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O obiter dictum no direito brasileiro

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16/06/2017 às 17:00
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3. BASE TEORICA NA IDENTIFICAÇÃO DOS ELEMENTOS QUE POSSUEM FORÇA VINCULANTE.

Não restam dúvidas da necessidade de uma base teórica dos precedentes e especificadamente na identificação dos elementos que possuem força vinculantes dos elementos argumentativos que não refletem efeitos vinculativos.

Destaca-se ainda que a separação entre o acessório e o principal muitas vezes não está claro no precedente demandando do interprete o domínio necessário da técnica de separação do obter dictum, José Maria Salgado, acrescenta o seguinte aporte:

Ademas, no todo el contenido del antecedente tiene fuerza obligatoria, sino solo el ratio decidendi o el holding del caso, es decir las razones que llevaron el tribunal a falar de una determinada manera, quedando fuera de ese espectro, para tanto, aquello que suele denominarse obiter dictum, que esta conformado por las expressiones incidentales o colaterales del tribunal. (SALGADO, 2015, p.125)

De fato, não é parte vinculante todo o conteúdo da decisão mais somente a ratio, ficando de fora as expressões incidentais e colaterais. Isso deve ficar claro. Ademais, contribuindo ainda mais para a construção da perfeita identificação do obter dictum no direito brasileiro, alerta Luiz Guilherme Marinoni que é preciso verificar se os fundamentos podiam ser discutidos e se a decisão tomada demandava essa discussão para determinação do obiter dictum:

Não basta simplesmente constatar que os fundamentos não efetivamente discutidos constituem obiter dicta. Nem mesmo há como pensar que obiter dicta são apenas os fundamentos não adequadamente discutidos. É preciso verificar, antes de tudo, se o fundamento podia ser discutido e se a decisão tomada exigia a sua discussão. Deste modo, torna-se inclusive mais claro e objetivo o raciocínio que se deve percorrer para a determinação da ratio decidendi e da obiter dicta.(MARINONI, 2010, 599-630)

Não é tarefa fácil identificar e isolar o fundamento dictum que seria desnecessário para a decisão:

Mais difícil, sem dúvida, é isolar o fundamento que, independentemente de ter sido alegado e discutido pelos juízes, era desnecessário à tomada da decisão. É certo que, quando um fundamento é desnecessário para se chegar à solução de dada questão, em regra ele não é tomado a sério e efetivamente discutido pelos juízes, caracterizando-se facilmente, desta forma, como obiter dictum. Entretanto, em tese isto nem sempre pode ser assim. Daí a importância de se analisar a conhecida definição de Rupert Cross, celebrizada no common law, de que “a ratio decidendi de um caso é qualquer regra de direito expressa ou implicitamente tratada pelo juiz como passo necessário para alcançar a sua conclusão, tendo em vista a linha de raciocínio por ele adotada, ou uma parte de sua instrução para o júri. (MARINONI, 2010, 599-630)

Nessa nova sistemática de estruturação o direito brasileiro vê a necessidade de navegar por um sistema de influência histórica originária da comom law quanto ao seguimento dos precedentes na resolução de casos concretos cujo objetivo maior é proteger o princípio da igualdade.

A constituição exige do judiciário que a decisão seja motivada sob pena de nulidade, principalmente dos tribunais superiores, que deverão apresentar com clareza, coerência e rigorosa base conceitual para que no futuro possa ser identificado a ratio decidendi e essa decisão possa ser possível aplicar a casos semelhantes.

Para tanto, se estamos sedimentados em base teórica sólida poderemos identificar e separar os elementos de um precedente, Mendes, nos mostra em um exemplo prático a tarefa de identificação do obiter dictum em uma decisão que trata a respeito da integridade dos animais propondo a seguinte tarefa:

Este é um daqueles processos em que determinadas sombras metajurídicas vêm ao espírito do juiz e importam risco grave. ... As duas tentações que podem rondar o julgador e que devem ser repelidas para um correto exame da controvérsia são, primeiro, a consideração metajurídica das prioridades: por que, num país de dramas sociais tão pungentes, há pessoas preocupando-se com a integridade física ou com a sensibilidade dos animais?” ... “Não posso ver como juridicamente correta a idéia de que em prática dessa natureza a Constituição não é alvejada. Não há aqui uma manifestação cultural com abusos avulsos; há uma prática abertamente violenta e cruel para com os animais, e a Constituição não deseja isso”. ... “Abstraídas as considerações metajurídicas que poderiam levar à crítica irônica da ação e, agora, do recurso extraordinário, o que temos é um claro caso de ação civil pública idônea, como a prevê a lei, para um fim legítimo. ... Claros os fatos como se passam a cada ano, essa prática se caracteriza como ofensiva ao inciso VII do art. 225 da Constituição... (MENDES, 2017, p.5)

Como se percebe o autor consegue perscrutar e identificar na decisão o que poderá servir como parâmetro para dedecisões futuras “A partir destas breves passagens, podemos construir diferentes ratio decidendi, com níveis de generalização diversos. Uma ratio muito específica se aplicaria a caso futuro somente se este fosse absolutamente igual em suas circunstâncias fáticas. Não seria um precedente tão útil, pois os acontecimentos da vida sempre têm especificidades. ” (MENDES, 2017, p.7)

Na concepção do autor para identificação e separação do obiter dictum da ratio decidendi no caso em comento diversas etapas devem ser suplantadas e enfrentadas levando em consideração que os elementos que formam o precedente como dito anteriormente deve ser identificado para que sua aplicabilidade ao caso futuros e propõe uma nova modalidade de exercício:

“Podemos, num exercício de tentativa e erro, de aproximação sucessiva, relacionar os valores constitucionais do meio-ambiente e da cultura com gradações diferentes. Chegamos a um conjunto de hipóteses. Depois, verificamos qual se adaptaria mais à decisão. Várias perguntas podem nos auxiliar a encontrar a ratio decidendi e o obiter dictum. Só a fauna está subentendida na discussão? E a flora? Só o meio ambiente natural? E o artificial (meio-ambiente urbano, p. ex.)? E as manifestações culturais dos índios que causem danos à vegetação? E a dos quilombolas? Se ocorressem apenas “abusos avulsos”, conforme disse o Min. Rezek, a decisão seria diferente? Pelo voto do Min. Corrêa, pode-se depreender que qualquer prática cultural deve ser assegurada pelo Estado, às custas de outros valores constitucionais? E a crueldade contra animais efetuada para o progresso científico, como a contaminação de ratos para se testar vacinas? (MENDES, 2017, p.7)

Com efeito, a racio decidendi identificada poderá ser aplicada a todos os casos posteriores nas práticas esportivas cuja atração principal seja a presença de animais? O tema é relevante e o enfrentamento dessa questão é necessária, no entanto, não cabe essa discussão na proposta da presente pesquisa.

Lucas Buril (MACEDO, 2015, p.216) afirma que a definição da ratio decidendi é problemática, sobretudo no que toca à sua identificação no momento de sua aplicabilidade. Diz ainda que embora esse problema seja critico no common law, não há necessidade de eternizá-lo quando da adoção do stare decisis.

Segundo seu pensamento “a doutrina dos precedentes brasileira precisa ser construída com vistas às soluções teóricas já fornecidas, dentre elas há o afastamento metodologismo no ponto, que precisa ser aplicada analogicamente aos precedentes.” (MACEDO, 2015, p.216-217)

Contribui ainda o autor com três formas de argumentação a partir dos precedentes com foco na ratio decidendi:

  1. Um modelo de analogia particular, segundo o qual o precendente serve como modelo para a decisão do caso concreto, especialmente a partir da identidade do caso com os fatos substanciais analisados no precedente;

  2. Modelo de afirmação de regra, conforme o qual uma regra é compreendida do precedente, tentando precisar sua hipótese fática e aplicar ao caso concreto sob análise, exceto quando é possível fazer uma distinção entre eles;

  3. O modelo de afirmação de princípio, extrai-se de um princípio do precedente que pode ser relevante para a solução do caso concreto, especialmente se houver similitude fática entre os fatos substanciais do precendente e do caso subsequente. (MACEDO, 2015, p.228-229)


4. DA IDENTIFICAÇÃO DO OBITER DICTUM À EFICÁCIA DO PRECEDENTE

Uma vez identificado que o obiter dictum não se apresenta como vital para a decisão é a racio decidendi a norma que surge do precedente, e que, portanto, possui eficácia normativa.

Sobre eleva mencionar que “os fundamentos prescindíveis para o alcance do resultado fixado no dispositivo da decisão (obiter dicta), ainda que nele presentes, não possuem efeito de precedente vinculante. ”10

Com efeito, o precedente é um fato11. E a produção dos efeitos independe da vontade daquele que praticou o ato. Didier afirma que “não há só precedente em países da common law, há precedentes em todo canto, mas os países de tradição jurídica da common law prestam-lhe, como é12 notório, uma reverencia especial, atribuindo-lhe eficácia normativa. ” (DIDIER, BRAGA, OLIVEIRA, 2015, p.453)

Nesse sentido, Souza nos apresenta um apontamento interessante a respeito da possibilidade de obiter dictum em momento futura servir como ratio:

Quando se restringe a ratio decidendi à solução dada ao caso, permite-se que fundamentos anteriormente considerados dictum se tornem ratio no futuro. Por exemplo: são obter dictum os fundamentos sobre questão processual preliminar ou mesmo de mérito que, embora acolhidas, não definem o resultado do julgamento. E aí que as Cortes inferiores podem se considerar obrigadas por essas razões no futuro, as quais deixam de ser vistas como dicta e passam a ser consideras ratio decidendi alternativa. (SOUZA, 2016 v. 3, n. 3)

Segundo Fredie (2015, p. 454) interpretando o enunciado n. 317 do Fórum Permanente de Processualista, “é preciso que a mesma racio decidendi tenha sido adotada pelos membros do colegiado”, pois os fundamentos não adotados pela maioria dos membros do órgão colegiado não possuem efeito do precedente vinculante, sendo, portanto, obiter dicta.

Por outro lado, após a perfeita identificação do obiter dictum convém ainda destacar a força jurídica do precedente.

Nesse ponto, de igual importância, destaca o quanto aduzindo pelo autor quando diz que “No direito brasileiro, os precedentes judiciais têm aptidão para produzir diversos efeitos jurídicos, que não se excluem. É possível e até comum que um mesmo precedente produza mais de um tipo de efeito.” (DIDIER, BRAGA, OLIVEIRA, 2015, p.454)

Nessa quadra, convém destacar a classificação da eficácia do precedente judicial apresentados por Didier, Braga e Oliveira quando apresentam seis efeitos jurídicos que precedente pode apresentar, vinculante, persuasivo, obstativo da revisão de decisões, autorizante, rescindente e de revisão da sentença.13

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Quando se afirmar que um precedente tem força vinculante significa dizer que este tem o condão de vincular decisões posteriores.

Pertinente ao efeito da eficácia persuasiva “possui apenas força persuasiva (persuasive authority), na medida em que constitui "indício de uma solução racional e socialmente adequada”. Nenhum magistrado está obrigado a segui-lo; "se o segue, é por estar convencido de sua correção” (DIDIER, BRAGA, OLIVEIRA, 2015, p.454)

Ademais, há aqueles que obstam a revisão de decisões judiciais, por meio de recursos ou por remessa necessária, em última análise trata-se de desdobramento do efeito vinculante do precedente judicial.14

Quanto ao efeito autorizante pode-se afirmar que este tem eficácia para admissão ou acolhimento de ato postulatório, como nos casos de recurso, demanda ou incidente processual.

Há ainda o precedente que tem aptidão de rescindir ou retirar a eficácia de decisão judicial que transitou em julgado.

Por fim, destaco também extraída dos comentários de Didier o efeito do precedente que permite a revisão de coisa julgada quando afirma que: “Há quem defenda, ainda, que o precedente pode autorizar a ação de revisão de coisa julgada que diga respeito a uma relação jurídica sucessiva (art. 505, I, CPC), como a relação jurídica tributária.” (DIDIER, BRAGA, OLIVEIRA, 2015, p.460)


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese conclusiva, pode-se afirmar que com a nova sistemática processual na formação do precedente judicial e a valoração da integridade, coerência e estabilidade por que devem zelar os tribunais, os conhecimentos de seus elementos estruturais é de importância que não se pode claudicar.

Procurei destacar no presente estudo os diversos conceitos de obiter dictum apresentados até então pela doutrina brasileira e estrangeira, observando que há uma necessidade de consolidação da teoria do precedente brasileiro e nela incluída o papel dos argumentos de passagens, delimitando seu espaço e importância na identificação dos efeitos vinculantes do precedente.

A partir da delimitação conceitual, foram abordadas as implicações do obiter dictum no direito brasileiro e em especial, advertindo que não podem ser desconhecidas, posto que resultariam na impraticabilidade da aplicação dos precedentes.

Não é tarefa fácil para aqueles nativos da civil law decifrar com racionalidade as decisões proferidas pelos tribunais, exigindo-se para isso técnica e métodos, pois o precedente é que nos orientará nos casos futuros.

Um sistema de precedentes necessita de um conjunto doutrinário de qualidade com rigor conceitual para ser corretamente funcional e aplicável. Para tanto deve-se aprofundar os estudos a respeito da ratio decidindi complementado pelo estudo da importante disciplina da argumentação jurídica.

Igualmente destaco que as decisões dos juízes de primeiro grau devem conquistar o perfeito conhecimento e domínio das técnicas e aprimoramento da teoria do precedente que contribuem na prática com o cumprimento do princípio da motivação das decisões judiciais.

Muito embora o sistema de precedente da commom law seja diferente do nosso sistema herdado da civil law, o novo sistema de precedente obrigatório dependerá também de uma modificação no ensino acadêmico dos conceitos lógicos-jurídicos com a finalidade de valorizar e preservar a igualdade, segurança jurídica, integridade e coerência que tanto almejamos alcançar para obtenção de um ordenamento jurídico justo e de procedimento eficaz.

A relevância da distinção entre a ratio decidendi o obiter dictum é salutar, pois o que efetivamente tem o atributo vinculativo é apenas a ratio decidendi, por isso justifica-se a importância de pesquisas e aprofundamento do tema abordado nesse ensaio.

Sabemos que a ordem jurídica deve ser coerente, pois a mesma não é formada apenas de regras que regulam a vida em sociedade, mas também de princípios e decisões judiciais. Por outro lado, as decisões judicias devem ser coerentes e justas, não podendo apresentar julgamentos diferentes para casos iguais, o que revelaria um sistema incoerente e injusto, trazendo descrédito ao poder judiciário.

O novo ordenamento processual civil exige decisões fundamentadas que não se limitem a parafrasear textos de lei sem demonstrar relação com o real, devendo empregar conceitos jurídicos determinados, que não enfrentar todas os argumentos deduzidos na lide ou que se limite a invocar precedente judicial, enunciado de súmula sem demonstrar a existência de distinção no caso a ser apreciado ou superação do entendimento.

Impõe-se o rigor conceitual na linguagem dos operadores desse sistema, não se podendo dar lugar a julgamentos segundo conveniências de juízes, sendo, portanto, anuláveis por incompatíveis com o novo sistema.

Importante destacar que este trabalho não esgota o tema, mas é um ponto de partida para que o leitor possa refletir sobre as questões levantadas e chegar a suas conclusões, vislumbrando, assim, a possibilidade de que ocorram novas indagações sobre esse tema processual de grande importância.

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Sobre o autor
Ulisses Lopes de Souza Junior

Possui graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1999). Pós-graduação em Docência do Ensino Superior pelo Centro Universitário Estácio Bahia (2010). Pós­Graduação em Direito Civil e Processo Civil ­ Estácio (2015) ­ Professor Monitor no Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universitário Estácio FIB da Bahia. Curso de Direito ­Professor das disciplinas: Direito de Família, Introdução ao Estudo do Direito, Processo Civil I, Teoria Geral do Processo e Prática Simulada Civil e trabalhista. Professor na Unifass ­ Faculdade Apoio ­Curso Direito ­professor das disciplinas: Introdução ao Processo Civil, Estágio Supervisionado e Prática Simulada Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA JUNIOR, Ulisses Lopes Souza Junior. O obiter dictum no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5098, 16 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58383. Acesso em: 26 abr. 2024.

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