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A fundamentação das decisões jurisprudenciais e o sistema de precedentes.

Uma abordagem crítica sobre os artigos 926 e 927 do CPC/2015 e as súmulas na justiça brasileira

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03/06/2017 às 08:38

Resumo:


  • A realidade sociopolítica brasileira reflete a interação entre Estado Democrático e Estado de Direito, culminando no Estado Constitucional que busca a satisfação das necessidades humanas e a organização do poder estatal e político com fundamentos democráticos.

  • A Constituição Federal de 1988 marcou a transição do Estado Liberal para o Estado Social, enfatizando a garantia e promoção dos direitos, e a jurisprudência brasileira tem se aproximado da tradição do common law, especialmente com a inclusão da teoria dos precedentes judiciais no Código de Processo Civil de 2015.

  • O CPC/2015 estabelece a importância dos precedentes judiciais no ordenamento jurídico nacional, visando a efetivação dos direitos fundamentais e a observância de valores e regramentos inerentes aos precedentes, oriundos do common law, na prática das decisões do Poder Judiciário brasileiro.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Técnicas de aplicação de precedentes: Distinguishing e Overruling

Nos sistemas de precedentes, existem técnicas de aplicação e superação que visam a estabilidade e uniformidade do direito, bem como possibilitar seu desenvolvimento. Não se pretende aqui, esgotar o assunto, no entanto, importa o conhecimento do sistema para a elaboração da conclusão almejada neste estudo. Vejamos, portanto:

Distinguishing

Conforme visto acima, só há sentido falar em precedente quando a ratio decidendi puder ser efetivamente aplicada aos futuros casos semelhantes. Deste modo, é necessário que seja realizada uma confrontação entre os fatos materiais do precedente e o fatos do caso sob judice, para então determinar se a ratio decidendi do precedente é adequada como fundamento determinante para a decisão dos fatos do caso em julgamento.

Trata-se de técnica de confronto, interpretação e aplicação dos precedentes, utilizado pelo julgador quando identifica distinção entre as teses do precedente e do caso em julgamento, circunstância em que o magistrado poderá, alternativamente, aplicar o precedente ou interpretá-lo de modo ampliativo ou restritivo, conforme o caso.

Se for verificado que a tese jurídica não abarca todos pontos do caso em análise, o magistrado pode ampliar os limites da ratio decidendi da decisão paradigma (leading case), resultando em uma aplicação ampliativa do precedente (ampliative distinguishing). Quando o precedente for muito amplo e o magistrado entender que peculiaridades do caso concreto impedem a aplicação da tese paradigma, a interpretação poderá ser restritiva (restrictive distinguishing), afastando a vinculação da tese anterior, hipótese em que o processo será julgado sem vinculação ao precedente.

Com o emprego da técnica do distinguishing busca-se demonstrar que o caso em julgamento não possui semelhança fática com o precedente, afastando, assim, a aplicação da respectiva ratio decidendi.

É possível também invocar o distinguishing nas hipóteses em que o caso em julgamento possua fatos semelhantes ao do paradigma, no entanto, há peculiaridades que o diferencia e afasta a aplicação da ratio do julgamento.

A esse respeito, esclarece Marinoni:

O distinguishing expressa a distinção entre casos para o efeito de se subordinar, ou não, o caso sob julgamento a um precedente. A necessidade de distinguishing exige, como antecedente lógico, a identificação da ratio decidendi do precedente. Como a ratio espelha o precedente que deriva do caso, trata-se de opor o caso sob julgamento à ratio do precedente decorrente do primeiro caso[11].

Esta técnica de confronto e diferenciação tem como objetivo revelar a diversidade fática existente entre a ratio decidendi do precedente e do caso em julgamento, evidenciando a inadequação de sua aplicação. Deste modo, busca-se a uniformização do direito, evitando a aplicação cega e automática dos precedentes, possibilitando a justiça no caso concreto.

Importa destacar que a aplicação do distinguishing não significa que o precedente esteja equivocado ou superado, apenas não é adequado para a aplicação no caso concreto em julgamento.

Overruling

A incoerência da aplicação de precedentes socialmente ultrapassados, juridicamente equivocados ou que estejam condenados ao esquecimento por conta da evolução doutrinária, fez com que a doutrina e os próprios tribunais criassem técnicas jurídicas que permitissem a inaplicação de precedentes que, embora se amoldassem à situação fática do caso em julgamento, não apresentariam a melhor solução[12].

Técnica responsável pela maioria dos casos de superação, funda-se na ideia de que os precedentes judiciais estão sujeitos à modificação ou revogação, quando presentes determinadas circunstâncias que a permitam. O overruling pode ocorrer tanto no plano horizontal, em que um órgão revoga seu próprio precedente, ou também no plano vertical, hipótese em que um tribunal superior revoga um precedente de um inferior hierárquico. Trata-se, basicamente, da revogação de um precedente por outro mais adequado ao direito.

O overruling pode ser expresso (express overruling), quando o tribunal declara expressamente a adoção de outro precedente, ou; tácito ou implícito (implied overruling), quando um novo entendimento é adotado sem que haja a substituição expressa. O precedente substituído perde sua força vinculativa, deixando de ser fonte do direito, no entanto, mantém-se válido como precedente persuasivo.

Os efeitos da revogação podem ter eficácia ex tunc (retrospective overruling), hipótese em que o precedente substituído não poderá ser invocado no julgamento de casos ocorridos antes da substituição e que ainda estejam pendentes de apreciação e julgamento. Poderá ter, ainda, eficácia ex nunc (prospective overruling), instituto do direito estadunidense que comporta duas classificações, a saber:

Revogação retrospectiva pura, com eficácia retroativa plena (full retroactive application)[13], pela qual o novo precedente se aplica aos fatos ocorridos antes e depois de sua publicação, incluindo os que já foram objeto de sentença transitada em julgado e também aos fatos do caso que o gerou, e;

Revogação retrospectiva clássica, com eficácia retroativa parcial (partial retroactive application), em que o novo precedente se aplica aos fatos ocorridos antes e depois de sua publicação, excluindo aqueles que já foram objeto de sentença transitada em julgado e também aos fatos do caso que o gerou.

Serão alvos de superação precedentes que apresentarem perda de congruência social, ou seja, passarem a contrariar proposições morais, políticas e de experiência, tornando-se inexequíveis ou obsoletos; da mesma forma, os precedentes que apresentarem inconsistência sistêmica, deixando de guardar coerência com outras decisões ou, ainda, quando surgir nova concepção teórica ou dogmática jurídica, alterando-se o entendimento a respeito de determinada questão ou instituto jurídico, situações também conhecidas como bad law.

A superação de um precedente deve ser justificada por larga e profunda argumentação, visto seu potencial impacto na estabilidade, isonomia, confiança e redução na possibilidade de previsão.


Superação de precedentes judiciais: Technique of Signaling, Transformation e Overriding

As relações sociais são dinâmicas e adaptar a jurisprudência a essas mudanças é fundamental para mantê-la estável. Considerando que o objetivo do precedente é garantir estabilidade e segurança jurídica, a revogação de uma tese jurídica anterior somente será considerada se for constatado que o entendimento está equivocado ou se o Poder Judiciário, por meio de suas decisões, acrescentar valores ou circunstâncias que tornam o precedente obsoleto e inaplicável.

Assim, quando é identificado que um precedente esteja passível de superação, alguns critérios devem ser seguidos para que seja garantida a estabilidade, a segurança jurídica, a igualdade e a confiança.

Veremos, a seguir, as características de cada uma delas.

Signaling

A técnica da sinalização (technique of signaling) consiste na indicação da desatualização de um precedente, que embora não esteja superada, será futuramente. É utilizada nas hipóteses em que o tribunal, ao analisar um caso concreto, identifica que o conteúdo do precedente está equivocado ou não deve ser observado mais, contudo, para que não haja impacto à segurança jurídica ou cause surpresa ao jurisdicionado, o juiz decide apontar a perda de consistência do precedente e sinaliza a sua futura revogação.

Neste diapasão, Luiz Guilherme Marinoni esclarece:

Objetiva-se comunicar que o precedente, que até então orientava a atividade dos jurisdicionados e a estratégia dos advogados, será revogado, evitando-se, com isso, que alguém atue em conformidade com a ordem estatal e, ainda assim ou por isso mesmo, seja prejudicado em seus negócios ou afazeres ou, em suma, em sua esfera jurídica. Frise-se que os litigantes, no caso concreto em que se faz a sinalização, não são pegos de surpresa, já que a decisão é orientada pela ratio decidendi em vias de revogação, tudo em respeito à confiança na autoridade dos precedentes judiciais[14].

O signaling é, em síntese, um sinal da iminência do overruling, cujo objetivo é conceder segurança jurídica aos jurisdicionados, evitando a superação repentina do precedente, ou seja, em vez de simplesmente proceder a revogação do precedente, sinaliza-se que para casos vindouros novo entendimento será adotado.

Transformation

A técnica da transformação (transformation) é utilizada para adequar uma decisão proferida de modo incompatível com a ratio decidendi do precedente, bem como quando a corte, tacitamente, revoga uma doutrina pré-estabelecida em decorrência de uma doutrina anterior a ela, formulada em julgamento anterior. Busca-se, portanto, a compatibilização da solução do caso com o precedente transformado ou reconstruído, conferindo relevância aos fatos considerados como obiter dicta.

Em outras palavras, conclui-se que houve erro na argumentação, com fundamento equivocado na tese do precedente, no entanto, o resultado está correto.

Overriding

Técnica utilizada para limitar ou restringir a incidência de determinado precedente, pela existência de um precedente posterior, ou seja, a superação parcial do precedente anterior.

Ocorre o overriding quando o órgão jurisdicional limita o âmbito de incidência de um precedente, em função da superveniência de uma regra ou princípio legal. Assim, o magistrado deixa de adotar um precedente, em tese, aplicável, livrando-se do seu poder vinculativo e possibilitando a compatibilização do precedente com um entendimento posteriormente formado.

Embora a dinâmica dos institutos se assemelhem, o overriding se diferencia da transformação porque a primeira é uma superação parcial, enquanto na segunda é total. No entanto, o overriding se aproxima mais do distinghishing do que com a revogação parcial, pois, apesar do resultado do caso em julgamento ser incompatível com a integralidade do precedente, a restrição se funda em situação relevante que não estava envolvida no precedente.


A INFLUÊNCIA DA common LAW NA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA

Por razões histórico-culturais, o Brasil herdou do reino português a tradição do civil law, modelo que predominou por muito tempo no país, com a nítida característica da rígida submissão do magistrado à lei.

Nos atuais dias, essa percepção deve ser mitigada, pois o Direito brasileiro tem revelado que temos incorporado uma série de diretrizes e institutos próprios do Direito anglo-saxão.

A título de exemplo da incorporação de institutos diversos, podemos citar que temos um direito constitucional inspirado no modelo norte-americano, um direito infraconstitucional inspirado na família romano-germânica, controle de constitucionalidade difuso baseado no judicial review estadunidense e o concentrado com base no modelo austríaco, amplas codificações legislativas decorrente do civil law e, por fim, um novo sistema de valorização dos precedentes judiciais espelhados no common law.

Deste modo, é evidente que o Brasil vem adotando a teoria do stare decisis, embora esteja imerso à tradição jurídica do civil law, é inegável o caminhar ao encontro da sistemática de precedentes própria da tradição jurídica anglo-saxã, fato que nos coloca entre os dois extremos, por outro lado, possibilitando o aperfeiçoamento de nossa experiência ao incorporar institutos das duas tradições jurídicas.

Contudo, merece atenção o fato de que o precedente representa um ponto de partida para a análise e julgamento do caso concreto e não uma restrição ao poder de julgar, fato que representa fundamental distinção entre o stare decisis e a súmula vinculante aplicada no direito nacional (art. 489, II, CPC/2015).

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Deste modo, importa destacar que a ratio decidendi do stare decisis não tem correspondência no processo civil adotado no Brasil, visto que não se confunde com a fundamentação e com o dispositivo.

Por fim, revela-se como importante ressalva que no direito brasileiro, nem sempre a ratio decidendi é estabelecida a partir dos fatos, pois, há decisões que se destinam a interpretar questões relativas à lei federal, à Constituição Federal e outras a oferecer as razões pelas quais determinada norma é inconstitucional ou constitucional[15], diversamente do que ocorre nos Estados Unidos e na Inglaterra.

Quando se estuda a força vinculativa dos precedentes judiciais, é preciso investigar a ratio decidendi existente na fundamentação dos julgados anteriores. Assim, as razões de decidir do precedente é que operam a vinculação, que por indução, podem ser aplicadas aos casos semelhantes.

Destaca-se, portanto, independente da exigência constitucional para que a decisão judicial seja devidamente fundamentada, é preciso que o órgão jurisdicional tenha cautela na elaboração da fundamentação dos julgados, pois, determinada a ratio decidendi, dela será possível extrair uma norma jurídica a ser observada em outras situações.

Como já mencionado alhures, o sistema de precedentes possui como núcleo a ratio decidendi. Logo, um ordenamento jurídico que adote esse sistema, deve levar em consideração a necessidade de que as decisões judiciais precisam demonstrar, de modo claro e inequívoco, a razão pela qual o julgador decidiu de determinada forma.

Ao interpretar a lei conforme à Constituição ou a reputa inconstitucional, o juiz cria uma norma jurídica para justificar a sua decisão. Essa norma contida na fundamentação do julgado compõe o que se chama de ratio decidendi, a qual trata-se de uma norma jurídica criada diante do caso concreto, mas não uma norma individual que regula o caso concreto, e que, no entanto, pode se tornar regra geral ao ser invocada como paradigma para outros casos.

Considerando que o convencimento do magistrado normalmente está fundado em um juízo de verossimilhança ou na ideia da verdade possível, impõe-se ao magistrado o dever de dar legitimidade à sua tarefa, ou seja, de justificar a formação da sua convicção para cada decisão. Em outras palavras, fundamentar é explicar a convicção e a decisão dela decorrente.

Importa destacar a essência trazida pelo CPC/2015, visto que procura combater a prática comum observada na prestação jurisdicional as decisões em que se invocam, na análise das questões jurídicas, somente precedentes jurisprudenciais, transcrevendo-se, muitas das vezes, apenas as respectivas ementas no corpo do julgado.

Com o intuito de evidenciar o regramento a respeito da obrigatoriedade da fundamentação das decisões judicias, importa trazer à baila o princípio que rege tal instituto, é o que veremos a seguir.

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Sobre o autor
Jefferson Alexandre da Costa

Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP; Pós Graduado em Ciências Jurídicas, Pós-Graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil, Pós-Graduado em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho; Graduado em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pela Unicsul. Consultor Jurídico. Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Jefferson Alexandre. A fundamentação das decisões jurisprudenciais e o sistema de precedentes.: Uma abordagem crítica sobre os artigos 926 e 927 do CPC/2015 e as súmulas na justiça brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5085, 3 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58102. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Artigo desenvolvido para apresentação em seminário no Mestrado em Direito do Trabalho na PUC/SP.

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