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Acordo de leniência na Lei Anticorrupção e a intervenção do Ministério Público

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08/06/2017 às 17:08
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3. Autonomia constitucional e independência do Ministério Público

Ao dispor sobre o Ministério Público, a Constituição Federal Brasileira preleciona que o MP “é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput, CF).

Para Assunção e Silva (2013), o Ministério Público passou da condição de órgão administrativo (da formatação anterior à Constituição de 1988) para a de instituição política, pois deixou de ser defensor do Estado para agir em defesa dos interesses da sociedade e dos direitos sociais, podendo, a tanto, atuar de forma preventiva ou repressiva.

Entende o citado doutrinador, inclusive, que a Constituição de 1988 “transformou o Ministério Público num verdadeiro poder, ao desvinculá-lo dos outros e prever como crime de responsabilidade do Presidente da República os atos que atentem contra o livre exercício do Ministério Público”

Simbolizado pelo Moisés de Michelangelo (ASSUNÇÃO E SILVA, 2013), o Ministério Público, tal com o libertador dos hebreus recebeu no Monte Sinai as tábuas da lei, recebeu da Constituição Federal a missão de fiscalizar o cumprimento da lei (principalmente da Constituição), devendo defender a ordem pública e também buscar a transformação da sociedade mediante o correto cumprimento da lei.

Efetivamente, os princípios constitucionais que norteiam a morfologia e a atuação do Parquet conferem à Instituição envergadura e musculatura para atuar em prol dos interesses e direitos sociais de forma independente e infensa a injunções e pressões de ordem política ou administrativa.

O princípio da independência funcional significa que o Membro do Ministério Público não se submete a autoridades internas ou externas ou a qualquer tipo de hierarquia, de molde a garantir à sociedade que o agente ministerial atue somente conforme sua própria consciência e de acordo com os ditames legais, na defesa da Constituição e do interesse público (ASSUNÇÃO E SILVA, 2013).

Desse modo, procuradores e promotores são considerados agentes políticos, pois agem como órgãos independentes do Estado, posicionados no topo da esfera hierárquica de suas área de competência – do mesmo modo que os agentes do Executivo, Legislativo ou Judiciário – razão por que decidem com plena liberdade funcional (MAZZILLI, 2007).

Para densificar tal princípio da independência funcional, a Constituição Federal reconheceu aos membros do Ministério Público algumas garantias e vedações, dentre elas a da inamovibilidade do agente ministerial (art. 128, I, 'b', CF), que assegura a permanência do Membro do Ministério Público no órgão de sua titularidade, do qual somente será removido caso o deseje ou, excepcionalmente, de forma compulsória, quando o interesse público o exigir (GARCIA, 2015).

O objetivo da inamovibilidade é o de evitar que pressões externas ao membro ministerial influam sobre sua atuação funcional, de modo a conferir liberdade ao agente ministerial e coartar que os juízos valorativos formados pelo agente sejam norteados pelo receio de ser removido (GARCIA, 2015).

Da Constituição Federal extraem-se outros princípios, garantias e vedações ao Membros do Ministério Público, assim como da legislação orgânica podem-se observar regras procedimentais que colmatam o regime jurídico do Parquet.

Para o presente ensaio, contudo, bastam as considerações antes esposadas para se concluir que o Ministério Público está institucionalmente situado em regime jurídico-constitucional que imuniza tanto a Instituição frente aos demais poderes como os seus agentes individualmente considerados.

Esta imunidade funcional, conjugada ao seu papel de defensor da ordem jurídica e do regime democrático, faz com que o Ministério Público seja considera a agência estatal que menores riscos traz em sua atuação em prol dos interesses sociais, comunitários.

O Ministério Público, posicionado esquematicamente numa relação de agência, tal como a delineamos no item anterior, posta-se como agente da sociedade (principal), ao passo que a Controladoria-Geral da União situa-se como agente do Estado (principal).

A Administração Pública, ao contrário do Ministério Público, irá buscar atingir ou preservar os interesses do Estado, que nem sempre coincidem com o interesse público e social primário. Válida, nesse ponto, a diferenciação entre interesse público primário e interesse público secundário ofertada por Barroso:

O interesse público primário é a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são interesses de toda a sociedade. O interesse público secundário que seja parte da União, do Estado-membro, do Município ou das suas autarquias. Em ampla medida, pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas.

Nessa perspectiva, o Estado nem sempre irá perseguir o chamado interesse público primário, pois, via de regra, contentar-se-á com a satisfação do interesse fiscal e pecuniário, de materialização menos complexa se comparado ao interesse primário, da sociedade.

Ademais disso, os servidores da Controladoria-Geral da União não contam com a independência funcional e com as demais garantias dos agentes ministeriais, situação que não os alberga das ingerências e injunções de ordem política que possam advir de seus superiores hierárquicos.


4. Atuação nas searas criminal e improbidade administrativa

Cabe considerar as atribuições do Ministério Público nos círculos de responsabilização criminal e da improbidade administrativa.

Nos termos do art. 129, inciso I, da Constituição Federal, o Ministério Público é o titular privativo da ação penal pública, o que significa que cabe ao Parquet, unicamente, decidir, frente a uma investigação criminal ou notícia de crime, se instaura ou não a ação penal pública, buscando perante o Poder Judiciário a concretização da pretensão punitiva estatal decorrente da prática do ilícito criminal.

Segundo Garcia (2015), a propositura da ação penal, como projeção da soberania estatal, é atribuição que se confunde com a própria existência do Ministério Público, dístico presente em todos os países que adotaram esse modelo institucional. Tal modelo privilegia o sistema acusatório e preserva a imparcialidade do órgão judicial.

Ao abolir os procedimentos penais ex officio (que podiam ser instaurados e julgados pelo mesmo órgão judicial), assim como os procedimentos judicialiformes (instaurados e instruídos pelo delegado de polícia), a Constituição Federal excluiu a possibilidade de qualquer outra estrutura estatal ajuizar a ação penal pública – assim como a qualquer do povo7.

Decorre da construção constitucional que o Ministério Público será o condutor das ações penais e, por conta disso, o coordenador da fase pré-processual, investigatória, com a finalidade de coletar as provas e evidências pertinentes, adequadas e legítimas para comprovação do fato criminoso e da sua autoria.

A investigação poderá ser conduzida diretamente pelo Parquet, em razão da instrumentalidade da investigação criminal, bem como poderá ser acompanhada a colheita de provas realizada no âmbito do inquérito policial – condição em que o agente ministerial será o coordenador mediato da investigação.

Na fase investigatória, via de regra, a coleta de evidências e provas que constituirão o supedâneo fático para a propositura (ou não) da ação penal perante o Estado-juiz é marcada pelo timbre da sigilosidade, a teor tanto do artigo 20 do Código de Processo Penal.

A segregação da informação quanto aos termos, extensão e objetividade investigadas também decorre, especialmente, de diversas leis esparsas que tratam de medidas investigatórias especiais e invasivas que, in re ipsa, devem ser conduzidas com discrição, sob pena de ineficácia da colheita de provas e elementos de convicção, a exemplo das buscas e apreensões, interceptação telefônica, telemática, infiltração de agentes, etc.

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Consideradas tais premissas, imaginemos um cenário em que determinado fato (ou multiplicidade de fatos) considerado “corrupção”8, envolvendo agentes públicos e privados (estes, na condição de empregados de determinada pessoa jurídica), esteja sendo investigado em inquérito policial sigiloso, acompanhado pelo Parquet, com medidas invasivas autorizadas judicialmente.

Suponhamos que a investigação esteja transcorrendo há significativo período de tempo, durante o qual foram angariados diversas evidências da prática corruptora.

Neste mesmo cenário, imaginemos que, internamente, a empresa envolvida nos atos de corrupção praticados por seus prepostos, descubra os fatos praticados e, na ânsia de se precatar, acessa a Controladoria-Geral da União9, aviando requerimento para, espontaneamente, relatar os fatos de que tomou conhecimento e, ato contínuo, proceder à celebração de acordo de leniência, para evitar a aplicação de sanções mais graves.

Como tanto a empresa como a CGU não possuem conhecimento da investigação criminal que já caminha a passos largos, ambos ajustam as bases da colaboração premial, na qual a empresa, por força da lei, compromete-se a colaborar com a investigação, entregando provas dos fatos ao poder público.

Reconhecendo que, a um só tempo, o Ministério Público não foi chamado a intervir na pactuação do acordo de leniência (por falta de previsão legal explícita), nem a CGU detinha conhecimento da tramitação da investigação criminal, muito provavelmente será levado a efeito acordo de leniência inútil, inadequado e sem valor para a Administração Pública. As provas que a empresa corruptora vier a entregar serão redundantes e desinteressantes para a Administração Pública, pois as mesmas (ou maiores) evidências foram ou serão coletadas no inquérito policial. Neste contexto, a Administração Pública estará renunciando à aplicação de sanções de forma pueril e açodada, evitável se tivesse conhecimento da tramitação do inquérito policial via intervenção do Ministério Público.

Outro cenário – este de desigualdade e insegurança para a pessoa jurídica – poder-se-ia reconhecer na situação em que a apuração dos fatos reveladores da “corrupção” tivesse sua gênese no processo administrativo iniciado pela Administração Pública. Neste cenário hipotético, inexiste qualquer inquérito ou investigação criminal a respeito dos mesmos fatos em tramitação sob a batuta do Ministério Público.

Imaginemos que, sem a interveniência do Parquet, as partes (pessoa jurídica e Administração Pública) avancem para a celebração do acordo de leniência, no qual a empresa compromete-se a entregar provas do fato e colaborar para que os responsáveis sejam identificados e processados pelo Estado.

Finalizado o processo administrativo, e identificada a prática de crimes contra a Administração Pública, a autoridade administrativa processante haverá de encaminhar cópia para o Ministério Público, por força do art. 15 da lei anticorrupção.

Aportada a cópia do processo administrativo ao Parquet, o Ministério Público entende que os fatos têm outra conformação legal ou visualiza que o acordo de leniência fora firmado em bases e sob condições contra legem10, e decide impugnar judicialmente o ato administrativo, na defesa do patrimônio público. Ou, ainda, decide por ingressar em juízo com ação penal pública em razão da prática de outros fatos, diversos dos constatados no processo administrativo.

A pessoa jurídica, muito possivelmente, sentir-se-á vítima de um défice de segurança jurídica, pois imaginava estar negociando a redução das sanções, quiçá a imunidade ampla perante o Estado.

Cuida-se, assim, de situações problemáticas, em tudo aplicáveis considerando a ótica de responsabilização subjetiva dos agentes públicos e privados prevista na Lei de Improbidade Administrativa (LIA – Lei nº 8.429/92), cujos tipos abertos elencados nos arts. 9º, 10 e 11 abarcam o enquadramento de todos os crimes contra a administração pública na condição de conduta ímproba, sujeita ao sancionamento cominado nos diversos incisos do art. 12 da lei.

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Sobre o autor
Alexandre Schneider

Procurador da República, docente da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), mestrando em Direito pela Universidade Católica de Brasilia (UCB), integrante do Grupo de Apoio ao Tribunal do Júri (GATJ) do Ministério Público Federal (MPF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHNEIDER, Alexandre. Acordo de leniência na Lei Anticorrupção e a intervenção do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5090, 8 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58307. Acesso em: 18 abr. 2024.

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