Capa da publicação Terrenos de marinha: a verdadeira história e questões jurídicas controversas
Capa: ENAP / André Luís Pereira Nunes
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A verdadeira história dos terrenos de marinha e questões jurídicas controversas

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03/05/2017 às 11:10
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6. Do Decreto-Lei 9.760/1946 à Constituição de 1988

As Constituições de 1946, de 1967 e a EC-69 não mencionaram a propriedade da União sobre os terrenos de marinha, remetendo o assunto para a legislação federal ordinária.

O sistema patrimonial da União foi então compilado no Decreto-Lei 9.760/1946, que disciplinou todas as regras sobre aquisição, uso e alienação da propriedade pública federal, mantendo o sistema dos terrenos de marinha para as terras costeiras, e estabelecendo, a priori, a propriedade da União sobre esses imóveis.

Ao contrário das leis anteriores, de 1938 e de 1940, que tinham por insubsistentes quaisquer pretensões de propriedade particular sobre terrenos de marinha e aterros acrescidos, o Decreto de 1946 autorizou expressamente a consolidação da propriedade plena não federal sobre imóveis situados naqueles terrenos, desde que obtida por títulos outorgados pela União na forma do Decreto.

Art. 198. A União tem por insubsistentes e nulas quaisquer pretensões sôbre o domínio pleno de terrenos de marinha e seus acrescidos, salvo quando originais em títulos por ela outorgadas na forma do presente Decreto-lei.

A pergunta é se esse artigo validou os destacamentos da propriedade federal ocorridos antes de 1946 baseados em títulos outorgados pela própria União consoante regras anteriores reproduzidas no Decreto, em especial vendas, permutas e doações, tornando por conseguinte, válidas as cadeias dominiais alodiais originadas desses destacamentos. Desconhecemos acórdão ou sentenças que explorem com propriedade a solução dessa dúvida.

Ao contrário do que muitos pensam, o Decreto 9.760-46 não estabeleceu a obrigatoriedade de submissão terrenos de marinha ao regime enfitêutico, ao contrário do que mais tarde faria o ADCT para terrenos costeiros em faixa de segurança. A leitura sistemática do Decreto comprova que imóveis situados na zona de marinha poderiam se tornar de domínio pleno do particular de duas maneiras:

a) mediante a remição de foro, na forma do art. 103, ou

b) mediante alienação de propriedade plena em concorrência pública, na forma do art. 134, ambas condicionadas ao juízo de conveniência, oportunidade e interesse nacional, a critério do Presidente da República ou agente delegado.

O art. 103. do DL 9.760, cuja redação foi atualizada em 1998 (Lei 9.636) e em 2007 (Lei 11.481), combinado com o art. 198, possibilitou a consolidação do domínio pleno pelo titular do domínio útil (foreiro) de imóvel marinho mediante o instituto da remição do foro.

Art. 103. - O aforamento se extinguirá por inadimplemento de cláusula contratual, por acôrdo entre as partes, ou, a critério do Govêrno, pela remissão do fôro e, quanto às terras de que trata o art. 65, ou quando concedido com fundamento nos itens ns. 8º, 9º e 10º do art. 105, quando não estiverem as mesmas sendo utilizadas apropriadamente. (...)

§ 2º A remissão do fôro será facultada, a critério do Presidente da República e por proposta do Ministro da Fazenda, nas zonas onde não mais subsistam os motivos determinantes da aplicação do regime enfitêutico.

Apesar da grafia errada da lei (remissão), não há dúvidas que se trata do instituto do resgate (remição). Remição (resgate) é o instituto pelo qual o titular do domínio útil de um imóvel aforado resgata definitivamente o domínio direto do Senhorio (União), que é proprietária legal do imóvel.

As condições comerciais para o resgate (remição), entre 1946 e 1998 eram as seguintes: pagamento de 20 (vinte) foros e 1 1/2 (um e meio) de laudêmio e não mais subsistirem os motivos determinantes da aplicação do regime enfitêutico. A partir de 1998 (Lei 9.636) a remição se daria pelo pagamento de 17% do valor do terreno, explicitando-se a partir de 2015 (Lei 13.240), que dos 17% do valor do terreno seria abstraído, desse valor, as construções.

Os requisitos legais para a consolidação da propriedade plena pelo foreiro dos terrenos de marinha e acrescidos eram o juízo de conveniência e oportunidade da administração pública federal (Presidente da República ou agente delegado, como o Diretor da SPU) não querer mais manter o contrato enfitêutico nas zonas onde faltassem motivos determinantes para a aplicação do instituto, sendo esses motivos os descritos na lei de 1868.

Poderia ainda ocorrer a alienação do domínio pleno (propriedade) de terrenos de marinha ao ocupante do imóvel nas condições do artigo 134:

Art. 134. A alienação ocorrerá quando não houver interêsse econômico em manter o imóvel no domínio da União, nem inconveniente, quanto à defesa nacional, no desaparecimento do vinculo da propriedade,

A redação ficou inalterada até 1987, quando passaram a vigorar regras de venda regidas pelo o art. 4° do Decreto 2.398 e pelo Decreto 2.300/1986:

Art. 4º. A alienação de bens imóveis da União, sob administração do Serviço do Patrimônio da União (SPU), será feita em leilão público, podendo adquiri- los, em condições de igualdade com o lance vencedor, o ocupante ou locatário, sendo o mesmo procedimento adotado para a alienação do domínio útil, quando não houver preferência ao aforamento, observados os procedimentos estabelecidos no art. 15, inciso I, do Decreto-lei n° 2.300, de 21 de novembro de 1986, e modificações posteriores.

Essa segunda sistemática de alienação vigorou, até que em 1998 a Lei 9636 atualizou regras de alienação das propriedades da União:

Art. 23. A alienação de bens imóveis da União dependerá de autorização, mediante ato do Presidente da República, e será sempre precedida de parecer da SPU quanto à sua oportunidade e conveniência.

§ 1º A alienação ocorrerá quando não houver interesse público, econômico ou social em manter o imóvel no domínio da União, nem inconveniência quanto à preservação ambiental e à defesa nacional no desaparecimento do vínculo de propriedade.

§ 2º A competência para autorizar a alienação poderá ser delegada ao Ministro de Estado da Fazenda, permitida a subdelegação.

Concluímos que, inconveniente a alienação da propriedade na forma do art. 134 ou a remição do foro na forma do artigo 103, o Decreto 9.760 condicionou a utilização dos imóveis localizados na zona de marinha à contratação do regime enfitêutico com a União, desde que conveniente para o poder público.

A conveniência para o aforamento ficou parametrizada legalmente: ter o ente federal a intenção de radicar o indivíduo ao solo mantendo o vínculo da propriedade pública.8 O detalhamento da norma colocou outros requisitos adicionais como necessidade de concorrência pública, estabelecimento de direito de preferência para ex-proprietários putativos evictos por demarcações posteriores, sob determinadas condições.

Inexistindo conveniência do proprietário União pelo aforamento (chamado impropriamente de alienação de domínio útil pelas normas patrimoniais federais posteriores), o uso por particulares de imóveis localizados na zona de marinha se submeteria ao regime de ocupação precária, mediante o pagamento de taxa anual de 2% ou 5% do valor do terreno excluída a acessão, sem prejuízo da cobrança de laudêmios de 5% sobre o valor das operações de cessões de direitos ocupacionais, ficando vedada a ocupação de imóvel em zona de marinha de forma gratuita e sem cadastramento no órgão federal.


7. Terrenos de marinha no regime constitucional de 1988

Em 1988 a Constituição dispôs no art. 20, VII, que os terrenos de marinha e acrescidos seriam de propriedade da União, ocorrendo pela primeira vez a constitucionalização do direito de propriedade do ente federal sobre essas faixas de terra.

O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT criou uma restrição à venda ou remição de foro de certos imóveis situados em zona de marinha, pois o art. 49, §3º, estabeleceu que a enfiteuse seria o regime aplicado obrigatoriamente aos terrenos situados na faixa de segurança. Essa faixa era definida desde 1946 no art. 100. da própria Lei 9.760, distando 100 (cem) metros da costa marítima ou 1.320 (mil trezentos e vinte) metros de raio no entorno das fortificações e estabelecimentos militares.

Logo, imóveis em zona de marinha situados fora dessa faixa de segurança poderiam ser alienados em concorrência pública (venda da propriedade plena), aforados (também em concorrência pública com direito de preferência para ocupantes em determinadas situações) ou submetidos ao regime de ocupação, tudo segundo os critérios de conveniência econômica, militar, política e administrativa já mencionados.

A grande indagação dirigida ao texto constitucional diz respeito à situação jurídica dos imóveis localizados em terrenos de marinha validamente destacados do domínio público, seja por compra, doação ou permuta feitos diretamente da União em épocas remotas, seja por remição de foro e compra de propriedade na vigência do Decreto Lei 9.760.

Como sabemos, não se pode alegar direito adquirido contra o texto constitucional. Mas em nome da lógica e da razoabilidade jurídica, nos parece evidente que imóveis localizados em terrenos de marinha e acrescidos validamente destacados do domínio público no passado, ainda que situados em faixa de segurança, não se tornaram novamente imóveis públicos federais com a promulgação da Constituição, pois o legislador constitucional, apesar de ter definido a propriedade imobiliária da União sobre a zona de marinha, resguardou no texto constitucional o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, o direito de propriedade privada, o sistema de registros públicos e a coerência das cadeias dominiais imobiliárias, através da disciplina rigorosa das hipóteses de intervenção do Estado no domínio econômico através das desapropriações.

Admitir o contrário é advogar na tese de que o Constituinte de 1988 expropriou milhares de terrenos validamente destacados do domínio público no curso da história, sem indenização, para submetê-los sem qualquer lógica jurídica a novas possibilidades de destaque, pois como consabido, a legislação específica continuou permitindo remissão de foros e compra de propriedade plena fora da faixa de segurança. Aliás, a partir de 2015, o Governo Federal reforçou a política de alienação de propriedade plena de imóveis públicos situados na zona de marinha sob determinadas condições (Lei 13.240/2015)


8. Questões jurídicas controvertidas sobre terrenos de marinha e aterros costeiros

Passados mais de 186 anos de criação dos terrenos de marinha, poucos segmentos da LPM e sua linha homóloga, a LLM (linha limite dos terrenos de marinha) foram demarcados e homologados seguindo todos os ritos legais.

Sabemos que o art. 202. do Decreto Lei 9.760/1946 convalidou as demarcações que lhe foram anteriores, sob a condição de terem sido seguidos os ritos previstos nas normas vigentes à época:

Art. 202. - Ficam confirmadas as demarcações de terrenos de marinha com fundamento em lei vigente na época em que tenham sido realizadas.

Quanto às regras de demarcação dos terrenos após 1946, foram estabelecidos procedimentos gerais nos artigos de 9º ao 14 do Decreto 9.760 (com substanciais alterações feitas pela Lei 13.139/2015), cujas regras foram detalhadas tecnicamente nas IN 01/1980, revogada mais tarde pela ON GEADE 02/2001, atualmente em vigor, ambas da SPU.

Uma série de questões jurídicas controversas se estabeleceram com relação ao arcabouço normativo mencionado. Passo a analisar as que reputo mais importantes:

8.1. O problema do preamar médio

O preamar médio do ano de 1831 foi estabelecido antes de 1942 e depois de 1946 como ponto de referência fundiária para os processos demarcatórios dos terrenos de marinha.

No período de 1942 a 1946, reinou a confusão quanto aos limites fundiários dos terrenos de marinha e aterros, pois o Decreto-Lei nº 4.120/1942 alterou completamente a sistemática de demarcação, passando a considerar o preamar daquele ano como ponto referencial, mandando inclusive se abstrair da demarcação a áreas tomadas pelos aterros:

Art. 3º A origem da faixa de 33 metros dos terrenos de marinha será a linha do preamar máximo atual, determinada, normalmente, pela análise harmônica de longo período. Na falta de observações de longo período, a demarcação dessa linha será feita pela análise de curto período.

§ 1º Para os efeitos deste artigo, a análise de longo período deve basear-se em observações contínuas durante 370 dias. Para a análise de curto período, o tempo de observação será, no mínimo, de 30 dias consecutivos.

§ 2º A posição da linha do preamar máximo atual será fixada pela Diretoria do Dominio da União, de acordo com as observações e previsões de marés, feitas pelo Departamento Nacional de Portos e Navegação ou pela Diretoria de navegação do Ministério da Marinha.

§ 3º No caso de ser reconhecida a existência de aterros naturais ou artificiais, tomar-se-á, como linha básica de marinhas, a que coincidir com o batente do preamar máximo atual, feita abstração dos referidos aterros.

Após o período da confusão demarcatória a sistemática de 1831-1868 foi retomada.

Como a demarcação dos 19.000 km de costa, baias, ilhas, restingas, estuários e lagoas com oscilação de maré de 5 cm obviamente não pôde ser realizada de uma vez, se criou um problema dinâmico crônico com relação ao processo de demarcação da LPM: quanto mais o tempo avança, mais difícil fica para os demarcadores encontrarem o dito ponto do preamar médio referenciado na linha de costa do ano de 1831 ou do que mais se aproximasse.

Cientes das dificuldades de demarcação inerentes ao descobrimento dos longínquos referenciais originais, a norma federal de 1946 possibilitou que os demarcadores se orientassem por plantas e documentos históricos que mais se aproximassem daquele ano de 1831 (sic), para estabelecer a LPM

Art. 10. A determinação será feita à vista de documentos e plantas de autenticidade irrecusável, relativos àquele ano, ou, quando não obtidos, a época que do mesmo se aproxime.

O dispositivo legal dispensa maiores divagações jurídicas, pois deixa evidente que os demarcadores foram legalmente autorizados a arbitrar a linha em lugar diverso do preamar médio ocorrido em 1831, bastando para isso que não existam plantas ou fotos, ou dados maregráficos do trecho daquele ano, o que torna sua legalidade duvidosa.

O que se vê nos processos demarcatórios findos ou em andamento é que na prática as demarcações acabam seguindo a linha de vegetação da praias ou tábuas de marés muito recentes (a partir de níveis médios do mar claramente alterados), sem prejuízo de outros critérios demarcatórios obscuros e de precisão duvidosa, assunto bem desenvolvido nos estudos do conhecido professor Obéde Pereira de Lima (Tese de Doutorado Localização geodésica da linha da preamar média de 1831 – LPM/1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos. Florianópolis, 2002)

Registre-se em tempo que o conceito de preamar ganhou definição legal no Brasil no ano de 2004, no bojo do Decreto 5300, art. 2º, XXII: é a altura máxima do nível do mar ao longo de um ciclo de maré, também chamada de maré cheia.

Se o conceito de preamar só foi estabelecido em lei no ano de 2004, é possível que as LPMs estabelecidas em demarcações anteriores a esse ano tenham utilizado outro critério conceitual, havendo então processos de demarcação da orla realizados com parâmetros técnicos diversos. As consequências técnicas e jurídicas de demarcações feitas em desalinho com o conceito legal merecem reflexão em artigo à parte.

8.2. Consequências imobiliárias da LPM plenamente concluída e da LPM presumida

Dados apresentados no Plano Nacional de Caracterização da SPU, em 2014, atestam que a linha de preamar total "demarcada" era, naquele ano, de 4.247,06 km e a linha não demarcada, 15.159,05 km, de um total de 19.406,11 km.9

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Nessa estatística foram consideradas "demarcadas" pela SPU todas as linhas de preamar estimadas (presumidas). Ou seja, linhas que não foram homologadas administrativamente e registradas no registro público de imóveis entram no cálculo da SPU como linhas demarcadas.

O plano referido define como linha de preamar plenamente concluída a demarcada com todos os ritos legais cumpridos, incluindo intimação pessoal dos atingidos conforme decidido na ADI 4264 pelo STF em 2011, e o registro das plantas e memoriais descritivos em cartório.

O cadastramento federal de imóveis em trechos não plenamente demarcados é um assunto que merece uma melhor análise de todos os operadores do direito envolvidos com o assunto, pois chega às raiais do absurdo o modus operandi atualmente em curso.

Antes da demarcação homologada, em nosso entendimento, a União tem expectativa de direito de propriedade sobre os imóveis localizados na presumida zona de marinha.

Os direitos patrimoniais imobiliários da União sobre terras não demarcadas e sem registro público (terrenos de marinha, terrenos marginais, terrenos ocupados por estradas e vias férreas federais, terras devolutas federais) se encontram em estado potencial até a homologação do processo demarcatório, marco temporal que definitivamente estrema o domínio público do privado, e que permite que se efetuem os cancelamentos e retificações nos títulos dominiais conflitantes, pertencentes a terceiros, e obviamente, cobrança de receitas patrimoniais pela União, inclusive de forma retroativa (5 anos)

As superintendências da SPU costumam notificar quaisquer ocupantes de imóveis costeiros (proprietários ou não) para cadastrarem seus imóveis nos bancos de dados do órgão federal, apenas com base em dados preliminares de cartografia da LPM-LLM, não submetidos ao crivo do contraditório e da ampla defesa.

Esses cadastramentos levam à criação de inscrições imobiliárias (RIPs) nos livros da SPU, na classificação de imóveis presumidamente da União, procedimento que reputo de legalidade questionável, com base na interpretação sistemática dos artigos 61, 63, 127 e 128 do DL 9.760.

Art. 61. O SPU exigirá de todo aquêle que estiver ocupando imóvel presumidamente pertencente à União, que lhe apresente os documentos e títulos comprobatórios de seus direitos sôbre o mesmo. (...)

Art. 63. Não exibidos os documentos na forma prevista no art. 61, o SPU declarará irregular a situação do ocupante, e, imediatamente, providenciará no sentido de recuperar a União a posse do imóvel esbulhado.

Art. 127. Os atuais ocupantes de terrenos da União, sem título outorgado por esta, ficam obrigados ao pagamento anual da taxa de ocupação. (...)

Art. 128. Para cobrança da taxa, o SPU fará a inscrição dos ocupantes, ex- officio, ou à vista de declaração dêstes, notificando-os.

No caso de a União estar diante de um imóvel com potencialidade de se enquadrar em seu domínio patrimonial (expectativa de direito), os caminhos legais para a solução do problema são diversos:

Em primeiro lugar, pode a União demarcar definitivamente a zona de marinha e acrescidos, homologando e registrando a LPM-LLM no registro federal e no registro público imobiliário, tornando certa sua presunção de propriedade, o que autorizará a promoção dos cancelamentos e retificações necessários nos títulos de propriedade conflitantes, total ou parcialmente englobados pela zona de marinha demarcada, na forma do art. 1º e 8-B da Lei 6.739/1979, aplicável por analogia:

Art. 1º- A requerimento de pessoa jurídica de direito público ao Corregedor-Geral da Justiça, são declarados inexistentes e cancelados a matrícula e o registro de imóvel rural vinculado a título nulo de pleno direito, ou feitos em desacordo com o art. 221. e seguintes da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela Lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975. (...)

Art. 8-B - Verificado que terras públicas foram objeto de apropriação indevida por quaisquer meios, inclusive decisões judiciais, a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município prejudicado, bem como seus respectivos órgãos ou entidades competentes, poderão, à vista de prova da nulidade identificada, requerer o cancelamento da matrícula e do registro na forma prevista nesta Lei, caso não aplicável o procedimento estabelecido no art. 8-A. (Incluído pela Lei nº 10.267, de 28.8.2001)

Se não existir LPM-LLM homologada, a União poderá notificar, com base em seu domínio eminente, o "ocupante" para que apresente título de domínio da área, que se existir, fará presunção de propriedade contra a União e terceiros até que venha a ser cancelado ou retificado judicial ou extrajudicialmente, quando da ulterior demarcação homologada e registrada. Esse entendimento encontra guarida na regra do Art. 1.227. e 1245 do Código Civil.

Art. 1227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245. a 1.247), salvo os casos expressos neste Código. (...)

Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.

§ 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.

§ 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.(grifei)

Por fim, entendemos que a União só poderá cadastrar provisoriamente o imóvel em área presumida como de marinha se ocupada sem título justo de propriedade.

Na hipótese do ocupante de imóvel costeiro não ter título dominial de imóvel em área de marinha presumida, ou seja, em área não demarcada e homologada, e o cartório de registro de imóveis informar a inexistência de qualquer registro público naquele terreno, estará a União autorizada por lei a arrecadar o imóvel e a declarar a irregularidade da posse valendo-se do poder de polícia decorrente de seu domínio eminente, com base no art. 63. do DL 9.760, ficando qualquer ocupação nessa área sujeita às regras do regime ocupacional de maneira provisória até que se finalize a demarcação e homologação e se produza o título declaratório do direito de propriedade imobiliária da União.

Art.63. Não exibidos os documentos na forma prevista no art. 61, o SPU declarará irregular a situação do ocupante, e, imediatamente, providenciará no sentido de recuperar a União a posse do imóvel esbulhado.

O cadastro deverá ser feito com a anotação de que o imóvel se encontra arrecadado pela União e de que a área está em processo de demarcação. Efetivada a demarcação e homologada administrativamente a LPM-LLM, se constatado que a área cadastrada realmente se situa nos limites da LLM, o ato homologatório servirá como título declaratório de propriedade definitiva da União, que poderá promover o registro imobiliário, a fim de se matricular o imóvel contido na zona de marinha. Se a área estiver fora da zona de marinha, a União poderá promover a regularização fundiária da área nos termos da Lei 9.636/1998, não como terreno de marinha, mas como propriedade pública alodial urbana ou rural, através de ação discriminatória oiu simplesmente pelo instituto da discriminação administrativa (chamada impropriamente de usucapião administrativa).

Em resumo, não é outra a razão pela qual o DL 9.760/1946, no seus artigos 61 e 63, manda a União notificar aqueles que estiverem em áreas de sua propriedade potencial a apresentarem os títulos de domínio particular: TÍTULO EMANADO DO REGISTRO PÚBLICO EM NOME DE TERCEIRO ELIDE A PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE PÚBLICA FEDERAL, ATÉ PROVA DESCONSTITUTIVA EM CONTRÁRIO!

Observo que a Súmula 496 do STJ diz que os registros de propriedade particular de imóveis situados em terrenos de marinha não são oponíveis à União. Ora, apenas a demarcação HOMOLOGADA pode definir, nos termos da própria Súmula e das regras de direito administrativo, se a unidade imobiliária realmente está ou não situada em zona de marinha, e se títulos dominiais validamente atribuídos a terceiros são de fato inválidos.

Logo, títulos de propriedade particular de imóveis em zona de marinha NÃO SÃO OPONÍVEIS à União se, e somente se ocorrerem as duas situações:

a) ela tiver homologado sua demarcação seguindo todos os ritos procedimentais;

b) não tiver havido prévio destaque legal do imóvel do domínio público, nos termos das regras de direito patrimonial da União e das regras de direito civil.

O título dominial da União originado da demarcação oficial, como já dito, tem natureza declaratória de propriedade patrimonial pública e ao mesmo tempo desconstitutiva de títulos particulares contraditórios não validamente atribuídos. Esse título será documento hábil para encaminhamento ao registro público imobiliário para fins de abertura de matrícula das unidades imobiliárias abrangidas no trecho, devidamente acompanhado das plantas e memoriais descritivos.

O mesmo título servirá para a União proceder à retificação, bloqueio ou pedido de cancelamento dos títulos de terceiros contraditórios com seu direito, particulares ou de outro ente público, desde que não validamente atribuídos aos últimos. O procedimento de acertamento do registro público será conduzido pelo próprio oficial de registro imobiliário e seu juiz corregedor, nos termos das regras de retificação e cancelamento de registro definidas na Lei 6.015/1973 e da Lei 6.739/197910.

8.3. Seccionamento de lotes e glebas pela demarcação tardia da LPM-LLM

Homologada e registrada tardiamente a zona de marinha definida pela LPM-LLM e área acrescida, poderá haver superposição total ou parcial dessa área com poligonais de imóveis originados de loteamentos registrados no cartório de imóveis anteriormente, tidos como alodiais.

Se o seccionamento do lote ou gleba pela LPM-LLM demarcada, homologada e registrada for parcial e o imóvel comportar cômoda divisão, a União deverá estremar suas divisas de forma amigável ou contenciosa com o terceiro atingido. Não se trata de faculdade já que na forma do artigo 19 e seguintes do Decreto 9.760, dispõe claramente que:

Art. 19. Incumbe ao SPU promover, em nome da Fazenda Nacional, a discriminação administrativa das terras na faixa de fronteira e nos Territórios Federais, bem como de outras terras do domínio da União, a fim de descrevê-las, medi-las e extremá-las do domínio particular.(...)

Art. 21. Desdobra-se em duas fases ou instâncias o processo discriminatório, uma administrativa ou amigável, outra judicial, recorrendo a Fazenda Nacional à segunda, relativamente àqueles contra quem não houve surtido ou não puder surtir efeitos na primeira.

O registro imobiliário do terceiro deverá ter suas descrições tabulares retificadas para se excluir a área do terreno de marinha, adequando-se o cadastro fundiário ao novo confrontamento com a área da União demarcada e matriculada, tal como ocorre com o seccionamento de glebas rurais pela faixa de domínio rodoviária e ferroviária.

No caso de seccionamento parcial da LPM-LLM sobre lote ou gleba que não comporte cômoda divisão (exemplos: um lote com condomínio horizontal incorporado, ou lote que se dividido resulte em fração de terras cujo tamanho não comporte a formação de nova unidade imobiliária), a situação será mais complexa, não havendo previsão legal na legislação patrimonial da União do que deve ocorrer.

Entendemos, nesse caso, que deverão ser aplicadas, por analogia, as regra dos arts. 1.322. e seguintes do Código Civil, referentes à extinção do condomínio imobiliário ordinário incidentalmente formado entre União e o particular:

Art. 1.322. Quando a coisa for indivisível, e os consortes não quiserem adjudicá-la a um só, indenizando os outros, será vendida e repartido o apurado, preferindo-se, na venda, em condições iguais de oferta, o condômino ao estranho, e entre os condôminos aquele que tiver na coisa benfeitorias mais valiosas, e, não as havendo, o de quinhão maior. Parágrafo único. Se nenhum dos condôminos tem benfeitorias na coisa comum e participam todos do condomínio em partes iguais, realizar-se-á licitação entre estranhos e, antes de adjudicada a coisa àquele que ofereceu maior lanço, proceder-se-á à licitação entre os condôminos, a fim de que a coisa seja adjudicada a quem afinal oferecer melhor lanço, preferindo, em condições iguais, o condômino ao estranho.

Nesse caso, a União e o condômino da unidade(s) imobiliária(s) seccionada(s) deverão promover a extinção judicial ou amigável do condomínio ordinário, pois em nosso entendimento, o ordenamento jurídico não permite a convivência de direitos reais imobiliários contraditórios sobre a mesma unidade imobiliária indivisa. (v.g, propriedade pública plena passível de aforamento e propriedade privada plena sobre a mesma unidade imobiliária indivisa).

Logo, não há base jurídica para que o particular seja coproprietário da União em lote ou unidade autônoma condominial indivisa, de forma definitiva. Tal situação sempre deverá ser transitória.

O seccionamento parcial de lote construído pela LPM-LLM torna a União coproprietária do terreno e de toda a construção que nele tiver se aderido. Direitos indenizatórios decorrentes da construção de boa-fé em terreno parcial ou totalmente alheio se resolvem pelas regras imobiliárias federais e subsidiárias do Direito Civil.

Ademais, nunca é tarde lembrar que a unidade imobiliária autônoma forma com sua fração ideal no terreno um todo indivisível, sendo absolutamente ilegais, em nosso entendimento, os assentos patrimoniais criados pela SPU que promovem o destacamento do terreno da sua edificação, em desacordo com todas as normas de acessão e de formação do condomínio edilício estatuídas no Código Civil e na Lei 4.591/1964.

Unidades autônomas construídas em áreas totalmente situadas em terrenos de marinha e aterros, com demarcação homologada e sem título válido de destaque do patrimônio público, são de propriedade da União, pois aquele que edifica em terreno alheio, conforme regra (artigos 1.255 e 1.259 do Código Civil), perde a construção em proveito do proprietário do solo, ficando com o direito de pleitear indenização pelos gastos da construção, se agiu de boa-fé.

Na verdade, a questão do seccioamento total ou parcial de imóveis de marinha pela LPM-LLM é muito mal disciplinada pela Lei 9.760 , que é anterior à Lei de parcelamento do solo urbano (1979) e à Lei de condomínio edilícios (1964). De qualquer forma, é incompreensível que ao longo de todos esses anos a legislação federal não tenha se adaptado para utilizar os mecanismos adequados de acertamento fundiário, combinando-se adequadamente as regras de direito imobiliário civil com as regras de direito imobiliário público.

8.4. Desapropriação judicial privada em terrenos de marinha

Considerando que em muitos casos o valor das construções edificadas na orla costeira sobejam em muitas vezes o valor venal dos terrenos de marinha demarcados a posteriori, e considerando ainda que tais terrenos, embora não suscetíveis de serem usucapidos (os bens imóveis da União, seja qual fôr a sua natureza, não são sujeitos a usucapião), não são inalienáveis (exceto se situados na faixa de segurança), fica a pergunta se seria juridicamente possível que, judicialmente, se demandasse pela perda de propriedade da União sobre determinados lotes e edificações construídas de boa-fé em terrenos de marinha, mediante o uso do instituto da desapropriação judicial privada (ou acessão reversa), na forma do art. 1.255, § único

"CC Art. 1.255. - Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé, terá direito a indenização."(...)

Art. 1.255, § único: "Se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo.

A desapropriação judicial privada existe em cumprimento ao comando constitucional de que a propriedade deve cumprir sua função social, a todos submetendo, inclusive o poder público. O objetivo aqui é evitar que construções feitas de boa-fé em terreno alheio, de grande valor econômico e social, tenham que ser destruídas por conta do acertamento da propriedade do terreno.

De fato, se a União permitiu ao longo de quase 200 anos que bairros inteiros de cidades costeiras se criassem em seus domínios não estremados, fica muito difícil, a partidr de demarcações tardias da LPM, se querer descontituir todo o plexo econômico-imobiliário formado nas barbas de sua omissão cadastral. No mais, fica patente que os fins justitificativos do instituto (servidão de passagem, defesa, livre acesso a portos e praias, etc) não poderiam ser evocados em áreas urbanas consolidadas, a menos que se enxergue o instituto pelo prisma meramente arrecadatório.

Embora não haja qualquer registro da aplicação de desapropriação judicial privada contra ente público, defendemos que o desconhecido instituto previsto no Código Civil se aplicaria a terrenos públicos alienáveis, com edificações feitas por particulares de boa-fé, como é o caso construções feitas em de centenas de terrenos de marinha não demarcados e homologados até hoje, ou demarcados tardiamente, situados fora da faixa de segurança, e com registro alodial em cartório além de cadeia dominial historicamente privada.

Cumpridos esses requisitos, entendemos que seria viável a desapropriação judicial contra a União, mediante o pagamento de indenização à desapropriada em valor não inferior ao do domínio pleno do terreno, concomitantemente à declaração judicial de inutilidade pública da gleba marinha.

Evidentemente, caso se entenda pela inaplicabilidade do insituto da desapropriação privada, o caminho para a regularização fundiária será o da retificação do registro público na forma da Lei 6.015/1973 e 6.739/1979, para que conste no fólio imobiliário a União como proprietária de todos os imóveis situados no terreno de marinha, edificados ou não, incluindo unidades autônomas, as quais poderão mediante termo de transação amigável ou judicial, ser aforadas aos proprietários putativos evictos, compensando-se os valores dos aforamentos pelos diretos de indenização de benfeitorias construídas em terreno alheio de boa-fé.

O art. 13. da recente Lei 13.240/2015 pareceu timidamente tentar tratar do assunto.

Art. 13. Para os imóveis divididos em frações ideais em que já tenha havido aforamento de, no mínimo, uma das unidades autônomas, na forma do item 1º do art. 105. do Decreto-Lei no 9.760, de 5 de setembro de 1946, combinado com o inciso I do caput do art. 5º do Decreto-Lei no 2.398, de 21 de dezembro 1987, será aplicado o mesmo critério de outorga de aforamento para as demais unidades do imóvel.

8.5. Considerações adicionais sobre acessões em terrenos de marinha e unidades autônomas

A legislação da União incorre em erro grave ao tratar a propriedade do solo desatrelada da propriedade da sua edificação, no que abre caminho para se criar uma confusão administrativa cadastral que agride frontalmente princípios básicos de direito imobiliário, materializados nos antigos artigos 545, 546 e 547 do Código de 1916, e nos artigos 1.253 e seguintes do novo Código de 2002:

Art. 545. Toda construção, ou plantação, existente em um terreno, se presume feita pelo proprietário e à sua custa, até que o contrário se prove.

Art. 546. Aquele que semeia, planta, ou edifica em terreno próprio, com sementes, plantas ou materiais alheios, adquire a propriedade destes; mas fica obrigado a pagar-lhes o valor, além de responder por perdas e danos, se obrou de má fé.

Art. 547. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções, mas tem direito à indenização. Não o terá, porém, se procedeu de má fé, caso em que poderá ser constrangido a repor as coisas no estado anterior e a pagar os prejuízos.​

Art. 1.253. Toda construção ou plantação existente em um terreno presume-se feita pelo proprietário e à sua custa, até que se prove o contrário.

Art. 1.254. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno próprio com sementes, plantas ou materiais alheios, adquire a propriedade destes; mas fica obrigado a pagar-lhes o valor, além de responder por perdas e danos, se agiu de má-fé.

Art. 1.255. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé, terá direito a indenização.

Parágrafo único. Se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo.​

A confusão parece ter nascido na redação do parágrafo único do art. 99. do DL 9.750/1946, que vai de encontro à regra básica do direito imobiliário de que a acessão segue a sorte dominial do terreno, formando com ele uma unidade imobiliária inseparável (embora divisível, como no caso da instituição de condomínio edilício):​

Art. 99. A utilização do terreno da União sob regime de aforamento dependerá de prévia autorização do Presidente da República, salvo se já permitida em expressa disposição legal.

Parágrafo único. Em se tratando de terreno beneficiado com construção constituída de unidades autônomas, ou, comprovadamente, para tal fim destinado, o aforamento poderá ter por objeto as partes ideais correspondentes às mesmas unidades.

A lei 9.636/1998 também parece admitir a separação jurídica do terreno de sua edificação, inclusive com a possibilidade de se estabeler direitos reais imobiliários contraditórios sobre a mesma unidade imobiliária indivisa, ao permitir que o particular adquira o domínio pleno da construção sendo foreiro do terreno!!!

Art. 15. A Secretaria do Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão promoverá, mediante licitação, o aforamento dos terrenos de domínio da União situados em zonas sujeitas ao regime enfitêutico que estiverem vagos ou ocupados há até 1 (um) ano em 10 de junho de 2014, bem como daqueles cujos ocupantes não tenham exercido a preferência ou a opção de que tratam os arts. 13. e 17 desta Lei e o inciso I do caput do art. 5º do Decreto-Lei nº 2.398, de 21 de dezembro de 1987. (Redação dada pela Lei nº 13.139, de 2015)

§ 1º O domínio pleno das benfeitorias incorporadas ao imóvel, independentemente de quem as tenha realizado, será também objeto de alienação. (grifei)

Verificamos assim a existência de inúmeros RIPs (registro de inscrição patrimonial) da SPU de frações ideais no terreno de apartamentos, salas e lojas comerciais, em total desacordo com as regras de acertamento fundiário estabelecidas no ordenamento jurídico.

Esse estado de incorreção geral merece uma revisão normativa completa, sob pena de perpetuar a eterna "bagunça" jurídico-fundiária reinante nesses imóveis costeiros.

A União tem plena liberdade para estabelecer que a base de cálculo de foros, taxas de ocupação e laudêmios inclua ou exclua o valor da construção erigida sobre o terreno (benfeitoria). Contudo, isso não muda a regra de que a propriedade da acessão se atrela à propriedade do terreno, a menos que haja declaração judicial em sentido contrário através da desapropriação judicial privada ou acessão reversa, como denominam alguns doutrinadores.

8.6. A questão dos logradouros públicos criados em loteamentos implantados em terrenos de marinha: propriedade dos Municípios ou da União?

Abstraída a tese defendida neste artigo de que terrenos de marinha destacados validamente do domínio público, segundo a lei vigente na época do destaque, seriam de domínio pleno de seus adquirentes, uma questão tormentosa sempre se abateu sobre gestores federais e municipais a respeito da propriedade dos logradouros públicos (ruas e praças) originados de parcelamentos do solo feitos em terrenos de marinha e acrescidos.

Embora a primeira norma a tratar de terrenos de marinha, a lei Orçamentária de 15 de novembro de 1831, tenha "cedido" aos municípios os terrenos necessários à construção de logradouros públicos (essa cessão nos parece dever ser interpretada como autêntica doação efetiva), é fato que a União sempre se considerou proprietária dos logradouros públicos surgidos com o parcelamento do solo em terrenos de seu domínio.

É possível que essa linha de raciocínio se ampare na interpretação do art. 2º do Decreto Lei 7.937/1945:

Art. 2º Fica permitido, também, independente da condição estabelecida no artigo anterior, ao ocupante, posseiro ou foreiro, o loteamento dos respectivos terrenos de marinha, bem como a transferência a terceiro de seus direitos sôbre os lotes resultantes, desde que cada um dêstes se constitua de terreno de marinha e de terreno alodial e o loteamento conste de projeto aprovado pela Municipalidade

Dispositivos contidos na antiga lei de parcelamento do solo, o Decreto-Lei n. 58, de 10 de dezembro de 1937, regulamentado pelo Decreto nº 3.079/1938, tornavam inalienáveis as vias de comunicação e áreas públicas dos loteamentos, mantendo essas área sob a propriedade jurídica do loteador, que poderia ser o poder público ou não.

Já a Lei 6.766/1979 foi taxativa ao atribuir a propriedade dos logradouros públicos originados de loteamentos aos Municípios:

Art. 22. - Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo.

De qualquer forma, a questão da propriedade dos logradouros públicos em terrenos de marinha e acrescidos ficou encerrada com a lei 13.240/2015, que em seu art. 15. transferiu aos Municípios e ao Distrito Federal os logradouros públicos pertencentes a parcelamentos do solo para fins urbanos aprovados ou regularizados pelo poder local e registrados nos cartórios de registro de imóveis, localizados em terrenos de domínio da União, incluindo, em nosso entedimento, os parcelamentos feitos nos terrenos de marinha.

8.6.1. Propriedade dos terrenos de marinha em ilhas sede de Município segundo o STF

No final de abril de 2017 ocorreu o julgamento do Recurso Extraordinário 636.199, onde se decidiu que a EC 46/2005 não alterou a propriedade da União sobre os terrenos de marinha em ilhas costeiras com sede de município. A emenda, como se sabe, alterou o inciso IV do artigo 20 da Constituição da República, no qual estão listados os bens da União, para excluir da lista as ilhas costeiras “que contenham sede de município".

A Corte entendeu que a partir da emenda constitucional, não se presume mais a propriedade da União em todo o território das ilhas sede de município. Mas isso não afasta sua propriedade sobre a faixa de 33 metros a partir do mar, na palavras da relatora Ministra Rosa Weber “Com a EC 46/05, as ilhas costeiras em que situada sede de município passam a receber o mesmo tratamento da porção continental do território brasileiro no tocante ao regime de bens da União”. Segundo ela, o que motivou o projeto que levou à alteração constitucional foi exatamente a promoção do princípio da isonomia. Com isso, passariam a ter o mesmo tratamento os municípios sediados no continente e nas ilhas costeiras.

Na opinião desse autor, a corte Suprema incorre em erro comum em decisões judiciais sobre o assunto, ao entender que o legislador constitucional estabeleceu de forma absoluta a propriedade da União sobre lotes e glebas localizados na faixa de 33m do premar médio de 1831 e nas áreas aterradas acrescidas.

Tais decisões, em nossa humilde opinião, não levam em consideração o aspecto dinâmico da propriedade imobiliária dos imóveis situados em terrenos de marinha. Destacamentos plenos do domínio público ocorreram em conformidade com as leis e o regime constitucional vigente no curso da história, de forma que a propriedade ou presunção de propriedade da União sobre terrenos de marinha (em ilhas e no continente), deve ser analisada caso a caso, a menos que se admita pereptoriamente que o legislador constitucional expropriou todas as eventuais propriedades alodiais formadas em zona de marinha ao longo dos 186 anos de vigência do instituto.

8.7. Praias e terrenos de marinha

A definição legal de praia ganhou relevância com o advento da lei 13.240/2015 que estabeleceu "o fim da praia "(sic) como área de início de contagem da zona de 30m, que formará a nova faixa de segurança prevista no ADCT, art. 49. §3º.

As praias, sejam elas naturais ou artificiais (criadas a partir de aterros nas áreas de costa original), possuem definição legal na Lei 7.661/198811:

Art. 10. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.

§ 1º. Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput deste artigo.

§ 2º. A regulamentação desta lei determinará as características e as modalidades de acesso que garantam o uso público das praias e do mar.

§ 3º. Entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema.

O trecho normativo mencionado é de compreensão fundamental, pois inúmeros problemas relacionados aos processos de demarcação da LPM se resolvem pela leitura desse dispositivo.

Processos de demarcação findos ou tardios, que remontam a plantas e documentos técnicos de 1831, ou da data mais próxima, devem levar em consideração se a LPM não está estabelecida em áreas permanentemente secas das praias naturais, mencionadas no Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, já que a definição de preamar médio (seja qual for o ano adotado) torna obrigatório que os terrenos de marinha tenham partes de solo alagadas periodicamente.

Do contrário, a LPM estará adiantada e em relação ao ponto correto, sendo desnecessário qualquer estudo técnico aprofundado para se abstrair essa conclusão lógica.

Atos demarcatórios e homologatórios da LPM-LLM, atos administrativos que são, estão sujeitos às regras de nulidade, anulabilidade e convalidação disciplinados pelo direito administrativo, as quais fogem do escopo deste estudo.

8.8. Da obrigatória estremação do domínio público do privado

Encerro as observações sobre questões controvertidas com algumas reflexões sobre a estremação do domínio público do privado, obrigatória na minha opnião.

A situação de condominialidade imobiliária ordinária incidentalmente formada entre particular e União nos terrenos parcialmente seccionados pela LPM-LLM, seja a demarcação antiga ou tardia, nos termos do Decreto 9.760, há de ser sempre transitória, já que a busca pela estremação do domínio público do particular é um dos objetivos perseguidos pela norma federal patrimonial.

Não devemos confundir, nesse processo, a formação do condomínio ordinário imobiliário incidental (onde há dois ou mais proprietários do mesmo imóvel) com desdobramento da propriedade plena em domínio útil do enfiteuta e domínio direto do senhorio, decorrente de celebração do contrato de aforamento (onde há um proprietário, de um lado, e um titular de direito real sobre coisa alheia, de outro).

Reitero que no segundo caso há apenas um proprietário do imóvel, que é a União, a qual fica desprovida de quase todos os poderes do domínio que lhe eram originalmente inerentes na condição de proprietária plena do imóvel. O enfiteuta é titular de direito real sobre coisa alheia, tendo o direito de posse, uso, gozo e direito de alienação condicional do bem (podendo inclusive edificar e instituir condomínio edilício no terreno), mas não será nunca proprietário legal do imóvel, que permanece gravado com o ônus da enfiteuse até que se promova a remição do foro ou a rescisão do contrato de aforamento seguida da compra da propriedade plena em concorrência pública.

Entendemos como incorretas as soluções atualmente praticadas no registro federal e no registro público consistente no cadastramento de "lotes parcialmente de marinha", ou de unidades autônomas cuja fração ideal no terreno é "proporcionalmente" de marinha”, assunto já tratado nos itens anteriores.

A conclusão é no sentido de que a estremação do domínio público do particular não é facultativa. Não o era em 1850, na vigência da Lei de Terras, assim como não o é na vigência do Decreto-Lei 9.760/1946, recepcionado pela Constituição de 1988.

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Sobre o autor
Lopes Manu Tobias

Atualmente é Tabelião de Notas e Protesto. Foi Oficial de Registro de Imóveis (2011-2013), Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ENAP-MPOG 2007), Advogado (2005-2011), e Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília-UnB (2005)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOBIAS, Lopes Manu. A verdadeira história dos terrenos de marinha e questões jurídicas controversas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5054, 3 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57458. Acesso em: 21 nov. 2024.

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