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O paciente terminal e o direito de escolha

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07/06/2017 às 10:40
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Qualquer interferência do Estado, de grupos religiosos ou filosóficos sobre o direito de dispor da própria vida é autoritária, pois não há nada que assegure que os seus valores são melhores ou superiores aos do enfermo em estado terminal.

INTRODUÇÃO

Brittany Maynard foi diagnosticada, no final de 2013, como portadora de uma forma grave de câncer no cérebro, conhecida como Globlastioma. Com vinte e nove anos, ela anunciou, por meio das redes sociais, que cometeria suicídio com ajuda médica no dia 1º de novembro de 2014. Para concretizar o seu objetivo, ela se mudou com o marido para o Estado americano de Oregon, que permite o auxílio médico voltado ao suicídio de pacientes terminais. No dia 03 de novembro de 2014, ela cometeu o suicídio anteriormente anunciado[1].

O transexual belga Nathan Verhelst nasceu menina, tendo recebido o nome de Nancy. Entre os anos de 2009 e 2012, ele se submeteu a três cirurgias fracassadas de mudança de sexo. Depois disso, foi diagnosticado como portador de sérios problemas psicológicos. Como a Bélgica legalizou a eutanásia em 2002, ele recebeu eutanásia com ajuda médica em setembro de 2013[2].

Os dois casos acima chamam atenção, uma vez que o ser humano, ao longo da história, vem demonstrando dificuldade em lidar com uma realidade que ele tem bastante dificuldade em aceitar, qual seja: a vida é finita, a morte é uma certeza, a existência de cada ser humano cessará, o ato de respirar, que sinaliza a presença da vida, um dia não mais ocorrerá e a morte, tão temida e inaceitável, tornar-se-á uma realidade.

A morte, assim como a vida, faz parte de um processo mais amplo, sendo elementos naturais que compõem faces oposta de uma mesma moeda e precisam ser encaradas como partes complementares do processo vital.

Os seres humanos parecem estar programados apenas para viver. Aceitar a morte como algo natural é um comportamento difícil. No entanto, como a morte é certa, é preciso que as discussões a respeito dela não sejam ignoradas, pois o funcionamento integrado do corpo, comandado pelo cérebro, um dia cessará.

Tendo em vista que a morte dita natural normalmente é antecedida por um processo degenerativo, no qual o vigor outrora existente desaparece, é importante que se discuta o tratamento que deve ser ofertado aos indivíduos que, embora ainda vivos tecnicamente falando, não se encontrem mais em condições que lhe permitam ter prazer em sua existência, de sorte que a abreviação do ciclo vital passa a ser um desejo de primeira ordem.

É nesse contexto em que o estar vivo passa a ser um fardo insuportável para o indivíduo, que se colocam as discussões em torno da legitimidade de extirpação da vida com ou sem auxílio de outrem, como forma de aplacar o sofrimento[3]. Trata-se de uma temática em que valores de cunho religiosos ou filosóficos muitas vezes contaminam o debate, mas que, não obstante isso, precisa ser enfrentada com serenidade, uma vez que qualquer ser humano poderá se deparar um dia com esses questionamentos e, uma discussão com parcimônia e sem preconceitos é o que nos propomos a fazer nas linhas subsequentes.


1 VIDA: DIREITO OU DEVER DO SER HUMANO?

A vida vem sendo colocada, ao longo do tempo, em especial depois que a Cultura Judaico-Cristã se tornou hegemônica no Ocidente, como um direito sagrado e inerente ao homem por natureza, não podendo ser objeto de disposição nem mesmo pelo detentor dela.

A doutrina do Direito Natural contribuiu de forma marcante para esta visão. A vida, segundo o Jusnaturalismo de inspiração Cristã, é um direito pré-constitucional, absoluto e inalienável, sendo um legado da Divindade, somente podendo ser por Deus suprimido, no momento em que Ele entender adequado.

A morte é vista como um intruso no processo vital, que deve ser combatida a todo custo e, como não pode ser evitada, procura-se ignorá-la sempre que possível.

Com isso, dentro da cultura ocidental, formou-se uma concepção que encara a morte como um símbolo de fragilidade, buscando-se ocultar a sua ocorrência, mediante a colocação do moribundo em instituições fechadas, nas quais o processo de morrer[4] será concretizado longe dos olhos dos demais indivíduos, formando-se em torno da morte um ambiente sob o controle absoluto dos profissionais de saúde.

Sendo a morte um acontecimento que expõe a fragilidade do ser humano, que se submete a uma ocorrência por ele rejeitada ou mesmo ignorada ao longo de sua existência, a formação dos profissionais de saúde na cultura ocidental tende a estimular ao máximo o prolongamento artificial da vida, mesmo quando não há qualquer possibilidade de reversão do quadro clínico do paciente.

Com isso, a morte, de acontecimento natural, torna-se um fardo para o paciente que, não obstante os sofrimentos padecidos, vê-se forçado a manter uma existência indesejada, de sorte que a sua morte se torna algo bastante almejado que, não obstante isso, é inviabilizada por tratamentos médicos inúteis no que se refere a manutenção de vida com qualidade para o enfermo. Nesse contexto, merece transcrição as reflexões de PERALES (2009, p. 155)[5]:

A ciência médica, com suporte nos avanços tecnológicos, tem conseguido prolongar a vida de determinados pacientes, até o ponto no qual antes da morte biológica é produzida uma espécie de morte social – tradução livre.

Logo, aquele bem jurídico que a princípio era um direito que não deveria ser tocado pelos demais, torna-se um dever, um fardo insuportável, que transforma a continuidade do existir em um tenebroso pesadelo, do qual o paciente somente anseia se libertar, mediante um natural processo de morrer.

É preciso, portanto, destacar que a atuação médica sobre o processo de morrer precisa ter limites. Não se pode deixar que os avanços dos conhecimentos médicos, que deveriam somente trazer benefícios para a humanidade, transformem-se em instrumentos de tortura para os que se encontram numa situação de irreversível quadro clínico, sendo a atuação médica capaz apenas de prolongar a inevitável ocorrência do óbito do paciente.

Assim a morte, que no passado era vista de forma mais natural, não raras vezes ocorrendo enquanto o enfermo se encontrava em seu lar, ladeado por amigos e familiares, em decorrência dos avanços dos conhecimentos médicos e de preconceitos de cunho filosófico-religiosos, tem cada vez mais se tornado num acontecimento doloroso, não apenas sob o aspecto físico,  mas especialmente sob o psíquico, pois não se pode dizer que dizer que o isolamento do enfermo em centros de tratamento intensivo, por longos anos, com prejuízo também para o bem estar dos seus familiares, seja uma conduta aceitável.

A conservação da vida passa a ser um dever, obrigando os profissionais de saúde a se utilizarem de todos os meios possíveis para a manutenção dela, mesmo que a qualidade existencial do paciente esteja profundamente prejudicada. Isso é algo que necessita ser repensado, de forma que as discussões em torno da ocorrência do processo de morrer sejam enfrentadas com seriedade e sem preconceitos.


2 ANTECIPAÇÃO DO PROCESSO DE MORRER: UM BREVE HISTÓRICO [6]

A antecipação do processo de morrer ao longo da história já foi tratada de forma mais natural por alguns agrupamentos humanos. Entre os povos primitivos, os indivíduos enfermos, assim como os débeis e idosos, eram sacrificados em rituais não raras vezes bastante violentos. Os celtas, por exemplo, matavam os pais quando estes não mais tivessem serventia, enquanto na Birmânia velhos e deficientes eram enterrados vivos. Entre os esquimós, os parentes com doenças incuráveis eram mortos.

Como as condições de vida eram bastante difíceis nos primórdios, a manutenção de seres improdutivos no meio de grupo social tornava-se um fardo para a comunidade que seria obrigada a dividir o escasso alimento com outros que não se encontram em condições físicas de contribuir com a manutenção de grupo. Dessa forma, o sacrifício dos incapazes era social e economicamente aceitável, uma vez que a subsistência em tempos de escassez de alimentos dependida da contribuição de todos os integrantes do agrupamento humano.

Na Antiguidade, entre os romanos, o suicídio de doentes não somente era permitido, como também era culturalmente estimulado. Na Idade Média, mesmo com toda a influência da Igreja Católica no período, em batalhas, aos soldados feridos era entregue, como ato de misericórdia, um punhal para que eles cometessem suicídio. Logo, não era eticamente permitido que um terceiro matasse o combatente ferido, pois isso seria considerado um homicídio. No entanto, não se condenava a entrega dos meios necessários para que o soldado pudesse colocar fim à sua existência.

Durante o regime Nazista na Alemanha, colocou-se em prática o Programa Aktion T4. Baseado nele, procedeu-se a eliminação sistemática de deficientes e pacientes incuráveis em nome da higienização social, uma vez que apenas alemães saudáveis poderiam existir na sociedade perfeita idealizada por Adolf Hitler.

Em 1991, o papa João Paulo II publicou a Encíclica “Evangelium Vitae”. Por meio dela, a Igreja Católica referendou o comportamento dos seus fiéis que optarem pela renúncia a tratamentos extraordinários, abdicando, com isso, das práticas médicas utilizadas para prolongamento artificial da vida.

A Colômbia, em 1997, por meio de sua Corte Constitucional, abriu uma exceção no Código Penal, isentando de pena aquele que auxilia ou mesmo suprime a vida de um paciente terminal desde que dele tenha o prévio consentimento. Nesse mesmo ano, o Estado de Oregon nos Estados Unidos da América passou a admitir o fornecimento de pílulas para que pacientes terminais possam cometer suicídio, tendo Brittany Maynard, cujo caso fizemos referência acima, utilizando-se desse permissivo legal.

Em 2001, a Holanda editou a primeira lei destinada à regulamentação da eutanásia na atualidade, tendo tal diploma normativo entrado em vigor em janeiro de 2002.

A Bélgica, por sua vez, legalizou a eutanásia também em 2002 sendo que, até 2014, cinquenta e duas pessoas haviam se submetido a eutanásia por questões psicológicas, tal como fez Nathan Verhelst, a quem também fizemos referência anteriormente.

No Brasil, houve a tentativa de regulamentação da eutanásia por meio do Projeto de Lei do Senado nº 125/1996, de forma que, caso tal projeto houvesse sido aprovado, o Brasil teria assumido a vanguarda na regulamentação do tema. No entanto, tal projeto não avançou no processo legislativo, tendo sido arquivado, em definitivo, em 06 de junho de 2013.

Vê-se, portanto, que as questões envolvendo a antecipação do processo de morrer vem acompanhando a humanidade ao longo da história, já tendo sido encaradas com mais naturalidade em passado distante, sendo que, atualmente, em razão dos avanços dos conhecimentos médicos, tem-se tido mais dificuldades em avançar com serenidade em torno dos pontos envolvendo essa temática.


3 ALGUMAS CLASSIFICAÇÕES[7]

O termo eutanásia, cuja origem etimológica advém dos radicais gregos eu e thanatos, significa boa morte, tranquila e sem sofrimentos. A doutrina costuma dividi-la em voluntária, quando ela é realizada mediante a manifestação de vontade livre, informada e consciente do enfermo a respeito do processo de morrer; involuntária, se praticada sem o consentimento do enfermo, assemelhando-se, em razão disso, ao homicídio; ativa, quando a abreviação da vida do paciente tem como finalidade mitigar os seus sofrimentos, após um pedido expresso dele ou de seus familiares e passiva, que se dá por meio da omissão de um tratamento imprescindível ao prolongamento da vida do paciente.

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Menciona-se, também, a existência da eutanásia de duplo efeito, segundo a qual a abreviação da vida ocorre mediante a utilização de medicamentos que, destinados a aliviar as dores do paciente, são aplicados em doses mais elevadas do que o necessário a sua finalidade primária, provocando, em razão disso, a antecipação da morte do enfermo. Como exemplo, pode ser citada a aplicação de dose de morfina em quantidade superior à necessária ao alívio momentâneo das dores do paciente.

Ao lado da eutanásia em suas diversas formas, é apontada a existência da ortotanásia. Ela consiste no processo que conduz a morte natural pela não utilização ou da interrupção de tratamento terapêutico, cuja aplicação ou permanência seria inútil, em face do quadro irreversível do paciente.

Por outro lado, existe a distanásia, que consiste no prolongamento artificial do processo de morte, com sofrimento do doente, mesmo que os conhecimentos médicos, no momento, não viabilizem qualquer possibilidade de cura.

Já no suicídio assistido, a morte não depende diretamente da ação de terceiro. Ela é consequência de uma ação do próprio paciente, que anteriormente pode ter sido orientado, auxiliado, ou apenas observado por esse terceiro.

Por fim, cabe-nos fazer menção a mistanásia, que ocorre quando o problema de saúde que conduz à morte do paciente não é tratado por uma escolha da sociedade e não do enfermo, em decorrência da prévia opção de uso dos recursos financeiros disponíveis para tratamento de pacientes em melhores condições de retorno a uma vida produtiva.

Existem diversas outras classificações utilizadas pela doutrina para os processos envolvendo a antecipação do processo de morrer. No entanto, reputamos como suficientes aos propósitos deste trabalho as que indicamos acima.  


4 ABREVIAÇÃO DO PROCESSO DE MORRER: ALGUMAS REFLEXÕES

A morte é um acontecimento inevitável na vida dos seres vivos. Por mais que os seres humanos tenham alcançado conquistas em termos de novos conhecimentos, ainda não logrou  - e temos sérias dúvidas se um dia efetivamente conseguirá - extirpar a morte como finalização da existência.

Não obstante haja critérios diversos para a identificação do término da vida[8] e, por consequência, da personalidade jurídica, o Direito Brasileiro, adotou a morte encefálica como parâmetro para declaração de que o sopro vital não mais repousa no indivíduo e a morte pôs fim a sua existência física[9].

No entanto, os avanços da medicina, acompanhado de significativas melhoras dos indicadores socioeconômicos tem possibilitado procrastinar, às vezes por muitos anos, o momento em que a temida morte põe fim a existência do ser humano.

O problema surge, todavia, quando a procrastinação do momento da morte ocorre mediante a utilização e recursos médicos, sem que o indivíduo tenha, por outro lado, qualidade de vida. Isso ocorre, por exemplo, quando em decorrência de uma moléstia grave ou de um acidente, o enfermo passa a ser mantido em estado vegetativo por longos anos, sem ter, sequer, consciência de que ainda se encontra vivo.

Com isso, uma existência, que não tem mais qualquer sentido ou prazer é mantida, com sérios danos para a dignidade do paciente e de seus familiares, que são obrigados a manter o fardo sentimental e, mesmo econômico, em torno de um ente querido que, de fato, não mais existe, estando, apenas, submetido ao processo moderno de mumificação dentro de uma instituição hospitalar. Isso porque, não existe diferença efetiva entre, embalsamar o corpo de alguém e negar-lhe o direito de sepultura e mantê-lo dentro de um hospital submetido à respiração artificial, negando-lhe, com isso, o direito de finalização dos seus sofrimentos, mediante o término do processo de morrer[10].

É preciso que se leve sempre em consideração que “a dignidade da vida deve prevalecer sobre a sacralidade da vida, princípio de origem religiosa.”  E, “para ser digna, a vida há de ter qualidade. A avaliação da qualidade deve ser feita, preferencialmente, por aquele que está sob intenso sofrimento[11].”

Além disso, a inviabilidade da manutenção da vida não ocorre apenas nas situações em que o paciente se encontra em estado vegetativo. Nesses casos, o indivíduo sequer tem condições de decidir a respeito da continuidade ou não do tratamento médico que se encontra sendo-lhe ministrado, ficando aos parentes mais próximos o encargo de por ele decidir pelo prosseguimento (ou não) do tratamento.

Existem casos e, não são poucos, em que o paciente se encontra em plenas condições de decidir a respeito da terapia médica a que deseja ser submetido (ou não), embora já seja portador de uma moléstia no momento incurável pela medicina, cujas perspectivas de futuro são bastante sombrias, tal como ocorria no caso da americana Brittany Maynard, a quem já fizemos menção anteriormente.

Talvez, nesses casos, em que o paciente ainda tem uma certa qualidade de vida, seja ainda mais difícil a aceitação ética da antecipação do processo de morrer. No entanto, é imprescindível que se tenha em mente que cada ser humano deve ser livre para decidir o seu futuro. Não é possível que um terceiro, que não se encontra vivenciando o drama do indivíduo portador de uma moléstia incurável, com perspectiva de intenso sofrimento no futuro, sinta-se no direito de decidir pelo enfermo. Se a vida humana não é propriedade de ninguém, cabe pelo menos a quem a vive decidir se deseja ou não levar adiante a sua existência.

Como bem lembrou Rosa (2010, p. 53),

A dor, parece, atualmente como uma injustiça, intolerável culturalmente... parece que se construiu uma ilegitimidade total da dor. Entretanto, e, em regra, esquece-se que o sentimento perante a dor é individual e se arregimenta um movimento coletivo de a evitar, a qualquer custo, mesmo contra a vontade do sujeito reduzido a objeto. Coloca-se, assim, o sujeito numa posição de objeto incapaz de decidir, de se deixar levar, de ceifar a existência, de dizer chega! Parece que ele não pode mais decidir sobre o fim de sua cadeia prolongada, enfim, de que a dor precisa, necessariamente, ser extinta, extirpada, consumida, prolongada, talvez, quem sabe, no gozo inconsciente de sentir o outro agonizando. Despreza-se o sujeito em nome do discurso de que a vida precisa ir adiante... O sujeito é tolhido de sua liberdade pelo mito coletivo, nas mãos do saber médico especializado, e a um custo econômico muitas vezes absurdo.

A antecipação do processo de morrer precisa levar em consideração a dignidade do enfermo e o direito de cada ser humano poder se autodeterminar. Sem isso, o ser humano deixa de ser sujeito de direitos e passa a ser um mero objeto, exposto às vicissitudes das imposições sociais e da vontade alheia, submetendo-se a padecimentos aos quais ele não pode renunciar, mesmo que disponha de meios para isso.

4.1 Formas de expressão do desejo do paciente

A manifestação de vontade do paciente terminal pode ser expressa, basicamente, por meio de dois instrumentos jurídicos nos países que recepcionam, em seu ordenamento legal, a validade do desejo de antecipação do processo de morrer. São eles: o consentimento informado[12] e o testamento vital[13].

Por meio do consentimento informado, são prestadas ao paciente ou aos seus familiares, todas as informações relativas à gravidade da moléstia, bem como expectativa de sobrevida, deixando ao enfermo ou, em caso de impossibilidade de manifestação dele, aos seus familiares mais próximos, a decisão a respeito de qual atitude tomar em relação ao tratamento da moléstia.

No Brasil, como os processos de antecipação da morte, em especial aqueles que demandam a intervenção de um terceiro (como na eutanásia ativa), são ilegais, o consentimento informado não se presta a tomada qualquer decisão pelo enfermo ou seus familiares. É possível, apenas, recusar tratamentos de cunho mais invasivos, como procedimentos cirúrgicos, por exemplo.

Outro instrumento jurídico possível de utilização seria o testamento vital[14], também conhecido como testamento biológico ou living will. Tal instrumento constitui-se na declaração e vontade de uma pessoa a respeito de como deseja ser tratada quando não mais puder manifestar o seu desejo, objetivando influir numa determinada forma de tratamento ou, simplesmente, de não tratamento.

O testamento vital, por natureza, somente pode ser produzido pelo próprio paciente, quando ainda se encontra em pleno gozo de suas faculdades mentais, tendo condições de decidir livremente. Não é dada a sua utilização por parentes, uma vez que, sendo testamento peculiar, somente o destinatário dos seus efeitos, no caso, o próprio enfermo, pode produzi-lo.

Assim como ocorre no consentimento informado, não é possível ao autor do testamento vital, no Brasil, pleitear uma antecipação do processo de morrer mediante uma intervenção ativa de terceiro. Somente lhe é possível recusar determinadas formas de tratamento, em especial, aqueles de cunho mais invasivos.

No entanto, existe uma diferença fundamental entre o consentimento informado e o testamento vital. No primeiro, a manifestação de vontade somente ocorre quando a moléstia terminal já se encontra instalada no paciente, sendo as informações a respeito dela prestadas, geralmente, pela equipe médica responsável pelo cuidado do enfermo.

Já no testamento vital, não existe a necessidade de que, quando de sua elaboração, o indivíduo se encontre acometido de qualquer moléstia, podendo ele, em pleno gozo de sua saúde, externar o desejo de como gostaria de ser tratado caso venha a ser acometido, no futuro, por uma moléstia grave, que o impossibilite de expor o seu desejo, mediante o consentimento informado. Tal registro, embora não haja previsão na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina, pode ser registrada em Cartório e entregue a guarda de parente ou pessoa de confiança do autor, para fins de utilização se ele não tiver condições de comunicar a sua vontade a equipe médica que dele venha a cuidar no futuro.

Portanto, o paciente terminal, dentro das limitações do ordenamento jurídico que veda os procedimentos ativos de antecipação do processo de morrer no Brasil, pode se utilizar do consentimento informado ou do testamento vital, para renunciar procedimentos médicos de cunho invasivo, voltados a uma protelação, geralmente acompanhada de muito sofrimento, de uma morte inevitável.

4.2 Posições favoráveis e contrárias à antecipação do processo de morrer

A antecipação do processo de morrer é um tema bastante controverso, existindo respeitáveis argumentos favoráveis e contrários a essa conduta. Os que defendem a sua legitimidade ética, sustentam que é necessário respeitar a autonomia do paciente e de seus familiares.

Nessa linha de argumentação, defende-se que, apenas quem se encontra submetido ao sofrimento, tem o direito de se posicionar, validamente, a respeito da manutenção ou não de sua existência. Como já foi ressaltado, o sofrimento é individual, tendo cada ser humano uma forma diferenciada de lidar com ele. Assim, não é legítima a construção de um modelo-padrão de comportamento social a ser respeitado por todos, uma vez que os seres humanos não são padronizados, quer pelo aspecto físico, quer pelo psíquico.

Além disso, os defensores da antecipação do processo de morrer sustentam que a vida e a morte devem ser encaradas como partes complementares de um mesmo processo, sendo a morte o ponto final da existência, do qual o ser humano não pode se furtar. Portanto, sendo a vida finita, não há como se livrar da morte, que inevitavelmente alcança a todos que um dia vieram a existir.

É preciso, por consequência, que se dissemine na cultura, em especial do Ocidente, que a morte não é algo evitável. Ela faz parte do ciclo existencial de todos os seres humanos e cabe a cada um escolher a forma mais digna de recepcioná-la.

Outra questão levantada pelos defensores da legitimidade ética da antecipação do processo de morrer diz respeito aos interesses econômicos envolvidos no prolongamento artificial da vida. Ele, muitas vezes não beneficia o enfermo ou seus familiares. Ao contrário, presta-se, apenas, ao fomento da lucratividade de instituições de saúde e prestadores de serviços que gravitam em torno delas, auferindo lucros acentuados com a prestação de serviços de saúde dispendiosos que, embora possam prolongar a vida do paciente, fazem-no sem garantir qualquer qualidade no existir.

Já os argumentos colocados contra a legitimidade ética da antecipação do processo de morrer são baseados, normalmente, em valores de origem religiosa. Assim, a vida é colocada como um bem supremo, não estando, por consequência, na esfera de disposição do seu titular ou familiares.

Defende-se, nesse mesmo sentido, que o ser humano não pode retirar aquilo que ele não se consegue outorgar. Logo, como ele não pode produzir a vida, da mesma forma não lhe é dado eticamente o direito de suprimi-la.

Argumentam, ainda, os que se opõem a antecipação do processo de morrer que ela pode ocultar interesses econômicos, como o anseio de acesso à herança, libertação de custos com tratamentos de saúde, podendo, ainda, servir ao fomento de tráfico de órgãos.

Os argumentos colocados contra a antecipação do processo de morrer não nos parece consistentes o bastante. Senão, vejamos.

A sacralização da vida, colocada como o bem supremo, que não pode ser objeto de disposição pelo titular, encontra-se imerso em valores religiosos, que não são, necessariamente, compartilhados por toda a humanidade. Quando se lida com valores, não existem aqueles que são melhores ou piores do que os outros. A postura de se afirmar que um determinado arcabouço axiológico é superior aos demais demonstra intransigência e falta de respeito com os demais seres humanos, sendo uma postura autoritária  que não deve receber a chancela de qualquer ordenamento jurídico que se considere democrático.

O argumento de que o ser humano não pode retirar aquilo que não se pode outorgar, também não impressiona. Isso porque, o indivíduo não é objeto da vida, ele precisa ser encarado como sujeito, não podendo, por consequência, ser obrigado a suportar uma existência de sofrimento, sob um pesado fardo por imposição externa, pois se o homem não pode se outorgar a vida, ele também não pediu para existir e não pode ser compelido a levar adiante uma existência na qual ele não ver mais qualquer sentido ou perspectiva de prazer.

Assim, entendemos que o homem é livre para dispor de sua existência. Qualquer interferência do Estado ou de grupos religiosos é ilegítima e autoritária, uma vez que cabe ao indivíduo escolher a forma como deseja viver ou mesmo não viver, podendo lhe ser imposto, apenas, a renúncia a comportamentos que interfiram na vida dos demais seres humanos[15].

Pode-se dizer que o homem é parte de uma coletividade, de forma que a sua existência pertence ao grupo e não somente a ele. Esse posicionamento não pode ser considerado legítimo, pois se encontra contaminado por uma visão totalitária de Estado, na qual o indivíduo, de forma particular, pouco interessa, uma vez que ele é visto apenas como uma peça na engrenagem social, o que anula por completo a sua individualidade, transformando-o em objeto de um bem estar coletivo, que não tem qualquer preocupação com a sua felicidade individual.

Quanto ao argumento de que a antecipação do processo de morrer pode ocultar interesses econômicos de terceiros, que almejam, por exemplo, o acesso imediato à herança ou libertação de custos financeiros com tratamentos médicos, parece-nos o mais frágil de todos.

Isso porque, ele coloca o sofrimento do indivíduo como subalterno a interesses econômicos. A herança, sendo um direito, cedo ou tarde, será transmitida aos sucessores, pois a morte, embora possa ser postergada, é inevitável. Quanto aos custos financeiros com procedimentos médicos, a manutenção da vida sem qualidade ou prazer em decorrência de uma moléstia incurável, não pode se tornar em fonte de enriquecimentos de profissionais de saúde, com o prolongamento de um estado de sofrimento que eles não podem fazer cessar.

No que se refere a um possível estímulo ao tráfico de órgãos, esse perigo pode muito bem ser evitado, caso seja delegada a uma equipe médica e não a um único profissional, a responsabilidade por informar ao paciente o seu real estado clínico e acolher as instruções dele ou dos seus familiares a respeito de como deseja ser tratado. Além disso, a possibilidade da ocorrência de ilícitos não pode relegar o ser humano a um estado de lastimável sofrimento que ele não mais deseja que perdure, pois é responsabilidade do Estado se municiar de mecanismos para combater a criminalidade.

Logo, diante de uma moléstia incurável, somente o paciente, ou, na impossibilidade dele, os seus parentes mais próximos, pode decidir se deseja levar adiante ou não a sua existência. Qualquer interferência do Estado, de grupos religiosos ou filosóficos, é autoritária, pois não há nada que assegure que os seus valores são melhores ou superiores aos do enfermo. Apenas uma postura de arrogância e presunção pode respaldar uma visão contrária, uma vez que valores contra valores constitui um confronto de resultado nulo, pois não existe, em termos empíricos, nenhum valor superior aos demais, haja vista que todos são meros produtos da cultura.

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Sobre o autor
Gilvânklim Marques de Lima

Doutor e mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Juiz Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Gilvânklim Marques. O paciente terminal e o direito de escolha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5089, 7 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58278. Acesso em: 20 abr. 2024.

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