Da imprescritibilidade dos bens públicos e a supremacia do interesse público

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A supremacia do interesse público quando aplicada aos casos de usucapião de bem público, se refere em verdade, a uma imposição legal que objetiva a defesa da administração pública, diferindo-se, portanto, do interesse subjetivo da coletividade.

Em decorrência da historicamente almejada condição ponderada entre o absolutismo da propriedade liberal e a sua negativa, fora deflagrada a ideia de função social da propriedade, o que ocorreu ao lado de limitações tradicionalmente impostas, sem, no entanto, se confundir em qualquer momento com elas. Diante deste fato, os novos conceitos instituídos pelos doutrinadores contemporâneos, impingiram a necessidade do atendimento a deveres sociais ínsitos à propriedade, eis que a partir de então, esta não deveria mais servir apenas aos interesses egoísticos dos indivíduos, mas sim, ser disciplinada em observância ao interesse de todos [1].

Com base em tal premissa e em decorrência lógica da necessidade de atender o interesse da coletividade, a propriedade não mais limitou-se a satisfação dos anseios do seu proprietário, tendo em vista que tal concepção deixou de encontrar amparo no ordenamento jurídico, especialmente, diante dos novos contornos que passaram a ser implementados pela Carta Magna, que instaurou uma nova ordem normativa, agora muito mais voltada a satisfação dos interesses da coletividade.

Por esta perspectiva, o direito de propriedade passou a sofrer algumas limitações, de tal sorte que os seus carácteres absoluto, exclusivo e perpétuo cederam lugar ao princípio da função social da propriedade, atualmente cerne do sistema jurídico, podendo-se afirmar que em decorrência de tal princípio, se existe algo de absoluto na propriedade, tal se trata justamente, da sua função social.

Nesse sentido, dispõe o Código Civil em seu art. 1.228:

“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”

Assim, destaque-se que, muito embora seja positivado em nosso ordenamento jurídico, o direito de propriedade não é absoluto, pois tal direito tem como requisito essencial à sua imprescritibilidade o seu uso social, sendo tal condicionante uma forma de garantir os interesses coletivos em face do individual. Imprescindível, portanto, a análise do Art. 5º, nos incisos XXII e XXIII da CF 88, respectivamente que dizem que:

(...)

XXII - é garantido o direito de propriedade;

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

(...)

Nesse sentido, importante ainda trazer à colação a percepção de Eros Roberto Grau sobre a matéria:

“O princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem, e não apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte de imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não puramente, de não fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade [2] ”.

Nossa Carta Magna também manteve à Propriedade a sua função social, como um dos princípios conformadores da ordem econômica, ao prever no Artigo 170, que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade;

(...)

Tem-se ainda que, a propriedade imóvel assim como fator de conformação econômica é também de relevante importância para a sociedade no que tange ao crescimento desordenado da população urbana, envolvendo, inclusive, questões de uso e moradia, sendo, assim essencial sua abordagem em termos de finalidade e utilidade social.

Neste sentido, o Código Civil em seus artigos 1.238 a 1.244, regulamenta a ação de Usucapião, a qual positiva o princípio da função social da propriedade, em que o possuidor adquire o domínio da propriedade, a partir do cumprimento dos requisitos legais, sendo tal instrumento jurídico não um deslegitimador do direito à propriedade, mas sim, um tributo à posse e à função social dada a propriedade aquele que a possui.

Entretanto, por meio de imposição estatal foram criadas previsões constitucionais para que tal instrumento legitimador da função social da propriedade se restringisse apenas ao âmbito privado, não sendo, portanto, passíveis de usucapião, os bens públicos nos termos dos artigos 193, § 3º e 191, parágrafo único, ambos da Constituição Federal, bem como nos termos do art. 102, do Código Civil e Súmula 340, do STF. II – “O princípio da função social da propriedade não possui o condão de afastar a imprescritibilidade dos bens públicos, expressamente prevista no texto Constitucional”.

A vedação absoluta da aquisição por usucapião de bem público, tem como premissa o dito “princípio” da supremacia do interesse público, em que se tem como base, a ideia de que conflitos entre interesses individuais e coletivos devem resultar em “regra” da prevalência do coletivo em detrimento do interesse individual.

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Nesse sentido Maria Silva Zannela Di Pietro [3], afirma que:

“a ideia de função social, envolvendo o dever de utilização, não é incompatível com a propriedade pública. Esta já tem uma finalidade pública que lhe é inerente” (...)

No entanto, ao nosso sentir, a afirmação de Zannela Di Pietro é um tanto quanto equivocada, pois não há como se reconhecer que um imóvel em pleno abandono esteja cumprindo com sua função social pelo simples fato de pertencer à administração pública. Nesta toada, cumpre destacar que, a ideia de função social é muito mais abrangente, devendo, portanto, ser efetivamente consideradas as minúcias do caso concreto, no que diz respeito à utilização e destinação que o poder público está dando ao referido imóvel.

Celso Antônio Bandeira de Mello [4] adota uma concepção contraditória, eis que, primeiramente, impõe como premissa uma ideia unitária de interesse público, no sentido de que “o interesse público deve ser conceituado como interesse resultante dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade, e pelo simples fato de o serem” [5], sendo que, em afirmação posterior, acaba por sobrepô-los, de modo a fazer prevalecer o princípio do interesse público sobre o particular, ainda que tenha afirmado existir composição de interesses individuais na formação do interesse coletivo.

Vejamos então o questionamento de Gustavo Benimbojm [6], no que diz respeito à concepção supra de Celso Antônio Bandeira de Melo:

"Mas qual seria a justa medida da prevalência de um sem que haja a ablação total do outro?"

Nesta esteira, tem-se nas palavras de Humberto Ávila um ponto de vista plenamente lógico e racional a respeito da impossibilidade da sobreposição de princípios, senão vejamos:

“Não há como conciliar no ordenamento jurídico um “princípio" que, ignorando as nuances do caso concreto, pré-estabeleça que a melhor solução consubstancia-se na vitória do interesse público. O "princípio" em si afasta o processo de ponderação, fechando as portas para os interesses privados que estejam envolvidos” [7].

Dito isto, há de se concluir que, realmente visto dessa maneira, o dito “princípio” da soberania do interesse público, acaba por estabelecer uma dicotomia dentro do sistema jurídico, eis que até onde se sabe, não existe supremacia entre princípios, já que se trata de normas de otimização concretizáveis à medida das ocorrências fáticas e jurídicas, que não prescindem da técnica da ponderação.

Cumpre ainda trazer a baila o Recurso Extraordinário, RE 148754 - RTJ 150/888, 891, de relatoria do Ministro Carlos Velloso, no qual o poder público propõe ação para a ampliação do prazo para a propositura de ações rescisórias, objetivando a ampliação do seu prazo decadencial de dois para cinco anos, momento em que, sabiamente, a Suprema Corte julgou pela desnecessidade ou inexigibilidade da medida com base nos princípios da isonomia, da razoabilidade, da proporcionalidade e da “supremacia do interesse público”.

Da análise do julgado pode-se inferir que o interesse coletivo e o interesse da administração pública são interesses distintos, pois o referido decisum prolatado se utilizou de princípios constitucionais, dentre os quais, a própria “supremacia do interesse público” em detrimento do poder público, sendo inoportuna, portanto, a sobreposição desproporcional de interesses no que tange aos bens da administração pública, principalmente, à imprescritibilidade dos bens públicos, os quais invariavelmente, não seguem as regras impostas aos particulares dentro do nosso ordenamento jurídico.

Assim, se infere de todo o exposto, que a supremacia do interesse público aplicada aos casos de usucapião de bem público, se refere em verdade, a uma imposição legal que objetiva a defesa da administração pública, diferindo-se, portanto, do interesse subjetivo da coletividade, cabendo ainda concluir que, mesmo que a supremacia do interesse público fosse de fato um “principio”, tal em hipótese alguma poderia ser absoluta.

Por fim, imprescindível, portanto, que no caso concreto, o dito “princípio” seja submetido ao processo de ponderação, processo esse inerente aos princípios constitucionais, o que se difere totalmente da nossa realidade normativa e jurisdicional, a qual se utiliza de imposições constitucionais mesmo que pouco fundamentadas para sobrepor o interesse coletivo em detrimento do individual, mesmo que tal sobreposição quando aplicada de forma absoluta seja plenamente contestável, contestabilidade esta a ser inferida das minúcias do caso concreto.

Referências:

[1] Cf. PIETRO BARCELLONA, apud, GRAU (2005:114).

[2] GRAU, Eros Roberto, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 - 15ª Ed. 2012.

[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função Social da Propriedade Pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, no. 6, 2006.

[4] DE MELO, Celso Antônio Bandeira, O Conteúdo do Regime Jurídico-Administrativo e seu Valor Metodológico. Revista de Direito Público, vol. 2, 1967, p. 45-7.

[5] DE MELO, Celso Antônio Bandeira, Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros. 2003, p. 53.

[6] BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de Proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. Rio de Janeiro: Malheiros, 2005.

[7] ÁVILA, Humberto. Repensando o Princípio da Soberania do interesse público sobre o particular. Revista Eletrônica Sobre a Reforma do Estado, nº 11, Set/Out/ Nov. 2007. Bahia.


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Sobre os autores
Debora Cristina de Castro da Rocha

Advogada com grande experiência na área do Direito Imobiliário, tendo atuado na defesa de grandes construtoras do país, possui vários artigos publicados. Palestrante, Colunista no site de notícias YesMarilia, Vice Presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Vice Presidente da Comissão de Fiscalização, Ética e Prerrogativas Profissionais da OAB/PR, subseção São José dos Pinhais/PR e membra da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/PR seccional. Especialista em Direito e Processo do Trabalho, Especialista em Direito Constitucional pela ABDConst e Especializanda em Direito Imobiliário Aplicado pela EPD.

Edilson Santos da Rocha

Graduando em Direito pela IEL - Instituto Euvaldo Lodi do Paraná. Pós Graduando em Direito Tributário e Processual Tributário pela Escola Paulista de Direito – EPD. Graduado em Tecnologia de Fabricação Mecânica. Estagiário de Direito no Escritório de Advocacia ATOS Advogados, com atuação no Direito do Trabalho, Direito do Consumidor, Direito de Família, Direito Penal, Direito Civil, Contratos e Direito Imobiliário.

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