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O imposto sobre a renda da pessoa física e a dedutibilidade dos gastos com educação

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12/06/2017 às 15:15
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3. DO DIREITO À EDUCAÇÃO

3.1. A disciplina constitucional da educação

A Constituição de 1998 é reconhecidamente uma Carta de perfil analítico, disciplinando com relativa minúcia temas que normalmente são deixados para a legislação infraconstitucional. No que toca à educação, essa característica do texto constitucional ganha ainda mais intensidade, tendo-se conferido especial sede ao direito em questão, quando comparado com outros de semelhante índole.

O art. 6o da CR/88 qualifica o direito à educação como um direito social: 

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.   (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)

Além de conferir essa especial natureza ao direito à educação, o texto constitucional também contém diversas outras referências que lhe tocam diretamente, as quais, compreendidas no seu conjunto, permitem formar seguro juízo quanto à destacada atenção atribuída ao tema pelo Poder Constituinte. Conforme art. 7o, IV, da CR88, “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social (...) salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação (...)”. O art. 205, a seu turno, dispõe que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O art. 208 assegura a gratuidade da “educação básica obrigatória” (inciso I) e determina a “progressiva universalização do ensino médio gratuito” (inciso II). O parágrafo primeiro desse mesmo artigo estabelece que “O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”. De igual modo, também restou fixado que “A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino” (art. 212). 

O direito à educação, quando comparado com outros direitos sociais, foi objeto de uma atenção especial por parte da Constituição, dada a minúcia com a qual se dedicou a tema, traçando balizas mais estreitas para a atuação do Estado e reforçando, no que tange ao ensino obrigatório e gratuito, a previsão de que se trata de um direito subjetivo do particular. Vê-se que, quanto ao direito à educação, o arcabouço normativo desenhado pelo Poder Constituinte contém algumas indicações que podem ser muito importantes para se construir interpretativamente o núcleo mínimo desse direito, o que, como se verá mais adiante, terá consequências importantes para o fim de eventualmente caracterizar esses gastos do contribuinte (com educação) como integrante da classe “certas saídas”, isto é, como dedutíveis (ou não) da base de cálculo do imposto sobre a renda.

3.2. A jusfundamentabilidade do direito à educação sob a ótica do mínimo existencial

Todo o arcabouço normativo resultante da interpretação do texto constitucional conduz a doutrina a qualificar o direito à educação como um direito social ou como um direito fundamental de segunda geração, caracterizado por exigir (também) uma posição ativa do Poder Público na respectiva concretização. De acordo com André Ramos Tavares (2010, p. 869):

Perante o direito à educação como direito fundamental, ao Estado surge um dever de atuar positivamente, seja i) criando condições normativas adequadas ao exercício desse direito (legislação), seja ii) na criação de condições reais, com estruturas, instituições e recursos humanos (as chamadas garantias institucionais relacionadas diretamente a direitos fundamentais).

Esse direito, concebido na sua máxima dimensão jusfundamental, imporia ao Estado, independentemente da edição de legislação infraconstitucional, o dever de (i) abster-se de adotar qualquer medida, inclusive tributária, que venha a inviabilizar ou dificultar o exercício do direito à educação; e a obrigação de (ii) implementar medidas concretas para o fornecimento do serviço educacional em todos os níveis. Somente assim o direito à educação poderia ser considerado, na sua integralidade, como um direito fundamental, isto é, como um direito de eficácia plena e aplicabilidade imediata, sujeito, portanto, à irrestrita tutela judicial. Afinal de contas, direitos fundamentais - e as expressões afins (direitos humanos, direitos do homem etc.) - podem ser definidos de várias maneiras, mas, do ponto de vista do direito positivo, parece-nos ter importância central aquela que identifica o regime jurídico dessa classe de direitos. E essa sistemática particular é justamente caracterizada pela possibilidade irrestrita de se produzirem normas individuais e concretas (sentenças judiciais, por exemplo), a partir tão somente do texto constitucional, para o fim de assegurar o âmbito de proteção da norma geral e abstrata (direito subjetivo fundamental).

Essa forma de enxergar os direitos sociais, destaca o Ricardo Lobo Torres (2009, p. 46), sensibilizou relevante parte da doutrina brasileira na década de 1980. Nesse sentido, cita o pensamento de Celso Antônio Bandeira De Melo, segundo o qual “todas as normas constitucionais concernentes à justiça social” geram direitos que são “verdadeiros direitos subjetivos na acepção mais comum da palavra” (apud TORRES, 2009, p. 46). Também Luís Roberto Barroso já escreveu, embora tenha evoluído no seu posicionamento, que

“[...] já não cabe negar o caráter jurídico e, pois, a exigibilidade e acionabilidade dos direitos fundamentais, na sua tríplice tipologia. É puramente ideológica, e não científica, a resistência que ainda hoje se opõe à efetivação, por via coercitiva, dos chamados direitos sociais”. (apud TORRES, 2009, p. 47).  

A tese da indivisibilidade dos direitos humanos, que atribui o regime jurídico de direito fundamental aos direitos de defesa e sociais indistintamente, produz sério impasse. Isto porque, embora o sistema de direito positivo produza, na qualidade de metalinguagem, sua própria realidade (CARVALHO, P. B., 2014, p. 34), parece-nos certo que toda e qualquer norma jurídica somente poderá assentar-se sobre o modo lógico da possibilidade (CARVALHO, P. B, 2014, p. 54), de tal modo que a expedição de ordens jurídicas de cumprimento impossível acabaria por simplesmente desmoralizar a própria previsão normativa. A promoção dos chamados direitos sociais não depende tão somente da produção de um texto normativo que imponha tal obrigação ao Estado. Em sociedades em que os recursos econômicos são especialmente limitados, é inescondível a constatação de que nem todos os direitos sociais poderão ser plena e prontamente atendidos, de tal forma que escolhas muito difíceis deverão ser feitas pelas autoridades investidas de competência para tanto.

Essa ordem de ideias poderia conduzir à conclusão de que os direitos sociais seriam carentes de jusfundamentabilidade, de tal sorte que o legislador, quanto a eles, teria ampla margem de decisão, implementando-os de acordo com as opções políticas do momento. Essa conclusão, no entanto, não nos parece ser a melhor saída, eis que (i) também acabaria por desmoralizar o texto constitucional, que, quanto aos direitos sociais, teria sua normatividade completamente subtraída por essa tese; (ii) implicaria a adoção de um modelo de Estado claramente não acolhido na Constituição de 1998.

Diante dessa encruzilhada, Ricardo Lobo Torres (2009, p. 53) propõe a seguinte solução:

A saída para a afirmação dos direitos sociais tem sido, nas últimas décadas: a) a redução de sua jusfundamentabilidade ao mínimo existencial, que representa a quantidade mínima de direitos sociais abaixo da qual o homem não tem condições de sobreviver com dignidade; b) a otimização da parte que sobreexcede os mínimos sociais na via das políticas públicas, do orçamento e do exercício da cidadania. 

Assim, mediante um corte transversal nos direitos sociais poder-se-ia separar (i) a parcela daqueles direitos essencial à existência digna do indivíduo e (ii) a porção desses mesmo direitos que vai além desse conteúdo mínimo. No primeiro caso, isto é, naquilo que diga respeito ao mínimo existencial, os direitos sociais estariam acobertados pelo regime jurídico próprio dos direitos fundamentais, enquanto que, na parcela restante, a implementação dos direitos estaria sujeita à mediação legislativa e, portanto, às disputas políticas travadas em torno sobretudo do orçamento.

Nesse sentido, a especial proteção dos direitos sociais, na qualidade de direitos fundamentais, estaria restrita ao mínimo existencial, tal como registra Ricardo Lobo Torres (2009, p. 41):

Parece-nos que a jusfundamentabilidade dos direitos sociais se reduz ao mínimo existencial, em seu duplo aspecto de proteção negativa  contra a incidência de tributos sobre os direitos sociais mínimos de todas as pessoas e de proteção positiva consubstanciada na entrega de prestações estatais materiais em favor dos pobres. Os direitos sociais máximos devem ser obtidos na via do exercício da cidadania reivindicatória e da prática orçamentária, a partir do processo democrático.

Do ponto de vista da tributação, duas conclusões podem ser formuladas a partir dessas premissas. A primeira delas consiste em que o núcleo fundamental dos direitos sociais, resultante do corte promovido pela noção de mínimo existencial, está protegido contra a incidência de tributos, haja vista que o Estado, pela via da tributação, não pode obstar ou dificultar o exercício daqueles direitos que qualificou como fundamentais. Nesse particular, pode-se invocar, inclusive, princípio da não obstância do exercício de direitos fundamentais por via da tributação, cunhado por Regina Helena Costa (2006, p. 87), para quem:

“[...] se a Lei Maior assegura o exercício de determinados direitos, que qualifica como fundamentais, não pode tolerar que a tributação, também constitucionalmente disciplinada, seja desempenhada em desapreço a esses mesmos direitos”.

 Em contrapartida, a segunda conclusão é a de que, desde que respeitadas as exigências constitucionais pertinentes, os direitos sociais podem ser tocados pela tributação, na parcela que sobreexcede o mínimo existencial. A porção dos direitos sociais que exorbitam a linha traçada pelo mínimo existencial não está protegida da tributação, razão pela qual, nesse particular, a imposição de gravame tributário estará à mercê de escolha política do legislador, respeitadas, por certo, as demais normas constitucionais conformadoras da atividade legislativa e tributária.

Esse corte permite avançar na compreensão do cruzamento entre tributação e direitos sociais, haja vista que introduz elemento capaz de assegurar a normatividade dessa classe de direitos, no seu aspecto negativo (proteção à tributação), sem cair no impasse que seria gerado pela aplicação da tese da indivisibilidade dos direitos fundamentais. No entanto, a definição do que seja exatamente esse mínimo existencial não é algo fácil de fazer, a menos que se recorra a expressões igualmente vagas que apenas deslocam a incerteza do definiendum para o definies.

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No caso do direito à educação, essa incisão é particularmente ainda mais problemática e isso pode ser demonstrado quando se examinam outros direitos topicamente semelhantes. Note-se, por exemplo, que o direito social à moradia, também previsto no art. 6o, CR/88, revela esses dois aspectos de modo muito mais claro: o mínimo existencial tem ligação com o estritamente necessário para uma moradia digna, extrapolando essa noção moradias suntuosas, casas de veraneio etc. Enfim, aquilo que for considerado supérfluo, mesmo em se tratando de moradia, não estará protegido como direito fundamental, embora posa merecer diversas outras modalidades de proteção, legais e constitucionais.

A jusfundamentabilidade do direito à moraria, pelo menos no plano teórico, é mais facilmente identificável, dentro do modelo adotado. O mesmo pode ser dito quanto ao direito à alimentação, também estabelecido no art. 6o, da CR/88: a jusfundamentabilidade desse direito, restrita ao mínimo existencial, não está ligada a refeições requintadas, mas apenas a uma alimentação digna e suficiente para a manutenção saudável do indivíduo. O supérfluo, mais uma vez, exsurge como elemento importante para se separar a face do direito situada no hemisfério do mínimo existencial daquela que não se abriga sob esse manto e que, portanto, não goza da especial proteção à tributação.

Quando se trata do direito à educação, no entanto, é difícil visualizar a aplicação dessa ideia de superfluidade. A noção de que determinados gastos com educação possam ser supérfluos pode não ser muito bem aceita, na medida em que o investimento em tal área é essencial para o desenvolvimento do ser humano naquilo que ele tem de mais humano. Assim, uma posição segundo a qual o direito à educação estaria, todo ele, inserido na concepção de mínimo existencial não seria reprovável e talvez seja o caminho mais propício para a superação das grandes e históricas dificuldades da sociedade brasileira. 

Sem embargo disso, não se pode ignorar que mesmo o direito à educação pode ser visto em camadas de essencialidade. A partir do texto da Constituição de 1998, é possível verificar a especial atenção que foi dispensada à educação básica. De acordo com o art. 208, I, da CR/88, o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade. Aos particulares, ademais, foi expressamente assegurado que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. De outro lado, quando disciplina as demais etapas do processo educacional, a Constituição de 1988 foi mais comedida. Prescreve a progressiva universalização do ensino médio gratuito (art. 208, parágrafo 1o) e o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um (art. 208, inciso V).

Destarte, quanto à educação básica, não nos parece haver dúvida que se situa no âmbito demarcado pela linha do mínimo existencial, tanto pela referência especial que recebeu no texto constitucional, quanto por configurar o núcleo mais inegociável do direito à educação (BARCELLOS, 2002, p. 258). A educação infantil, afigurando-se etapa anterior à educação básica, também já foi reconhecida pela Supremo Tribunal Federal como essencial à ideia de mínimo existencial (ARE 639337, pub. 15-09-2011)

Quanto às demais atividades educacionais – ensino médio, superior etc. ­–, apesar de extremamente importantes por razões mais que evidentes, parece-nos que escapam a esse conceito estrito de mínimo existencial, dado o tratamento que lhes foi conferido pela Constituição e, ainda, pela necessidade de se reconhecer que, embora não seja o ideal, não é impeditivo de uma vida digna a ausência de tais níveis de instrução, sobretudo quando considerado o atual contexto socioeconômico do Brasil.

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FONTE, Leonardo Avelar. O imposto sobre a renda da pessoa física e a dedutibilidade dos gastos com educação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5094, 12 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58341. Acesso em: 24 abr. 2024.

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