5. Antecedente da instituição da LRF: A renegociação das dívidas de Estados e Municípios:
De acordo com Puttomatti (2002:1),
“Embora a LRF seja um marco na história de gestão fiscal brasileira, ela significa apenas uma parte das iniciativas que foram implementadas para dar suporte ao ajuste fiscal de longo prazo. Os acordos de refinanciamento de dívidas entre a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e os estados, e, em seguida alguns municípios, bem como a legislação introduzindo limites para despesas de pessoal em todos os níveis de governo, são medidas estruturais importantes introduzidas desde 1995 que pavimentaram o caminho para a aprovação de uma lei mais abrangente como a LRF.”
Ainda segundo a mesma autora Puttomatti (2002:2),
“Os acordos de renegociação das dívidas entre a União, por meio da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), e os estados, e subseqüentemente, alguns municípios, tiveram um papel fundamental na consolidação do ajuste fiscal em níveis subnacionais. O crescimento exagerado da dívida dos governos subnacionais desde o início da década de 90 exigiu a intervenção do governo federal. Na ausência de regras para evitar o uso dos bancos estaduais para aumentar sua capacidade de tomar empréstimos, e, tendo como cenário macroeconômico um ambiente de inflação alta, muitos governos subnacionais utilizaram as instituições financeiras que controlavam para financiar seus déficits orçamentários. É importante destacar que não houve a preocupação em adotar nenhum tipo de mecanismo de avaliação de crédito para evitar o não pagamento dos empréstimos por parte dos estados aos seus respectivos credores, no caso, os bancos estaduais.”
Desta forma, em decorrência da inexistência de regramentos restritivos, os Governos Estaduais utilizavam suas instituições financeiras regionais para levantar recursos junto ao mercado financeiro. Depois, os Bancos Estaduais emprestavam as cifras arrecadadas junto ao mercado aos respectivos Governos Estaduais, sem exigir garantias e sem avaliar se esses Governos seriam efetivamente capazes de quitar os empréstimos no futuro.
A respeito do assunto objeto da citação anterior, é interessante destacar o caput do artigo 36 da LRF, o qual tem a seguinte redação: “É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo.”
De acordo com Puttomatti (2002:3),
“Os acordos de refinanciamento de dívidas reforçaram o controle federal sobre as finanças subnacionais por meio de rígidos mecanismos de sanção para não cumprimento das regras. (...) Um aspecto importante dos acordos de refinanciamento foi um maior acompanhamento das finanças estaduais por parte da STN, baseado na metodologia de avaliação da performance fiscal para pagamento das dívidas. Isso permitiu o início de um processo de consolidação sistemática dos dados fiscais muito antes da implementação da LRF. Ao mesmo tempo a introdução de limites e outros parâmetros fiscais pela LRF está consistente com aqueles utilizados nos acordos de refinanciamento das dívidas, portanto, facilitando a prestação de contas por parte dos governos subnacionais junto ao Tesouro Nacional. ”
A mencionada autora (2002:4) também informa que
“De maneira complementar ao programa de refinanciamento, foi aprovada a Resolução 78 de 1998, do Senado Federal, que estabeleceu condições mais rígidas para endividamento e novas operações de crédito internas e externas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de suas respectivas autarquias e fundações. ”
É relevante lembrar, conforme já mencionado, que o descontrole do endividamento dos Estados, no período entre 1994 e 1997, foi causado, em parte, pelas elevadas taxas de juros decorrentes da política monetária restritiva executada pelo Banco Central no primeiro mandato de FHC, o que, por sua vez, era provocado pela adoção da âncora cambial como fundamento para a obtenção da estabilização dos preços e do controle da inflação. Esse fator, qual seja, a política monetária de juros altos, em conjunto com a absorção dos já referidos “esqueletos fiscais”, representou o motivo mais importante para o incremento que houve nos débitos dos entes subnacionais na década de 90.
uma outra medida de ajuste fiscal adotada antes da instituição da LRF foi adoção do Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (PROES). Segundo Puttomatti (2002:4)
“(...) em setembro de 1997, um outro programa foi implementado para incentivar a redução da presença do setor público estadual na atividade financeira bancária, o PROES, com financiamentos para a privatização, extinção ou transformação em instituição não-financeira, inclusive agência de fomento, de instituições financeiras sob controle acionário da unidade da federação”.
6. O processo de implantação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF):
Segundo Abrucio e sazu (2003, passim 1-16) a construção da LRF resulta de um processo mais amplo de transformação das instituições e das preferências dos atores, que se sucedeu de forma incremental e no qual estiveram presentes fenômenos de path dependence e aprendizado social (social learning).
Path dependence (dependência da trajetória) se refere a um processo no qual as mudanças ocorridas num período afetam as modificações posteriores. Já social learning (aprendizado social) consiste na tentativa deliberada de ajustar os objetivos e instrumentais da política pública (policy) em resposta às experiências passadas e novas informações.
O processo de ajuste fiscal (política fiscal contracionista, com o aumento dos tributos e a redução dos gastos governamentais) e construção da LRF foi marcado tanto pelo incrementalismo e pelo fenômeno do path dependence quanto pelo aprendizado decorrente da experiência e de tentativas e erros que caracterizam o social learning. O incrementalismo diz respeito ao fato de que as mudanças não foram realizadas de uma vez só de modo global, e sim de forma gradativa e paulatina.
Isso se deveu a uma série de medidas tomadas ao longo da redemocratização pós ditadura civil militar de 64, as quais, se não lograram alcançar êxito imediato, fundamentaram avanços futuros. Entre estas, destacam-se a criação da Secretaria do Tesouro Nacional e a racionalização do processo orçamentário no âmbito do Poder Executivo, bem como o retorno do fluxo de recursos externos a partir de 1993, como reflexo da renegociação da questão da dívida externa com os credores internacionais chefiada pelo então Presidente do Banco Central Pedro Malan. Além desses fatos pode-se acrescentar outros tópicos que fizeram parte do processo de organização institucional das finanças públicas brasileiras nas décadas de 80 e 90, tais como o fim da conta movimento no Banco do Brasil, a implantação do Sistema de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI), o fim do orçamento monetário, a explicitação, no Orçamento Geral da União, dos subsídios federais à agricultura e à exportação, a desvinculação de recursos da União (DRU), e a já referida criação da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) para ser o órgão responsável pela execução da política fiscal da União, entre outros itens relevantes.
Não obstante, as modificações não ocorreram com base em reformas do tipo “once for all” (de uma vez por todas). Ao contrário, foram implementadas gradualmente e com base no aprendizado resultante dos erros anteriores. É aqui que entram os conceitos de dependência da trajetória e aprendizado social como ferramentas importantes na explicação das alterações fiscais, especialmente no que tange à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Pode-se considerar que o aprendizado institucional assimilado pelo Governo Itamar Franco, na gestão de Fernando Henrique Cardoso no Ministério da Fazenda, foi relativo às tentativas fracassadas de implementação de planos de estabilização econômica e de reformas monetárias malogradas que ocorreram na segunda metade dos anos oitenta (Planos Cruzado, Bresser e Verão) e no início dos anos noventa (Planos Collor I e II) e que lançaram mão de mecanismos como o congelamento de preços e salários, confisco da poupança entre outros instrumentos heterodoxos.
Ainda de acordo com Abrucio e Asazu (2003, passim 1-16), contrapondo-se às experiências anteriores de estabilização e reforma econômica, a agenda da reforma fiscal foi levada adiante, no final da primeira metade dos anos 90, de forma paulatina e gradual, registrando avanços e recuos e envolvendo ainda negociações com os diversos atores envolvidos no contexto político brasileiro caracterizado por fatores que complicam a governabilidade, tais como o federalismo, o presidencialismo de coalizão, o multipartidarismo e a fragmentação política.
Abrucio e Asazu (2003:8) ressaltam a importância do uso hábil, nesse processo de reordenamento fiscal, por parte do Executivo, dos mecanismos institucionais no interior do Legislativo. Dentre os mecanismos constitucionais pró-Executivo existentes no âmbito do Legislativo, além da possibilidade de edição das Medidas Provisórias pelo Presidente da República, destaca-se o dispositivo constitucional contido no artigo 64, § 1º, o qual preconiza que “O Presidente da República poderá solicitar urgência para apreciação de projetos de sua iniciativa.” Além disso, de acordo com o mesmo artigo 64, § 2º da Carta Política, caso a Câmara dos Deputados e o Senado Federal não apreciem os projetos de Lei do Presidente da República para os quais foi solicitada a urgência em até quarenta e cinco dias, sobrestar-se-ão todas as demais deliberações legislativas da respectiva Casa, com exceção das que tenham prazo constitucional determinado, até que se ultime a votação. A utilização desses mecanismos foi importante para agilizar e dar celeridade à tramitação do projeto da LRF.
Segundo Abrucio e Asazu (2003, passim 1-16), as mudanças na ordem fiscal se sucederam, primeiramente, num contexto de centralização dos poderes da União e enfraquecimento dos governos subnacionais. O sucesso do Plano Real explica em grande parte a modificação do jogo federativo, a partir da qual o governo federal conquistou legitimidade para criar um novo paradigma de relações financeiras entre os diferentes níveis de governo. O equacionamento do déficit público e o equilíbrio das contas públicas, presentes nas medidas adotadas nesse período – do Programa de Ação Imediata (PAI), de 1993, à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de 2000 –, foram premissas básicas na nova correlação de forças atinente às relações federativas entre o ente central e as unidades federadas. A implementação dessa nova agenda fiscal seguiu uma lógica de dependência da trajetória e incremental, diferentemente dos programas de ajuste que a antecederam, o que também sugere que houve aprendizado político nesse processo. Cada medida implementada gerou uma nova situação e mudança nas preferências dos atores, viabilizando a implementação das medidas seguintes. A Lei de Renegociação das Dívidas de Estados, Distrito Federal e Municípios, de 1997, as Leis Camata 1 e 2, que tentaram limitar os gastos com funcionalismo, as restrições à emissão de títulos e de operações de crédito de Antecipação de Receita Orçamentária (AROs) pelos entes subnacionais constituíram antecedentes que depois foram contemplados na LRF, na qual foram estabelecidos percentuais máximos de dispêndios com servidores ativos e inativos por Poder e por esfera da federação.
7. O impacto da LRF na estrutura organizacional da STN:
A partir do início do segundo mandato de FHC, para tentar remediar a precária situação fiscal do Brasil em 1999, quando foi assinado o acordo de empréstimo de US$ 41 bilhões com o Fundo Monetário Internacional (FMI), houve o início da elaboração do projeto de lei da LRF, a qual instituiu mecanismos de controle mais rígidos sobre o endividamento dos entes subnacionais, atribuindo ao Ministério da Fazenda, segundo o caput do artigo 32 da referida Lei, a incumbência de verificar “o cumprimento dos limites e condições relativos à realização de operações de crédito de cada ente da Federação, inclusive das empresas por eles controladas, direta ou indiretamente.”
Dentro da estrutura organizacional interna do Ministério da Fazenda, o qual é integrado por órgãos singulares (tais como as Secretarias da Receita Federal do Brasil, do Tesouro Nacional, a de Política Econômica etc) e entidades (tais como a autarquia Banco Central do Brasil e a sociedade de economia mista Banco do Brasil), o órgão que foi encarregado de exercer este controle mais rigoroso sobre o endividamento dos entes subnacionais foi a STN, principalmente no que tange à contratação de operações de crédito pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, tendo sido criada, dentro da sua estrutura organizacional, a Coordenação Geral de Operações de Crédito de Estados e Municípios (COPEM).
O regimento interno da STN foi modificado para incluir a COPEM na estrutura organizacional desta instituição. De acordo com o caput do artigo 94 do aludido normativo é atribuição da COPEM:
“Art. 94. À Coordenação-Geral de Operações de Crédito de Estados e Municípios (COPEM) compete:
I - coordenar, supervisionar e avaliar a execução das atividades relativas à Análise de Operações de Crédito de Estados, Distrito Federal e Municípios;
II - verificar os limites e condições para a contratação de operações de crédito pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, nos termos do art. 32 da Lei Complementar nº 101, de 2000;
III - instruir os processos de autorização de operações de crédito externo de Estados, do Distrito Federal e Municípios, dirigidos ao Senado Federal conforme procedimentos definidos por aquela Casa Legislativa;
IV - acompanhar as alterações ocorridas nos demonstrativos fiscais referentes aos Estados, Distrito Federal e Municípios e propor as adaptações devidas nos sistemas de coleta e consolidação de informações provenientes dos Relatórios de Gestão Fiscal e Relatório Resumido de Execução Orçamentária;
V - acompanhar e propor, no âmbito de suas atribuições, normas reguladoras e disciplinadoras relativas aos limites e condições de endividamento dos Estados, Distrito Federal e Municípios;
VI - acompanhar os aspectos fiscais relacionados aos limites e condições de endividamento dos Estados, Distrito Federal e Municípios;
VII - verificar os limites e condições para a concessão de garantias da União para os Estados, Distrito Federal e Municípios, incluindo suas autarquias, fundos e empresas estatais;
VIII - participar do processo de negociação de operações de crédito interno ou externo dos Estados, Distrito Federal e Municípios, incluindo suas autarquias, fundos e empresas estatais, que envolvam a garantia da União;
IX - assistir o Secretário do Tesouro Nacional na COFIEX, e em seus grupos técnicos, relativamente às operações de crédito externo de Estados, Distrito Federal e Municípios, incluindo suas autarquias, fundos e empresas estatais;
X - manifestar-se junto ao BCB, para efeito de credenciamento dos Estados, Distrito Federal e Municípios, incluindo suas autarquias, fundos e empresas estatais, na contratação de operações de crédito externo;
XI - encaminhar periodicamente ao Senado Federal as principais características das operações de crédito e concessão de garantias analisadas;
XII - divulgar no sítio da Secretaria, dados atualizados relativos a informações fiscais e de endividamento dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no que tange à Lei Complementar nº 101, de 2000; e
XIII - disponibilizar ao público interessado instrutorias sobre os procedimentos legais para verificação de limites, condições e análise da garantia da União constantes no Manual para Instrução de Pleitos – MIP. ”