Capa da publicação O IRPF e a os gastos com educação: dedutibilidade legítima?
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O imposto sobre a renda da pessoa física e a dedutibilidade dos gastos com educação

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12/06/2017 às 15:15
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4. OS GASTOS COM EDUCAÇÃO E O IMPOSTO SOBRE A RENDA

4.1. A disciplina infraconstitucional

O art. 8o, II, “b”, da Lei 9.250/1995[7], ao disciplinar a formação da base de cálculo do imposto sobre a renda da pessoa física, prevê a dedutibilidade de gastos efetuados com educação. No entanto, impõe certos limites.

Do ponto de vista qualitativo, as deduções estão restritas às seguintes atividades: creches, pré-escolas, ensino fundamental, ensino médio, educação superior, limitado à graduação, mestrado, doutorado e especialização, e educação profissional, compreendendo o ensino técnico e o tecnológico. Como se vê, as diretrizes adotadas na legislação, nesse particular, parecem ser as seguintes: (a) acolher a dedutibilidades dos gastos relativos à educação básica, ao ensino médio e ao ensino superior (este restrito a mestrado, doutorado e especialização) e igualmente à educação profissional; (b) excluir a dedutibilidade de outras despesas, tais como as relativas a cursos de idiomas, por exemplo.

Sob o critério quantitativo, a legislação estabelece um teto para as deduções, de modo que, independentemente do valor efetivamente dispendido, a dedução ficou limitada a um valor individual anual de R$ 3.561,50 (três mil, quinhentos e sessenta e um reais e cinquenta centavos), ou seja, R$ 296,79 (duzentos e noventa e seis e setenta e nove centavos) por mês, para o exercício de 2015. Ao assim proceder, o legislador infraconstitucional: (a) primeiro, dentro do universos da atividades educacionais que propiciam a dedução, não foi estabelecida nenhuma diferenciação entre educação básica, ensino médio, superior etc.; (b) segundo, fixou limite igual para todas essas atividades, limite este reconhecidamente aquém dos efetivos custos para a obtenção de uma educação razoável em nosso país (nesse sentido, conferir demonstrativo preparado pela OAB na ADI 4927).

4.2. A discussão na doutrina e na jurisprudência

Diante dessas limitações à dedutibilidade dos gastos com educação na apuração da base de cálculo do imposto de renda, formaram-se na doutrina e na jurisprudência duas posições diametralmente opostas, uma advogando a inconstitucionalidade das restrições impostas pelo art. 8o, II, “b”, da Lei 9.250/1995, especialmente quanto ao aspecto quantitativo, e outra defendendo a perfeita compatibilidade da disciplina legal com a Constituição. Um bom roteiro para se conhecer bem essas duas posições é a análise de julgamento proferido pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região nos autos da Arguição de Inconstitucionalidade n. 0005067-86.2002.4.03.6100/SP, ao qual serão agregadas outras manifestações, sobretudo do Supremo Tribunal Federal e da doutrina especializada.

Naquele julgado, prevaleceu a posição de que os limites impostos pela legislação infraconstitucional são inconstitucionais, tal como se pode conferir a partir da leitura da respectiva ementa:

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PESSOA FÍSICA. LIMITES À DEDUÇÃO DAS DESPESAS COM INSTRUÇÃO. ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 8º, II, "B", DA LEI Nº 9.250/95. EDUCAÇÃO. DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL. DEVER JURÍDICO DO ESTADO DE PROMOVÊ-LA E PRESTÁ-LA. DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO. NÃO TRIBUTAÇÃO DAS VERBAS DESPENDIDAS COM EDUCAÇÃO. MEDIDA CONCRETIZADORA DE DIRETRIZ PRIMORDIAL DELINEADA PELO CONSTITUINTE ORIGINÁRIO. A INCIDÊNCIA DO IMPOSTO SOBRE GASTOS COM EDUCAÇÃO VULNERA O CONCEITO CONSTITUCIONAL DE RENDA E O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA.

1. Arguição de inconstitucionalidade suscitada pela e. Sexta Turma desta Corte em sede de apelação em mandado de segurança impetrado com a finalidade de garantir o direito à dedução integral dos gastos com educação na Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda Pessoa Física de 2002, ano-base 2001.

2. Possibilidade de submissão da quaestio juris a este colegiado, ante a inexistência de pronunciamento do Plenário do STF, tampouco do Pleno ou do Órgão Especial desta Corte, acerca da questão.

3. O reconhecimento da inconstitucionalidade da norma afastando sua aplicabilidade não configura por parte do Poder Judiciário atuação como legislador positivo. Necessidade de o Judiciário - no exercício de sua típica função, qual seja, averiguar a conformidade do dispositivo impugnado com a ordem constitucional vigente - manifestar-se sobre a compatibilidade da norma impugnada com os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Compete também ao poder Judiciário verificar os limites de atuação do Poder Legislativo no tocante ao exercício de competências tributárias impositivas.

4. A CF confere especial destaque a esse direito social fundamental, prescrevendo o dever jurídico do Estado de prestá-la e alçando-a à categoria de direito público subjetivo.

5. A educação constitui elemento imprescindível ao pleno desenvolvimento da pessoa, ao exercício da cidadania e à livre determinação do indivíduo, estando em estreita relação com os primados basilares da República Federativa e do Estado Democrático de Direito, sobretudo com o princípio da dignidade da pessoa humana. Atua como verdadeiro pressuposto para a concreção de outros direitos fundamentais.

6. A imposição de limites ao abatimento das quantias gastas pelos contribuintes com educação resulta na incidência de tributos sobre despesas de natureza essencial à sobrevivência do indivíduo, a teor do art. 7 º, IV, da CF, e obstaculiza o exercício desse direito.

7. Na medida em que o Estado não arca com seu dever de disponibilizar ensino público gratuito a toda população, mediante a implementação de condições materiais e de prestações positivas que assegurem a efetiva fruição desse direito, deve, ao menos, fomentar e facilitar o acesso à educação, abstendo-se de agredir, por meio da tributação, a esfera jurídico-patrimonial dos cidadãos na parte empenhada para efetivar e concretizar o direito fundamental à educação.

8. A incidência do imposto de renda sobre despesas com educação vulnera o conceito constitucional de renda, bem como o princípio da capacidade contributiva, expressamente previsto no texto constitucional.

9. A desoneração tributária das verbas despendidas com instrução configura medida concretizadora de objetivo primordial traçado pela Carta Cidadã, a qual erigiu a educação como um dos valores fundamentais e basilares da República Federativa do Brasil.

10. Arguição julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da expressão "até o limite anual individual de R$ 1.700,00 (um mil e setecentos reais)" contida no art. 8º, II, "b", da Lei nº 9.250/95.

A análise desse julgado é sobremaneira interessante porque a questão foi tratado com profundidade incomum, quando comparado com outros julgados sobre a matéria, o que nos permite colher posições bem fundamentadas, tanto a favor quanto contra a constitucionalidade da limitação à plena dedutibilidade dos gastos com educação da composição da base de cálculo do imposto sobre a renda. 

Em favor da constitucionalidade art. 8o, II, “b”, da Lei 9.250/1995, o primeiro argumento alinhavado naquele julgado consistiu na afirmação de que a subtração dessa norma do ordenamento jurídico acabaria por caracterizar a atividade judicial como a de um legislador positivo, pois, caso acolhesse a pretensão do contribuinte, o Judiciário estaria introduzindo, nesse mesmo ordenamento, uma segunda norma de dedução integral. Esse argumento, aliás, tem sido prestigiado pelo Supremo Tribunal Federal. No RE 606179 AgR, a 1a Turma do STF, sob a relatoria do Ministro Teori Zavascki, decidiu “que não pode o Poder Judiciário estabelecer isenções tributárias, redução de impostos ou deduções não previstas em lei, ante a impossibilidade de atuar como legislador positivo”, razão pela qual “não é possível ampliar os limites estabelecidos em lei para a dedução, da base de cálculo do IRPF, de gastos com educação”.

A regra de dedutibilidade, portanto, foi caracterizada como um benefício fiscal, o que nos leva a pensar essa construção tem em sua base, ainda que não explicitamente, alguma das seguintes premissas: (a) ou não existe um conceito constitucional de renda; (b) ou, caso esse conceito exista, não faria parte dele a noção de que há “certas saídas” que devem ser necessariamente consideradas; (c) ou que, entre essas “certas saídas”, não estão necessariamente as despesas com educação. Adotada qualquer uma dessas ideias, pode-se sustentar que a regra de dedutibilidade dos gastos com educação seria um benefício fiscal, ficando à inteira mercê do legislador moldá-lo de acordo com suas próprias preferências, respeitados, é claro, os demais parâmetros constitucionais.    

A partir do exame de outros precedentes, parece-nos que, por critério de coerência, o Supremo Tribunal Federal tem-se inclinado pela primeira opção, já que sequer conhece de recursos extraordinários sobre a matéria, por considerar trata-se de uma discussão de cunho infraconstitucional. No AI 724817 AgR, Rel.  Min. Dias Toffoli, a 1a Turma da Corte entendeu que a “discussão relativa à limitação da dedução, na declaração de ajuste anual do imposto de renda, dos valores pagos a título de educação, na forma da Lei nº 9.250/95, insere-se no âmbito infraconstitucional, sendo certo, ainda, que eventual ofensa à Constituição, caso ocorresse, dar-se-ia de forma reflexa ou indireta”. Para o Supremo Tribunal Federal, ao que parece, não haveria um conceito constitucional de renda, razão pela qual o desenho das eventuais deduções para a formatação da base de cálculo do imposto de renda dependeria exclusivamente a opção política do legislador.

Um segundo argumento à favor da regularidade da norma infraconstitucional foi colocado pelo Desembargador Federal Paulo Octávio Baptista Pereira no julgamento da já mencionada Arguição de Inconstitucionalidade n. 0005067-86.2002.4.03.6100/SP (trecho de voto, p. 9):

Observe-se que nem todas as despesas eventualmente realizadas pelos contribuintes por insuficiência ou ineficiência do Estado em garantir os direitos previstos nos Arts. 6o e 7o, da CF (moradia, alimentação, lazer, vestuário, higiene, segurança) foram admitidas pelo legislador como dedutíveis (aluguéis e prestações para aquisição da casa própria, por exemplo). Até mesmo em relação à saúde, despesas com medicamentos, por exemplo, permaneceram excluídas.

Essa fundamentação, a nosso ver, está diretamente ligada com a questão da jusfundamentabilidade dos direitos sociais. Aparentemente, diante da incapacidade do Estado de implementar todos esses direitos na sua extensão máxima, o Desembargador Paulo Octávio Baptista Pereira optou pela solução interpretativa que não os insere na classe dos direitos fundamentais, entendidos como aqueles de aplicabilidade plena e imediata. Por isso, esses direitos não estariam protegidos da tributação. A questão da jusfundamentabilidade restrita dos direitos fundamentais, segundo o corte resultante do mínimo existencial, não foi objeto de discussão, mas, ainda assim, a posição que prevaleceu é incompatível com essa forma de conceber os direitos sociais. A preservação dos direitos sociais não seria uma limitação ao exercício da competência tributária.

Em polo oposto - agora já ingressando nos argumentos contrários à constitucionalidade do art. 8o, II, “b”, da Lei 9.250/1995 -, o Desembargador Federal Mairan Maia argumentou o seguinte (trecho de voto, p. 27):

O exercício dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição da República não pode, em hipótese alguma, ser obstado ou dificultado em função do exercício das competências tributárias inerentes aos entes políticos, também disciplinadas constitucionalmente, razão pela qual inviável admitir que quantias empenhadas na concretização de direitos dessa espécie sejam atingidas pela tributação.

Como se vê, ao proteger de tributação os valores empregados na concretização dos direitos sociais – ainda mais sem fazer referência a qualquer limite para essa proteção -, essa posição parece acolher a tese da indivisibilidade dos direitos fundamentais, mantendo a salvo da incidência de tributos as despesas relativas aos gastos com educação. Os direitos sociais, concebidos como direitos fundamentais em toda a sua extensão, não admitiriam restrição por efeito do uso da competência tributária atribuída aos entes políticos. Nesse ponto, cabe destacar que o voto faz referência expressa à doutrina de J. J. Gomes Canotilho e ao princípio da máxima efetividade da Constituição.

 A seu turno, o Desembargador Federal Johonson di Salvo, naquele mesmo julgamento, argumentou que:

[...] o limite imposto pela lei significa tributação sobre despesa e não de renda, pois, como apontam com rigor as entidades que se debruçam em estudos a respeito da tributação, essa pífia dedução não paga sequer a carga tributária incidente sobre as mensalidades de escolas particulares (trecho de voto, p. 4). 

Esses dois argumentos acima expostos são prestigiados por Hugo de Brito Machado (2009, p. 87), segundo o qual:

Negar o direito de o contribuinte partilhar com a sociedade o ônus de seus gastos com educação, além de ser uma flagrante afronta aos dispositivos constitucionais que a colocam como um direito fundamental, viola também a Constituição porque implica a cobrança do imposto sobre algo que não é renda, mas despesa. Ninguém de bom senso, portanto, poderá considerar válido o dispositivo que limita a dedução das quantias com educação, na formação da base de cálculo do imposto de renda.  

Na mesma linha, embora com base argumentação diferente, aduz Carlos Leonetti (2003, p. 194):

Com efeito, grande parte da população se vê̂ obrigada a utilizar os serviços de instituições de ensino privadas, com ou sem fins lucrativos, cujos custos via de regra consomem boa parte de seus rendimentos. Dessarte, os gastos com instrução também se incluem entre aqueles necessários e involuntários e que beneficiam não apenas o contribuinte e/ou seus dependentes, mas a comunidade em geral. (...) Neste giro, a capacidade contributiva do indivíduo depende dos montantes dos gastos com educação em que este incorre, impondo-se a dedução destes dos respectivos rendimentos brutos.

Diante desse quadro, pode-se concluir que essa segunda posição, contrária à constitucionalidade do art. 8o, II, “b”, da Lei 9.250/1995, assenta-se nos seguintes fundamentos teóricos, nem sempre explicitados: (a) existe um conceito constitucional de renda; (b) é inerente a esse conceito uma dinâmica formada não só pode “certas entradas”, mas também por “certas saídas”; (c) as despesas necessárias do contribuinte, relativas à concretização de direitos sociais, devem integrar o conceito de renda, como espécie do gênero “certas saídas”; (d) isso porque os direitos sociais são considerados como direitos fundamentais na sua máxima extensão, não podendo ser tolhidos ou dificultados por via da tributação.

No que se refere ao argumento de que a declaração de inconstitucionalidade da norma examinada implicaria legislar positivamente, convém transcrever os seguintes trechos do parecer proferido pela Procuradoria Geral da República na ADI 4927:

Em termos práticos, o pedido de inconstitucionalidade veiculado na inicial, acaso julgado procedente, acarretaria, ao menos momentaneamente (ou seja, até que sobreviesse lei para os fixar em nível mais elevado), a supressão dos limites de deduções, com a consequente possibilidade de o contribuinte pessoa física deduzir todo o montante de gastos com educação a cada exercício. Tal resultado não exige do Judiciário a elaboração de regra ou norma que implique indevida inovação do ordenamento jurídico.

Em outras palavras, no caso, a declaração de inconstitucionalidade das normas não representaria indevida atuação do Poder Judiciário como legislador positivo, pois não adicionaria regras ao regramento jurídico vigente, tampouco implicaria concessão de benefício fiscal a pretexto de isonomia.

Esse parecer, é importante notar, reconhece (i) a existência de um conceito constitucional de renda, (ii) que esse conceito implica a dedução de certas despesas, mas (iii) entende, paradoxalmente, que a ponderação acerca dos limites dessas deduções cabe exclusivamente ao legislador, razão pela qual, mesmo em se tratando de educação, seria inviável falar-se em dedutibilidade plena. Observe-se:

Despesas com saúde e educação são imposições da vida e ao mesmo tempo relacionam-se com direitos fundamentais garantidos pela Constituição. Caso a legislação fosse totalmente omissa em prever algum nível de dedução delas da base de cálculo dos tribu- tos impostos aos cidadãos em geral – como é o caso do mais direto entre todos, aquele que incide sobre a renda –, operar-se-ia, aí, sim, verdadeira inconstitucionalidade, por contrariedade ao conceito constitucional de renda.

A escolha, porém, de quais despesas são dedutíveis e sua quantificação pertence ao juízo de conveniência e oportunidade do legislador, pois não há preceito constitucional que determine parâmetro de dedutibilidade. Em resumo, a definição dos lindes da renda tributável é questão de política fiscal legislativa, que deve ser veiculada por leis ordinárias elaboradas de acordo com a Constituição.

A posição da Procuradoria Geral da República, portanto, é a de que, embora exista um conceito constitucional de renda e esse conceito seja integrado pela dedutibilidade de certas saídas, o legislador poderia fazer uma “escolha” acerca de quais despesas devem ser admitidas para fim de dedução, segundo juízo de conveniência e oportunidade.

Dentro desse panorama brevemente traçado, o que pode perceber é que as argumentações, em regra, são colocadas de modo extremado, no sentido de que ou se admite a dedução integral em qualquer caso ou se entende que não há um direito constitucional mínimo à dedutibilidade de certas saídas, ficando tal disciplina ao sabor do juízo do legislador. Trata-se de argumentações caracterizadas por uma espécie de “tudo ou nada”: ou o direito à educação deve ser protegido da tributação em toda sua dimensão, ou esse direito não tem proteção especial alguma de índole constitucional, caso em que o legislador deve decidir, com ampla liberdade, sobre a relação entre esse direito e a tributação.

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É certo que essas posições variam quanto às premissas adotadas, as quais nem sempre são devidamente explicitadas, mas, no geral, todas elas revelam alguma inclinação quanto aos pontos tratados nos tópicos anteriores deste trabalho. Note-se que os argumentos dos que defendem a constitucionalidade da atual disciplina constitucional partem de algum dos seguintes fundamentos: (a) da não existência de um conceito constitucional de renda; (b) da adoção de um conceito de renda do qual não fazem parte as necessárias deduções de certos gastos; (c) da ausência de jusfundamentabilidade do direito à educação, no que tange à proteção, ainda que relativamente a um núcleo mínimo, dos gravames tributários.

O argumento segundo o qual a eventual declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal implicaria legislar positivamente também é muito empregado, muito embora me parece que, nesse caso, essa linha argumentativa é muito mais um reflexo desses outros argumentos do que efetivamente um fundamento autônomo e suficiente para sustentar a posição referida. Só haveria que se falar em legislador positivo se o direito à dedução dos gastos com dedução, no caso, não decorresse diretamente da interpretação do texto constitucional, o que, por certo, pressupõe adotar uma daquelas três posições acima expostas.

No hemisfério oposto, os argumentos alinhavados relevam tomada de posição quanto aos seguintes pontos abordados neste trabalho: (a) existe um conceito constitucional de renda; (b) esse conceito constitucional é integrado pela necessária dedutibilidade de certas saídas; (c) dentre essas saídas, estão os gastos com educação.

Feito esse breve resumo dos argumentos mais prestigiados sobre o tema, passa-se a expor a nossa posição.

4.3. Nossa posição

Diante das considerações formuladas nos tópicos anteriores, algumas posições já foram firmadas, as quais serão retomadas, de forma muito breve, apenas para auxiliar na construção do raciocínio que fundamenta nossa posição.

Em primeiro lugar, não nos parece razoável defender a inexistência de um conceito constitucional de renda. As palavras empregadas no texto constitucional apontam inescondivelmente para algum sentido, suscitando no intérprete a construção de uma significação. Aparentemente, confundem-se eventuais disputas argumentativas em torno da definição do conceito com a inexistência do próprio conceito  (v. tópico 2.2.).

Diante da interpretação sistemática do texto constitucional, mediante a qual é examinada a noção de renda em conjunto com diversas outras, como patrimônio, receita, capital etc., temos firme convicção, com apoio na lição de José Artur Lima Gonçalves e da doutrina mais abalizada, que esse conceito deve ser compreendido de forma dinâmica, isto é, como um conceito que relaciona certos elementos durante certo período de tempo. Renda, portanto, no sentido que se pode construir a partir do texto constitucional, deve ser entendida como o “(i) saldo positivo resultante do (ii) confronto entre (ii.a) certas entradas e (ii.b) certas saídas, ocorridas ao longo de um (iii) período de tempo” (GONÇALVES, 2002, p. 179).

Essa definição traduz um importante avanço na compreensão do conceito, sobretudo porque, no que interessa mais particularmente para este trabalho, fixa a ideia de que não se estará diante do conceito de renda se não estiver presente o elemento essencial “certas saídas”. A dedutibilidade de certas despesas na formação da base de cálculo do imposto de renda é uma imposição constitucional, haja vista que essa exigência liga-se diretamente ao conceito (constitucional) de renda.

Naturalmente, essa premissa nos leva a rejeitar a posição segundo a qual a regra de dedutibilidade deveria ser vista como um benefício fiscal. Ora, na medida em que o cômputo de certas saídas é parte indissociável do conceito de renda, conceito este de índole constitucional, sobressai necessário reconhecer que a dedutibilidade dessas saídas decorre precisamente da norma constitucional e não da vontade do legislador infraconstitucional.

Pode-se discutir – e, mais do que isso, dever-se discutir – quais são essas deduções essenciais, decorrentes da própria Constituição e, bem assim, o papel do legislador como intérprete do texto constitucional e participante ativo do processo de ponderação que antecede a edição dos enunciados normativos de sua competência. Mas, indubitavelmente, há que se reconhecer que, assim como renda apresenta um núcleo semântico inegociável, também a noção de “certas saídas” não está à inteira disposição do legislador, o qual deverá respeitar o sentido essencial dessa expressão construído a partir da própria Constituição. 

Em geral, a doutrina identifica duas espécies despesas que devem necessariamente integrar o conceito constitucional de renda: as despesas necessárias à manutenção da fonte produtora das entradas que representam o aspecto positivo da renda e aquelas essenciais à manutenção digna do indivíduo e de sua família. Nesse sentido, além dos autores já citados, cabe uma breve referência à doutrina de Sacha Calmo Navarro Coelho (2005, 466):

Enquanto as pessoas jurídicas são tributadas com base no chamado princípio do balanço, as pessoas físicas apuram a renda tributável pelo saldo entre o que ganharam durante o período de um ano, sejam rendimentos decorrentes do capital ou do trabalho, ou da combinação de ambos, e o que gastaram para obter os rendimentos, acrescido das despesas de auto-manutenção, aí incluído o mínimo vital para uma existência digna, abaixo do qual a renda não revela capacidade contributiva e, pois, é intributável.

Conquanto o autor sustente que, abaixo do mínimo existencial, a renda deixa de ser tributável, pensamos que melhor seria dizer que a renda é justamente o resultado de uma equação em que as despesas essenciais, ligadas ao mínimo existencial, representam o subtraendo, de tal modo que efetivamente não há renda enquanto não for realizada essa subtração. Não se trata de qualificar a renda com não tributável, mas efetivamente de identificar não haver renda ainda devidamente apurada. Há tão somente algumas entradas, mas ainda não a renda calculada, razão pela qual não pode servir de base de cálculo do imposto de renda. Sem embargo, a conclusão do autor está em linha com a ideia central que nos sensibiliza: o mínimo existencial, na sua feição negativa, não pode ser alcançado pela tributação. 

A lição de Klaus Tipke e Joachim Lang (2008, p. 463) é na mesma direção:

Para o pagamento do imposto não é disponível que o sujeito passivo precise despender para sua própria subsistência de sua família... Por isso o mínimo vital e as obrigações de manutenção devem diminuir a base de cálculo. Vale o princípio da dedutibilidade de despesas inevitáveis (o chamado princípio de liquidez privada ou subjetiva).

Com base nessas considerações, é de se concluir que o conceito constitucional de renda tem como elemento essencial a consideração de “certas saídas” e que, dentre essas “certas saídas”, estão aquelas relacionadas ao mínimo existencial. E dessa ideia é possível sacar mais duas importantes noções.

A primeira e mais evidente consiste em que, respeitado o conceito de renda e delimitação do sentido da expressão “certas saídas”, haverá que se reconhecer a existência de despesas dedutíveis e de despesas não dedutíveis, já que a dedutibilidade está ligada a uma característica especial de uma certa classe de despesas, não decorrendo do simples fato de ser uma despesa. Tal consideração nos leva a rejeitar o argumento empregado por Hugo de Brito Machado e pelo Desembargador Federal Johonson di Salvo (v. tópico 3.2) segundo o qual um dos motivos que determinariam a dedutibilidade plena dos gastos com educação seria porque se trata de uma despesa e não de renda. O fato de ser uma despesa é uma condição necessária para a dedutibilidade; no entanto, não é uma condição suficiente. É imprescindível que a despesa esteja qualificada de forma especial.

A segunda conclusão, portanto, é a de que, para se concluir pela dedutibilidade ou não de certa saída, é necessário qualificá-la de acordo com os critérios explicitados. O Desembargador Federal Mairan Maia, por exemplo, entendeu que os gastos exigidos para a concretização dos direitos fundamentais (expressão empregada em sentido amplo, para designar os direitos sociais, inclusive) carregam consigo essa qualificação especial e, por isso, não podem ser alcançados pela tributação, inclusive, por meio de aplicação de regra restritiva de dedutibilidade.

Essa é uma posição que avança na qualificação das saídas relevantes para a composição do conceito constitucional de renda, mas que nos parece um tanto quanto extremada. Embora seja verdade que a tributação deva ser realizada de modo a minimizar que seus reflexos atinjam os direitos fundamentais, inclusive os sociais, parece que algum grau de interferência sempre haverá e, mais, que essa inevitável interferência é tolerada pelo ordenamento jurídico.

Robert Alexy (p. 277) expõe com muita clareza a concepção de que os direitos fundamentais, desde que entendidos como posições prima facie, estão suscetíveis a restrições, sem que isso cause maiores divergências na doutrina:

O conceito de restrição a um direito parece familiar e não problemático. Que direitos tenham restrições e que possam ser restringidos parece uma ideia natural, quase trivial, que encontra expressão na Constituição alemã (arts. 5o, § 2o; 8o, § 2o; 10, § 2o; 11, § 2o; 11, § 2o; 13, § 3o; 14, § 1o, 2; 17a, §§ 1o e 2o; 19, § 1o, 104, § 1o). O problema para não estar no conceito de restrição a um direito fundamental, mas exclusivamente na definição dos possíveis conteúdo e extensão dessas restrições e na distinção entre restrições e outras coisas como regulamentações, configurações e concretizações.

A bem da verdade, a restrição a direitos fundamentais é inerente à ideia de tributação. É bem destacada pela doutrina a tensão que existe entre esses dois polos, sobretudo no que toca ao direito de propriedade e ao direito à liberdade, ambos diretamente afetados pela tributação. A professora Regina Helena Costa destaca que a tributação de índole predominantemente fiscal afeta mais incisivamente a propriedade, enquanto que a tributação extrafiscal, justamente por revelar fins ordinatórios da conduta do sujeito passivo, tem ponto de contato acentuado com a liberdade (2006, p. 86-87). Essa relação entre direitos fundamentais (sentido amplo) e tributação, no entanto, não se esgota nesses dois direitos. É possível verificar essa oposição entre tributação e direitos fundamentais levando-se em conta os direitos à saúde, à moradia, à educação, dentre tantos outros.

       Ocorre que, conquanto essa tensão seja mais comumente destacada sob a ótica da tributação como elemento de restrição dos direitos fundamentais, também não se pode ignorar que os direitos fundamentais somente podem ser promovidos pelo Estado se houver recursos econômicos disponíveis para tanto. Por isso, é certo que os direitos fundamentais são limites à atividade tributária do Estado, mas, sob outro ponto de vista, também se revelam como a fundamentação mais basilar para que a própria tributação exista e seja aceita pela coletividade.

Equilibrar esses dois pontos de contato verificados entre tributação e direitos fundamentais é o que nos parece essencial para a concepção de um sistema tributário harmônico e eficiente, pois, de um lado, o Estado não deve obstar, pela via da tributação, o exercício de direitos fundamentais e, de outro, deve viabilizar, com os recursos advindos da tributação, semelhantes direitos, em geral, para a parcela da população economicamente mais fragilizada. É claro que falar, no plano teórico, sobre esse necessário equilíbrio, ainda mais de um modo abstrato, não revela grandes dificuldades, de modo que tal exortação, desacompanhada de uma proposta mais detalhada, cairia num completo vazio.

É justamente por isso que a compreensão dos direitos sociais sob a ótica do mínimo existencial se mostra tão interessante. Com base nessa teoria, reduz-se a jusfundamentabilidade do direito social ao seu núcleo e garante-se uma estabilidade de regime jurídico quanto a essa sua dimensão. Nesse sentido, a síntese de Ricardo Lobo Torres (2009, p. 80) merece registro:

Em síntese, a jusfundamentabilidade dos direitos sociais se reduz ao mínimo existencial, em seu duplo aspecto de proteção negativa contra a incidência de tributos sobre os direitos sociais mínimos de todas as pessoas e de proteção positiva consubstanciada na entrega de prestações estatais materiais em favor dos pobres. Os direitos sociais máximos devem ser obtidos na via do exercício da cidadania reivindicatória e da prática orçamentária, a partir do processo democrático. Esse é o caminho que leva à superação da tese do primado dos direitos sociais sobre os direitos da liberdade, que inviabilizou o Estado Social de Direito, que não permite a eficácia destes últimos sequer na sua dimensão mínima.

Assim, embora Alexy esteja correto quando afirma que os direitos fundamentais (sentido amplo) podem sofrer restrições, essas mesmas restrições têm como limite o mínimo existencial, que deverá ser protegido, seja mediante prestações positivas ou, no que interessa mais diretamente a este trabalho, pela proibição de intervenção do Estado naquilo que constitui o núcleo essencial dos direitos necessários à dignidade humana.

No que diz respeito ao campo delimitado pela linha do mínimo existencial, a margem de atuação do legislador, quando se trata de restrição, inclusive por intermédio da tributação, é inexistente. De fato, “[...] há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado na via dos tributos [...]” (TORRES, 2009, p. 35). Bem por isso, malgrado não se negue que o legislador possa fazer escolhas na dosagem da tributação, inclusive quando se trata de disciplinar a dedutibilidade de despesas da base de cálculo do imposto de renda, também não se pode ignorar que não lhe é dado fazer qualquer escolha: a discricionariedade legislativa estará limitada pela linha do mínimo existencial. A tributação buscará seu ponto de equilíbrio com os direitos fundamentais (sentido amplo) em algum ponto da parcela que sobreexcede o mínimo existencial. Nunca abaixo dessa linha.

Enfim, (a) a tributação pode afetar os direitos sociais, mas (b) não pode ir além da linha traçada a partir da noção de mínimo existencial. Com base nessas duas premissas, não podemos concordar nem com a posição que tem a plena dedutibilidade de todos os gastos com educação como uma exigência constitucional e nem com o entendimento segundo o qual a regra de dedutibilidade dependeria de uma escolha do legislador, adstrito unicamente a juízo de conveniência e oportunidade. Não concordamos com a primeira porque ela estende o âmbito de irrestrita proteção do direito social para além do mínimo existencial e discordamos da segunda porque nega a existência de um núcleo do direito dotado de proteção especial e, portanto, fora do campo da discricionariedade legislativa.

No tópico 3.2, firmamos posição no sentido de que, a partir do exame do direito positivo, o direito à educação básica tem um tratamento singular, que o coloca em patamar sobremaneira especial. O artigo 208, I, da CR/88, prescreve que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de educação básica obrigatória e gratuita. Associado ao dever do Estado, foi previsto destacadamente o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. Essas cláusulas permitem compreender o grau de essencialidade que se conferiu ao direito em questão, o que é perfeitamente compreensível, de vez que a educação básica constituiu o núcleo mais elementar do direito à educação, revelando-se essencial à ideia de dignidade e mínimo existencial. 

Ana Paula de Barcellos (2002, p. 258), ao abordar a composição do mínimo existencial, destacou a essencialidade do direito à educação fundamental:

[...] o mínimo existencial que ora se concebe é composto por quatro elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça. Repita-se, ainda uma vez, que esses quatro pontos correspondem ao núcleo da dignidade humana que se reconhece eficácia jurídica positiva e, a fortiori, o status de direito subjetivo exigível diante do Poder Judiciário. (destaques não são do original).

Parece-nos seguro sustentar, portanto, que o direito à educação básica encontra-se diretamente relacionado com o conceito de mínimo existencial, razão pela qual deve estar completamente protegido contra a tributação, independentemente da vontade do legislador infraconstitucional. Essa proteção, repita-se, configura direito subjetivo exigível perante o Poder Judiciário, porque decorrente diretamente da Constituição.

Aplicada essa premissa mais geral ao caso concreto, parece-nos conclusão necessária aquela segundo a qual os gastos com educação básica não podem sofrer restrição no que toca à respectiva dedutibilidade na formação da base de cálculo do imposto de renda. Ora, uma vez reconhecido que (i) os gastos condizentes com o mínimo existencial devem compor a equação do conceito de renda e que (ii) as despesas com educação básica têm relação inescondível com o mínimo existencial, é seguro afirmar que a restrição à dedutibilidade prevista no art. art. 8o, II, “b”, 1 a 10, da Lei 9.250/1995, não nos parece estar de acordo com a Constituição Federal.

A norma decorrente desse enunciado não respeita o conceito mínimo resultante da interpretação do termo “renda”, pois, ao vedar a dedutibilidade integral de despesas essenciais à preservação do mínimo existencial, acaba por transformar o imposto sobre a renda em imposto sobre receitas. A advertência feita por Roque Antonio Carrazza (2012, p. 84) quanto a esse ponto é extremamente pertinente:

[...] o IR não pode ser transformado em singelo imposto sobre receitas – o que ocorre quando se nega venham a ser abatidas de sua base imponível as despesas necessárias da pessoa física. A legislação infraconstitucional deve garantir, pois, o discernimento da renda tributável, com a subtração, dos ganhos globais, dos gastos para obtê-lo, máxime os representados pelos gastos familiares do contribuinte.

Destarte, a irrestrita dedutibilidade dos gastos com educação básica na formação da base de cálculo do imposto de renda é uma exigência de ordem constitucional, como meio imprescindível para a proteção do mínimo existencial, razão pela qual a limitação quantitativa prevista no art. 8o, II, “b”, 1 a 10, da Lei 9.250/1995, parece-nos inconstitucional, nesse ponto específico.

Da mesma forma, embora a Constituição Federal, no capítulo dedicado ao direito à educação, não tenha dispensado, à educação infantil (art. 208, IV) – creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade –, a mesma atenção que conferiu à educação básica, existe certo consenso de que tal direito também se revela essencial para promoção do mínimo existencial. Nesse sentido, convém dar destaque a trechos de importante precedente do Supremo Tribunal Federal, que, embora esteja amparado em diferente e mais alargada noção de mínimo existencial, está em linha com nosso entendimento no que diz respeito ao cerne da questão:

A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV).

[...]

A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.

[...]

A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança.

(ARE 639337 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125)

Como se vê, diante da jusfundamentabilidade do direito à educação infantil, resultante de sua ligação direta com a noção de mínimo existencial, o Supremo Tribunal Federal, afastando a aplicação da “cláusula da reserva do possível” e a discricionariedade do Poder Público, determinou a adoção concreta de políticas públicas (ações positivas) para o efetivo atendimento do comando constitucional sob análise (art. 208, IV). Sendo assim, tratando-se de previsão normativa de força suficiente para ensejar a adoção de uma decisão judicial dessa ordem, que interfere diretamente nas políticas públicas, há que se reconhecer, por imposição de coerência, que esse mesmo direito à educação infantil também demanda proteção máxima no seu aspecto negativo.

Os gastos com educação infantil, portanto, afigurando-se essenciais à salvaguarda do mínimo existencial, também devem ser integralmente deduzidos na composição da base de cálculo do imposto de renda, aplicando-se, nesse particular, as mesmas conclusões apresentadas quando se abordou a educação básica, inclusive, quanto à inconstitucionalidade – nessa parte ­– do art. 8o, II, “b”, 1 a 10, da Lei 9.250/1995.

Relativamente aos demais níveis de ensino, a Constituição prevê a progressiva universalização do ensino médio gratuito (art. 208, II) e o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um (art. 208, V). Assim, sem embargo da inquestionável importância de uma educação mais completa, parece-nos que existe diferença de grau quando se trata da essencialidade da educação infantil e básica ante o ensino médio e superior.

Esse quadro normativo não nos confere segurança suficiente para defender que essas camadas do direito à educação – ensino médio e superior – estejam necessariamente situadas abaixo da linha traçada pela noção de mínimo existencial, o que, em princípio, conduz-nos a aceitar a discricionariedade legislativa na definição do equilíbrio que deve haver entre esses direitos sociais e a tributação. A dedutibilidade integral desses gastos na formação da base de cálculo do imposto não nos parece ser uma decorrência do conceito constitucional de renda e sequer uma exigência derivada da noção de mínimo existencial.

Sem embargo, essa discricionariedade não significa uma completa ausência de parâmetros à atividade legislativa. Os princípios de ordem mais geral como igualdade, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, eficiência, dentre outros, deverão ser observados pelo legislador, assim como ocorre na edição de qualquer ato de sua competência. A discussão quanto à dedutibilidade dos gastos com ensino médio e superior deve estar situada não na legitimidade da restrição em si, mas, sim, na compatibilidade do grau de restrição imposto pelo legislador com o próprio direito à educação e com os demais princípios constitucionais mencionados.

A legislação, segundo nos parece, foi estruturada de maneira muito questionável. Primeiro, porque tratou de modo linear todo e qualquer gasto com educação qualificado como dedutível, isto é, estabeleceu limite quantitativo único para qualquer despesa dedutível. E, segundo, porque esse teto é extremamente reduzido, revelando-se insuficiente para contemplar mesmo uma fração relevante do valor efetivamente pago em circunstâncias normais a estabelecimentos de ensino. Muito mais condizente com o equilíbrio entre tributação e educação seria a previsão de restrições específicas para cada tipo de gasto com educação, respeitando-se o grau de essencialidade crescente que existe entre ensino médio, ensino superior, mestrado, doutorado etc. E, bem assim, que essas restrições, atualmente previstas em forma de teto de dedutibilidade, observassem parâmetros mais condizentes, em termos de valores, com a realidade efetivamente vivenciada.

Isso nos leva a considerar que, muito embora seja possível introduzir, pela via da tributação, restrições ao direito à educação, ressalvada a educação infantil e básica, o modelo adotado pela legislação atualmente vigente (art. 8o, II, “b”, 1 a 10, da Lei 9.250/1995) pode ter extrapolado o âmbito da discricionariedade reservada ao legislador. Por isso, sem prejuízo da possibilidade geral de editar-se legislação restritiva do direito à dedutibilidade, parece-nos que o regime atualmente em vigor fica no limite do que pode ser considerado ou não abrangido pelo campo de mérito legislativo.

Essa percepção, no entanto, não se mostra suficientemente forte para justificar a inconstitucionalidade da norma, quanto a esses pontos específicos. Embora a escolha do legislador possa não ter sido a melhor, não se tendo, a nosso sentir, atendido os princípios constitucionais em questão da forma mais adequada, o juízo de inconstitucionalidade não se contenta com zonas de incerteza, no âmbito das quais convém preservar a ação do legislador.

Diante disso, mesmo ressalvando essa posição pessoal no sentido de que a legislação não foi desenhada da maneira mais condizente com o equilíbrio exigido entre tributação e direito à educação, parece-nos que a interferência do Judiciário nesse campo seria demasiada, razão pela qual as escolhas feitas pelo legislador merecem ser respeitadas. O aprimoramento desse regramento, ao nosso sentir, deve ocorrer por meio do exercício da cidadania e no âmbito do processo político.

Em linha com essas considerações, nossa conclusão, quanto às despesas com ensino médio e superior, é pela constitucionalidade do art. 8o, II, “b”, 1 a 10, da Lei 9.250/1995, ressalvando-se, no entanto, que a legislação poderia ter sido estruturada de modo a atender de forma muito mais plena as exigências constitucionais em jogo.

Por fim, no que toca às despesas com educação indedutíveis por critérios qualitativos – curso de idioma, por exemplo ­–, entendemos que se aplica, com maior razão ainda, aquilo que foi dito quanto à necessidade de se respeitar o mérito legislativo, uma vez que tais despesas não estão ligadas ao mínimo existencial, cabendo ao legislador calibrar a tributação e equilibrar os valores sensíveis envolvidos nesse processo.

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FONTE, Leonardo Avelar. O imposto sobre a renda da pessoa física e a dedutibilidade dos gastos com educação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5094, 12 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58341. Acesso em: 25 abr. 2024.

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