários ou moradores não têm consciência da importância do meio ambiente cultural, não preocupando-se em fazer reparos nos bens ou ainda depredando seu próprio patrimônio, considerando que não possuem incentivos para tal.

Isso posto, é perceptível o estado de degradação de grande parte dos bens tombados nessa área, sendo necessário que o poder público destaque os direitos e deveres dos proprietários para a proteção do patrimônio, efetuando ainda uma política de conscientização ambiental e cultural na sociedade. Enfatiza-se, portanto, a importância da proteção dos monumentos culturais para a história e qualidade de vida das presentes e futuras gerações, mas a mesma só poderá concretizar-se a partir da elaboração de trabalhos que englobem o centro histórico em todos os seus aspectos, buscando o desenvolvimento da cidade sem degradar o ambiente que a envolve.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

ANDRADE, Filippe Augusto Vieira de. O patrimônio cultural e os deveres de proteção e preservação. In: FREITAS, José Carlos de. Temas de direito urbanístico 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Ministério Público do Estado de São Paulo, 2001.

ARAÚJO, Maria do Socorro. São Luís, Turismo e Memória: uma década de experiências de gestão pública municipal. São Luís: Sini Nomine, 2007.

AYALA, Patryck de Araújo. A proteção jurídica das Futuras Gerações na Sociedade de Risco Global: o direito ao futuro na Ordem Constitucional Brasileira. In: LEITE, José Rubens Morato; FERREIRA, Heline Sivini (orgs.). Estado de Direito Ambiental: tendências: aspectos constitucionais e diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 97.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 27. ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2010.

BELLO FILHO, Ney de Barros. Pressupostos sociológicos e dogmáticos da fundamentalidade do direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Tese (Doutorado em Direito) Programa de Pós-Graduação em Direito. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2006. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/33948-44718-1-PB.pdf>. Acesso em fevereiro de 2012.

BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes, LEITE, José Rubens Morato (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 57-130.

BARRETO, Fernando. A operação patrimônio: depoimento [maio de 2012]. São Luís. Entrevista concedida a Natália Lago Sousa.

BENJAMIN, Antonio Herman V. Função ambiental. In: BENJAMIM, Antônio Herman V. (ORG). Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.

BOGÉA, Kátia; SOARES DE BRITO, Stella Regina; PESTANA, Raphael Gama (org.). Centro histórico de São Luís, Patrimônio Mundial. São Luís: IPHAN, 2007.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado constitucional ecológico e democracia sustentada. In: FERREIRA, Helini Silvini, LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Estado de Direito Ambiental: tendências: aspectos constitucionais e diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.

CASTRO, Sonia Rabello. O estado na preservação de bens culturais: o tombamento. Rio de Janeiro: IPHAN, 2009.

CAVALCANTI, Flávio Queiroz Bezerra. Tombamento e Dever do Estado Indenizar. Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, v. 130, São Paulo, RTJE, nov/1994.

CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis: Momento Atual, 2003.

COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro e. Proteção jurídica do meio ambiente: florestas. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

CUSTÓDIO, Helita Barreira. Normas de Proteção ao Patrimônio Cultural Brasileiro em Face da Constituição Federal e das Normas Ambientais. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais. Ano 2, v:6. Abr/jun.1997.

DERANI, Cristiane. A propriedade na Constituição de 1988 e o conteúdo da "função social". In: Revista de Direito Ambiental. nº 27, ano 7. São Paulo: Revista dos Tribunais, julho/setembro de 2002.

__________. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 2001.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

FERREIRA, Helini Silvini. Competências ambientais. In: CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes, LEITE, José Rubens Morato (org.). Direito Constitucional Ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007.

FERNANDES, Natália de Andrade. A intervenção do Estado na propriedade: uma análise das ações de tombamento no Centro Histórico de São Luís. São Luís, 2008.

FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A propriedade no Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Esplanada, 2004.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental brasileiro. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/ IPHAN, 1997.

FREITAS, Vladimir Passos de. Direito Administrativo e Meio Ambiente. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2001.

GAVIÃO FILHO, Anizio Pires. Direito fundamental ao meio ambiente. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

GRANZIEIRA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. São Paulo: Atlas, 2009.

LEITE, José Rubens Morato, AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

________; FERREIRA, Heline Sivini (orgs.). Estado de Direito Ambiental: tendências: aspectos constitucionais e diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

LEME MACHADO, Paulo Affonso. Direito Ambiental Brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

LIMA, Carlos de. História do Maranhão. 2. ed. São Luís: Instituto Geia, 2006.

LOPES, José Antonio Viana (org.). Guia das Cidades Brasileiras: patrimônio mundial - Organização das Cidades Brasileiras Patrimônio Mundial. Prefeitura de São Luís. Brasília: OCBMP, 2007.

MANCUSO, Rodolfo Camargo. Ação civil pública trabalhista: análise de alguns pontos controvertidos. Revista do Ministério Público. Brasília, n.12, 1997.

MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A proteção constitucional ao patrimônio cultural. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 5, n. 20, outubro/dezembro, 2000.

________. A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do Direito Ambiental: uma abordagem transdisciplinar. Mestrado em Direito. Florianópolis, 2006. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/55859957/Dissertacao-A-tutela-do-patrimonio-cultural-Ana-Marchesan>. Acesso em março de 2012.

MATEUS, Eliane Elias. Aspectos jurídicos da proteção do bem ambiental cultural: a função social da propriedade e os direitos fundamentais do homem. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 13, n. 49, jan/mar, 2008.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 27. ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2010.

MILARÉ, Édis. A gestão ambiental em foco: Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

________. Direito do ambiente. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

MIRANDA, L. R. M de. [abril/maio de 2012]. São Luís: IPHAN. Entrevista concedida a Natália Lago Sousa.

MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Fundamentos do Direito Ambiental no Brasil. in Revista Trimestral de Direito Público, vol. 7. São Paulo: Malheiros, 1994.

________. In: OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades, LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Cidadania coletiva. Florianópolis: Paralelo 27, 1996.

MUKAI, Toshio. Direito e Legislação Urbanística no Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988.

________. O Estatuto da Cidade, o Plano Diretor e o Desenvolvimento Urbano. In MUKAI, Toshio. Temas atuais de Direito Urbanístico e Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2004.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Com a Emenda nº 1, de 1969. 2. ed., Revista dos Tribunais. São Paulo. T. 5 e 6.

PORTANOVA, Rogério. Direitos humanos e meio ambiente: uma revolução de paradigma para o século XXI. IN: LEITE, José Rubens Morato; BELLO FILHO, Ney de Barros (orgs). Direito Ambiental contemporâneo. Barueri: Manole, 2004.

ROCHA, P.P da C. [maio de 2012]. São Luís: IPHAN. Entrevista concedida a Natália Lago Sousa.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

SILVA, Fernando Fernandes da. As cidades brasileiras e o patrimônio cultural da humanidade. São Paulo: Peirópolis/USP, 2006.

SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 8. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2010.

________. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1997.

________. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001.

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e sua proteção jurídica. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2006.

VARELLA, Marcelo Dias e BORGES, Roxana Cardoso B. O Novo em Direito Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Natália Lago. Tombamento e função socioambiental da propriedade: Um estudo jurídico a partir da Operação Patrimônio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5040, 19 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56941. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos