Palavras-chave: Terrenos de marinha. Evolução Histórica. Demarcação não homologada. LPM presumida. Seccionamento de imóveis. Desapropriação judicial privada. Cadeia dominial. Estremação do domínio público. Condomínio ordinário incidental. Registro imobiliário. Secretaria do Patrimônio da União – SPU. Terrenos alodiais. Unidades autônomas. Preamar médio.
Introdução
Este artigo trata da evolução histórica e normativa dos terrenos de marinha, e também das controvérsias jurídicas mais relevantes incluindo regras de demarcação, seccionamento de lotes pela linha do preamar médio e pela linha limite dos terrenos de marinha LPM-LLM, destacamento de imóveis costeiros do domínio público, cancelamentos e retificações no registro imobiliário, definição legal do preamar médio, dentro outros assuntos.
A elaboração do artigo foi precedida da análise cuidadosa de mais de 50 normas federais editadas sobre terrenos de marinha ao longo dos 186 de sua existência (incluindo instruções normativas, portarias, ofícios circulares).
Nosso objetivo ao final foi o de estabelecer um panorama jurídico historicamente contextualizado da situação fundiária de aproximadamente 3 milhões de unidades imobiliárias costeiras.
1. Origens dos terrenos de marinha
Há diversos registros históricos no período colonial brasileiro de Ordens Régias tratando das "marinhas" (praias e áreas lindeiras), geralmente em questões relativas à exploração de salinas, manutenção de servidão pública de passagem e proibição de edificação, o que denota que tais áreas sempre receberam tratamento diferenciado no acervo patrimonial imobiliário da Coroa portuguesa.
À título de exemplo, podemos citar a Ordem Régia de 10 de janeiro de 1732, que previa:
“ (...) da linha d’água para dentro sempre são reservadas 15 braças pela borda do mar para serviço publico, nem entrão em propriedade alguma dos confinante com a marinha e tudo o quanto allegarem para apropriar do terreno é abuso inattendivel.”2
Outra Carta Régia de 07 de Setembro de 1808 mandou promover a extração do sal das "marinhas" nas Capitanias de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Bahia e Ceará, após o desabastecimento comercial da colônia:
"Sendome presente a falta de sal que se póde experimentar nos meus Dominios do Brazil, por haver cessado a correspondencia entre o meu Reino de Portugal e este Estado, e querendo atalhar as consequencias nocivas que da falta de um genero tão necessario podem vir aos meus fieis vassallos: sou servido ordenar-vos que façais promover a extracção do sal das marinhas dessa Capitania, da de Itamaracá e Assú na do Rio Grande do Norte."
Um Decreto de 21 de Janeiro de 1809 mandou aforar os terrenos das praias da Gamboa e Sacco de Alferes no Rio de Janeiro, próprios para armazéns e trapiches.
"Tendo consideração á grande falta que ha nesta Cidade, de armazens e trapiches, em que se recolham trigos, couros e generos; e constando-me que nas praias da Gamboa e Sacco do Alferes se podem construir: hei por bem ordenar que o Conselho da Fazenda, procedendo aos exames necessarios nas ditas praias, mande demarcar os terrenos que alli achar proprios para este fim: e que, fazendo publica esta minha determinação, haja de os aforar, ou arrendar a quem mais offerecer e possa em breve tempo principiar a edificar, passando-se aos arrendamentarios os seus competentes titulos, e dando-me conta conta de tudo que a este respeito obrar."
Diante do aumento de requisições públicas e particulares para utilização de terrenos costeiros visando a construção de armazéns, trapiches, igrejas, pequenos comércios, ruas e praças, em 15 de novembro de 1831 foi autorizada, via Lei Orçamentária, a cessão de porções de terrenos costeiros para as Câmaras Municipais construírem logradouros públicos e ainda foi autorizado que Governos das Provinciais aforassen tais terrenos a particulares, obtendo foros e laudêmios para si. O termo "cessão" foi utilizado em acepção ampla, devendo-se entender que a autorização abrangia aforamentos, vendas e doações, conforme provaremos adiante:
Lei orçamentária de 1831.
Art. 51. (...)
14ª Serão postos á disposição das Camaras Municipaes, os terrenos de marinha, que estas reclamarem do Ministro da Fazenda, ou dos Presidentes das Provincias, para logradouros publicos, e o mesmo Ministro na Côrte, e nas Provincias os Presidentes, em Conselho, poderão aforar a particulares aquelles de taes terrenos, que julgarem conveniente, e segundo o maior interesse da Fazenda, estipulando tambem, segundo fôr justo, o fôro daquelles dos mesmos terrenos, onde já se tenha edificado sem concessão, ou que, tendo já sido concedidos condicionalmente, são obrigados a elles desde a época da concessão, no que se procederá á arrecadação.
No ano seguinte se estabeleceu, através da Instrução de 14 de novembro de 1832, no art.4º, os limites fundiários desses terrenos costeiros: 33m para a terra contados da linha do preamar médio ocorrido no ano de 1831. Veremos adiante que apenas em 2004 foi legalizado o conceito de "preamar".
2. O proprietário dos terrenos de marinha no Império (1822-1889)
No início do recém-criado Império Brasileiro, o direito de propriedade imobiliária não estava plenamente estabelecido, tampouco o sistema de transmissão de direitos reais, não obstante a Constituição de 1824 reconhecer a propriedade privada no país.3
Entre 1822 e 1850, todos os imóveis existentes no Brasil (urbanos ou rurais, interiores ou costeiros) eram de domínio eminente do Império, sucessor do Reino Português, outrora proprietário soberano de todas as terras do Brasil colonial. Naqueles anos havia no país, do ponto de vista jurídico, tão somente posseiros imobiliários, com ou sem justo título aquisitivo possessório tais como cartas de sesmaria, cartas de datas, concessões régias, contratos particulares de cessão de direitos, formais de partilha, etc.
A propriedade particular prevista na Constituição de 1824 seria, então, a reconhecida legalmente pela Lei de Terras (Lei 601/1850), e seu regulamento (Decreto nº 1318/1854), que juntas, estremariam o domínio público do privado de 03 formas:
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legitimando posses primárias ou com justo título, mansas pacíficas, de moradia habitual e produtivas,
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revalidando de forma automática títulos oficiais de concessões de terras anteriores (cartas de sesmaria ou de data, doações régias etc) não cancelados oficialmente (pena comisso por descumprimento de encargo).
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concedendo títulos de propriedade a posseiros sem justo título que demarcassem suas terras em procedimento judicial, retirando o documeto dominiial na repartição geral de terras.
Naquele ano de 1850, portanto, se inaugurou formalmente a base da cadeia dominial privada e pública do Brasil. Surgiram os primeiros proprietários de imóveis particulares legalmente reconhecidos como tais. Imóveis públicos também foram legalmente discriminados: Eram os de propriedade do Império aplicados a algum uso público nacional, provincial, ou municipal, e os que não foram considerados particulares pela própria Lei de Terras.
Como os terrenos de marinha, pela Lei de 1831, estavam afetados ao uso municipal para construção de logradouros públicos e ao uso das Províncias para aforamento ou cessão isenta de foro, conclui-se que eram bens públicos de propriedade do Império com administração e gestão regionalmente delegada às Provínicias e Municípios (nesse útlimo caso apenas para a construção de ruas).
No ano de 1868 surgiu a primeira grande norma especificamente voltada para o instituto dos terrenos de marinha, o Decreto nº 4.105/1868. A existência e utilidade desses terrenos foi justificada no preâmbulo da lei: fins militares, de servidão pública, alinhamento de edificações e livre acesso a portos e canais navegáveis:
Reconhecendo quanto é importante semelhante concessão, a qual, além de conferir direitos de propriedade aos concessionarios, torna os ditos terrenos productivos e favorece, com o augmento das povoações, o das rendas publicas Attendendo á necessidade de regular a fórma da mesma concessão no interesse, não só do dominio nacional e privado, como no da defesa militar, alinhamento e regularidade dos cáes e edificações, servidão publica, navegação e bom estado dos portos, rios navegaveis e seus braços(...).4
As autoridades com poderes de "conceder" os terrenos de marinha e seus acrescidos eram o Ministro da Fazenda, no Rio de Janeiro, e os Presidentes das Províncias, nas demais localidades do Império, os quais também ficaram encarregados da tarefa de demarcação da LPM, linha do preamar médio. Agiam portanto por delegação legislativa, já que a inexitência de regime federativo não lhes conferia titularidade da propriedade imobiliária pública costeira, que permanecia com o Império.
O conceito legal de terrenos de marinha e seus limites topográficos, adiantados na Lei de 1831, foram estabelecido com mais precisão naquela norma, que seria reproduzida nas legislações posteriores (exceto no período de 1942-1946, quando se alteraram as regras de amarração fundiária):
Art. 1º § 1º São terrenos de marinha todos os que banhados pelas aguas do mar ou dos rios navegaveis vão até a distancia de 15 braças craveiras (33 metros) para a parte de terra, contadas desde o ponto a que chega o preamar médio. Este ponto refere-se ao estado do lugar no rio, tempo da execução da lei de 15 de Novembro de 1831, art. 51. §14 (Instrucções de 14 de Novembro de 1832, art. 4º).
Em outras palavras, seriam considerados terrenos de marinha todos os terrenos (lotes, glebas, porções de terra) compreendidos no intervalo terrestre entre a linha do preamar médio do ano de 1831 e o limite costeiro dos 33 m, faixa de terras que chamarei nesse artigo de “zona de marinha”. O Decreto mencionado definiu também os acrescidos de marinha, que seriam os aterros construídos mar adentro a partir da linha do preamar médio.
O registro público de imóveis havia sido criado em 1864 para controle do sistema hipotecário e nos anos seguintes, passou a servir também como base registral para a transcrição das operações imobiliárias (compra e venda, doação, permuta). Esse sistema não recepcionava operações cadastrais ou cessões de domínio dos terrenos de marinha, as quais eram registradas em sistema cadastral próprio nas repartições do Tesouro.
Logo, a base registral para os terrenos de marinha se formou apartada do registro imobiliário, sendo formada pelo conjunto de plantas cartográficas arquivadas nas repartições estaduais, apresentadas pelos requisitantes dos terrenos ou aterros interessados na concessão. Aprovado o requerimento, era lavrado o contrato de aforamento ou a cessão isenta de foro pelo Presidente da Província ou o Ministro da Fazenda na Corte do RJ arquivando-se o ato em livro próprio.
Aqui surgiu o primeiro grande problema técnico-jurídico relacionado aos terrenos de marinha: a lei possibilitava a prática de cadastramento de imóveis e concessão de títulos sem a efetiva e prévia demarcação da LPM-LLM.
Veremos que no curso da história essa prática se tornou comum com consequências deletérias para todos os envolvidos no parcelamento do solo e na aquisição dos lotes costeiros.
3. Constituição de 1891 - Quem se tornou proprietário dos terrenos de marinha?
A Constituição de 1891 não deixou claro se os terrenos de marinha e acrescidos imperiais pertenceriam à União ou aos Estados no novo pacto federativo, lembrando que os Estados, (sucessores das Provícias) agiam na concessões de terras como delegatários do Poder Imperial, no período anterior:
Art. 64. - Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais. Parágrafo único - Os próprios nacionais, que não forem necessários para o serviço da União, passarão ao domínio dos Estados, em cujo território estiverem situados.
Há registro que o Supremo Tribunal Federal, em 31 de janeiro de 1905, rechaçou pleito dos Estados da Bahia e do Espírito Santo, assentando que os terrenos de marinha eram bens de domínio nacional, sobre os quais a União exercia um direito de soberania ou jurisdição territorial, impropriamente chamado de domínio eminente.4 Logo, prevaleceu no âmbito do STF o entendimento de que a Constituição de 1891 federalizou os terrenos de marinha, pois seriam imprescindíveis à defesa do país nos termos do art. 64. da Constituição.
O problema é que a proprietária União continuou praticando não apenas aforamentos mas também alienações de propriedade plena de imóveis localizados na zona de marinha, seja para Estados, seja para Municípios.
O Decreto nº 4105-1868 já mencionado, recepcionado pelo regime constitucional republicano, de fato permitia a concessão de terrenos sem ônus de foro em seu artigo 12, § único, ou seja, o decreto permitia o recebimento de terrenos pelos entes federativos e particulares sem a utilização do sistema da enfiteuse, sendo certo que essas operações se materializavam em contratos de doação, venda ou permuta.
Art. 12. As disposições deste Decreto, na parte relativa aos que emprehenderem aterros e obras sobre o mar, rios navegaveis e seus braços, comprehendem os que, tendo concessão legitima para os ditos aterros e obras, quizerem fazer uso della depois da sua publicação.
§ Unico. Nas concessões feitas sem ônus de fôro, guardar-se-hão as clausulas respectivas. (grifei)
A título de exemplo de concessões sem ônus de foro, em 1911, terrenos marinhos foram doados pela União por meio de escritura pública ao Estado do Espírito Santo, ato autorizado na própria Lei Orçamentária n. 2.356. de 31.12.1910:
Art. 82. É o Governo autorizado: (..)
XXX. A ceder ao Estado do Espírito Santo, sem indemnização, os terrenos que possue no logar Campinho, Vitória, com barracões existentes nos mesmos terrenos, bem como os demais proprios nacionais desnecessários ao serviço federal ;
Operações de mesma natureza ocorreram em diversas outras ocasiões, e o problema que isso acarretou será analisado no tópico seguinte.
4. Antigas alienações de domínio pleno de terrenos de marinha e seu reconhecimento por decretos editados entre 1920 e 1934
Desde sua criação, o instituto dos terrenos de marinha foi moldado para ser submetido, via de regra, ao regime enfitêutico, como forma de gerar rendas de foros e laudêmios para os Estados (no período do Império) e para a União, na República.
O problema é que nos 100 primeiros anos de vigência do instituto, ocorreram operações imobiliárias de venda, permuta e doação de propriedade plena de imóveis pelo Império ou pela União em zona de marinha, seja para outros entes federativos, seja para particulares. Tais operações foram feitas sob a guarida autorizativa do Decreto de 1868 e das leis orçamentárias anuais.
Essas alienações de domínio pleno destacaram de fato e de direito os imóveis do domínio federal, e em muitos casos, criaram cadeias dominiais privadas e alodiais nos cartórios de registro de imóveis, as quais viriam a ser atingidas décadas mais tarde por processos de demarcação da LPM-LLM tardios. Isso ocorreu porque, evidentemente, recebidos os terrenos, Estados e Municípios promoveram loteamentos de toda a ordem alienando os lotes aos particulares, quando não realizaram aforamentos em nome próprio.
Consigne-se que, nas primeiras décadas do século XX, essas operações imobiliárias foram reconhecidas como válidas pelo Decreto 14.595 de 1920, que disciplinava o pagamento de taxas em terrenos de marinha ocupados sem contrato de aforamento, da seguinte forma:
Art. 1º Todos os terrenos de marinhas e seus accrescidos ocupados que possuam titulo de aforamento, arrendamento ou venda, firmados pelo Governo da União ficam sujeitos á taxa de occupação. (...)
Art. 4º São isentos da taxas de occupação: a) os terrenos aforados; b) os que estiverem arrendados por conta da União; c) os que tiverem sido vendidos pela União; d) os que tiverem sido doados pela União aos governos dos Estados ou dos municipios ou particulares. (grifei)
A Lei citada utilizou explicitamente o termo venda e doação e não aforamento, institutos já bem diferenciados pelo Código Civil vigente à época, datado de 1916.
Em 1932 outro Decreto, de nº 22.250, criou a Diretoria de Domínio da União em substituição à Diretoria do Patrimônio Nacional, regulamentando em seu art. 11. os bens de propriedade da União mencionados no art. 66. do Código Civil, convalidando as transferências pretéritas de terrenos de marinha feitas a Estados e Municípios:
Art. 4º A Diretoria de Dominio da União superintende todos os serviços pertinentes aos bens do Dominio da União (art. 66. do Codigo Civil), a saber: (...) d) os terrenos de marinha e seus acrescidos, os de mangues, e as ilhas situadas no mares territoriais, ou não, e que não estejam incorporados ao patrimonio dos Estados ou Municipios; (grifei)
Dois anos mais tarde, o Código de Águas 6 também reconheceu a titulação de particulares sobre terrenos de marinha, dispondo da seguinte maneira:
Art. 11. São públicos dominicais, se não estiverem destinados ao uso comum, ou por algum título legítimo não pertencerem ao domínio particular; 1º- os terrenos de marinha;(grifei)
Esses decretos comprovam sem margem para dúvidas que ocorreram validamente transferências imobiliárias plenas de imóveis situados na zona de marinha (primária e acrescida), de propriedade constitucional da União, para Estados, Municípios e particulares.
Em suas defesas judiciais a União costuma a alegar que em tempo algum da história alienou domínio pleno de imóveis situados em zona de marinha e aterros, alegação que não se sustenta, em nosso entendimento.
5. Decretos do Governo Vargas (1937-1946)
As Constituições de 1934 e de 1937 estabeleceram a propriedade da União sobre os bens "definidos nas leis em vigor". As leis em vigor para terrenos de marinha, na época, eram o Código de Águas, e os Decretos de 1920 e de 1932 e a legislação imperial, na parte não revogada expressa ou tacitamente, em especial o Decreto de 1868.
A análise conjuta dessas normas deixa claro que os terrenos de marinha seriam de propriedade da União se não pertencessem a terceiros por título legítimo, ou seja, título de alienação de propriedade outorgado pela própria União (venda, permuta ou doação).
Ocorre que, no ano de 1938, surgiu um imbróglio jurídico envolvendo terrenos de marinha e acrescidos, com repercussões que chegaram aos nossos dias.
Vivíamos a Ditadura de Getúlio Vargas, no contexto de eclosão da 2ª Guerra Mundial, com ameaças de invasão à costa brasileira pelos países do Eixo, e com a descoberta de areias monazíticas7 nas praias do Espírito Santo contendo tório, material utilizado na indústria nuclear. Diante desse cenário estratégico, surgiram dois decretos em clara antinomia com a legislação anterior:
O primeiro, em 1938 (Decreto-Lei nº 710) e o segundo, em 1940 (Decreto-Lei 2490) dispuseram que a União não reconhecia nenhum título de domínio particular sobre imóveis localizados em terrenos de marinha e aterros acrescidos. Além disso, o primeiro decreto estabelecia o monopólio da União na arrecadação dos foros desses terrenos e obrigava a União a registrar seus imóveis, inclusive os situados em zona de marinha, no registro público. Os decretos não mencionavam sobre o não reconhecimento de títulos dominiais de Estados ou Municípios.
O fato de a União "declarar" em lei (sic) não reconhecer títulos particulares de propriedade de imóveis na zona de marinha, evidentemente não retirava a validade desses títulos, já que o direito de propriedade privada, em todas as Constituições e leis ordinárias de nossa história, sempre foi resguardado de expropriações sumárias sem devido processo legal, a ponto da legislação patrimonial subsequente, de 1946, trazer dispositivo específico assegurando que qualquer disputa de propriedade, servidão ou posse entre particular e a União seria da alçada do Poder Judiciário:
DL 9.760/1946, Artigo 105, Parágrafo único. As questões sobre propriedades, servidão e posse são da competência dos Tribunais Judiciais.
Mas a confusão jurídica estava criada, e em 1943 foi editado o Decreto nº 5666, que tentou remediar a situação de confusão dominial de forma bastante heterodoxa:
Art. 7º Ficam confirmadas as concessões havidas, até a data da vigência do presente decreto-lei, dos terrenos que os Estados ou Municípios tenham aforado por supô-los de sua propriedade, desde que os foreiros, dentro de seis meses, regularizem a situação perante o Domínio da União.(grifei)
A emenda saiu pior que o soneto, e antes que se definisse a validade desses dispositivos legais, alterou-se o regime constitucional e a legislação patrimonial da União.