2 CONCEITO DE FAMÍLIA E ENTIDADE FAMILIAR
2.1 Evolução histórica do conceito de família
Falar sobre o Direito de Família requer um estudo histórico sobre esta enquanto instituição. O homem sempre viu a necessidade de viver em sociedade, buscando sempre unir-se a alguém em busca da felicidade e da autorrealização.
Até chegar no atual conceito de família, este sofreu diversas mutações. Aqui faremos um breve estudo salientando algumas passagens para melhor compreensão do atual modelo familiar.
De acordo com Cristiano Chaves, segundo referencia Roniele Ferreira Netto e Renata Magalhães Ruas,
a família na história dos agrupamentos humanos, é o que precede a todos os demais, como fenômeno biológico e como fenômeno social, motivo pelo qual é preciso compreendê-la por diferentes ângulos (perspectivas científicas), numa espécie de paleontologia social.[21]
A família é reconhecidamente um organismo cultural e mutaciona de acordo com a criação humana, acompanhando as evoluções da sociedade com o decorrer da modificação de seus costumes, crenças, cultura e moral.
Nas palavras de Euclides de Oliveira
Há, sim, uma imortalização na ideia de família. Mudam os costumes, mudam os homens, muda a história; só parece não mudar esta verdade: “a atávica necessidade que cada um de nós sente de saber que, em algum lugar, encontra-se o seu porto e o seu refúgio, vale dizer, o seio de sua família, este lócus que se renova sempre como ponto de referência central do indivíduo na sociedade; uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança que dificilmente pode ser substituída por qualquer outra forma de convivência social”. Na ideia de família, o que mais importa – a cada um de seus membros, e a todos a um só tempo – é exatamente pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças e valores, permitindo a cada um, se sentir a caminho da realização de seu projeto pessoal de felicidade.[22]
Ela é reconhecida, desde muito antes de nossa Carta Magna assim determinar expressamente, como célula germinadora do Estado e da sociedade, visto que a família antecede ambos.
Nos primórdios, nas sociedades denominadas primitivas, era comum a poligamia, tanto a pologinia (grego: poly – muitas, gyne – mulheres; aquele relacionamento em que existem várias mulheres) como a poliandria (grego: poly – muitos, andros – homem; aquele relacionamento com a presença de vários homens).
Nessa primeira fase, os filhos havidos eram considerados comuns. Imperava o que Engels (1984), segundo cita Ana Paula de Jesus Passos Luna em seu artigo “O novo conceito de família – evolução histórica e repercussão no ordenamento jurídico brasileiro”, denominou como “matrimônio por grupos”.
Este modelo era possível graças a compersão (termo utilizado para denominar a ausência ou superação dos ciúmes). A partir do momento em que o ciúmes começou a se fazer presente, não mais foi possível viver de uma maneira livre, como antes.
A partir de então, começaram as maiores transformações nos modelos familiares até chegarmos ao que temos atualmente.
Engels divide estas transformações em 04 (quatro) etapas: família consanguínea, punaluana, pré-monogâmica ou sindiásmica e monogâmica.
“Nela, os grupos conjugais se separam por gerações. Todos os avôs e avós, dentro dos limites da família, são em seu conjunto, marido e mulher entre si. ”[23]
Com o surgimento da percepção de incesto, surge, também, a família punaluana (punalua = companheiro íntimo). Nesta, eram proibidos os relacionamentos entre membros da própria família. Inicialmente, excluiu-se os aqueles entre pais e filhos, mais adiante excluiu-se, também, os relacionamentos entre irmãos. Em seu auge fora proibido até mesmo o relacionamento entre primos de segundo e terceiro graus.
Segundo nos ensina Friedrich Engels, nesses “matrimônios por grupos”, enfatizava-se a relação entre mães e filhos, uma vez que não era possível descobrir quem era o pai.
Em todas as formas de famílias por grupos, não se pode saber com certeza quem é o pai de uma criança, mas sabe-se quem é a mãe. Muito embora ela chame seus filhos a todos da família comum e tenha para com eles deveres maternais, a verdade é que sabe distinguir seus próprios filhos dos demais. É claro, portanto, que, em toda a parte onde subsiste o casamento por grupos, a descendência só pode ser estabelecida do lado materno e, portanto, reconhece-se apenas a linhagem feminina. De fato, é isso que ocorro com todos os povos que se encontram no estado selvagem e no estado inferior da barbárie [duas das três fases históricas citadas por Rodrigo da Cunha Pereira para a evolução da família em “Direito de Família: uma abordagem psicanalítica”. Belo Horizonte: Del rey, 2003. P.12]. [24]
Assim, a família começa a se fortalecer como uma instituição social e religiosa. Com esse fortalecimento, temos o surgimento da fase Sindiásmica ou Pré-Monogâmica.
Como sugerido pelo próprio nome, aqui começa a ser extinto o casamento em grupo, começando a ser visto um primeiro molde de um casamento monogâmico. Contudo, nessa fase, somente as mulheres eram proibidas de relacionar-se com mais de um homem, devendo-lhe respeito e fidelidade. Este direito era apenas pertinente aos homens, desde que a concubina não fosse levada ao lar conjugal.
Esta fase trouxe consigo também a possibilidade da dissolução conjugal, pelo varão ou repúdio de sua esposa, no caso de infidelidade ou esterilidade. No entanto, os filhos permaneciam com a mãe. Assim, temos que a família era formada em torno da mulher, pois nos outros modelos familiares, não havia dificuldade de encontrar mulheres para se relacionar, o que não era uma verdade neste modelo, visto que a varoa apenas podia relacionar-se com um homem.
Com o tempo, a busca pela procriação, pelas riquezas e conservação dos bens que haviam construídos fez com que cada vez mais os homens se mantivessem somente com uma esposa. Com essas transformações instituiu-se o patriarcalismo, no lugar da família matriarcal e, com este, instituiu-se a monogamia.
Conforme podemos perceber, a família já teve diversas funções, passando desde o político ao procracional, religioso e até mesmo econômico. Algumas destas características permanecem até os tempos modernos.
Nosso ordenamento jurídico, inicialmente baseou-se no conceito e estruturação familiar adotada pelo direito romano, calcada na fase monogâmica da evolução familiar anteriormente estudada. Neste, a família era uma unidade econômica, religiosa, política e jurisdicional, que era organizada em torno do pater famílias, ou seja, em torno do homem.
Aqui, a mulher não tinha sequer capacidade jurídica, era dependente do homem. O papel da mulher neste modelo familiar era de procriação e cuidar do lar e dos filhos.
Desta forma, algumas atitudes que a mulher tinha era hipervalorizada numa visão ruim e depreciativa, sendo até mesmo consideradas crimes, quando para o homem eram vistas como algo honroso ou, quando ruim, um leve desagrado.
A própria palavra “família” tem origem romana, significando famulus. Na origem da palavra era tomada como escravo, referindo-se não somente à família, mas igualmente aos servos e parentes que se encontravam sob a autoridade do pater famílias (LEITE 2005, p.23).
Tal conceito de família foi adaptado pela Igreja Católica, tornando o casamento em uma instituição sacralizada e indissolúvel, independentemente da existência de afeto. Esta união era o único meio formador da família cristã, que necessariamente era composta por um homem e uma mulher.
Para a convalidação desta união era de suma importância a copulação do casal. Desta forma, manteve-se a função primordial da procriação no casamento.
2.2 A família no código civil de 19616
O modelo patriarcal, hierarquizado, monogâmico, sexista, onde a família funcionava como uma unidade econômica, era claramente observado em nosso antigo diploma Civil (1916), influência de nossa colonização portuguesa.
Tal diploma não admitia outra forma de constituição de família que não fosse através do casamento, resquício deixado pelo período canônico. Por óbvio que havia pessoas que vivam tal tipo de relacionamento, contudo, eram discriminadas, bem como os filhos havidos por tal relação, relações estas que receberam o nome de concubinato.
Tampouco era admitia a dissolução do casamento, sendo possível apenas uma separação de corpos, caso em que a mulher sofria discriminação pela sociedade, passando a ser mal vista. Apenas era aceita a anulação do casamento pelo marido, no caso de sua mulher ser considerada desonesta, o que era denominado desquite.
A supremacia do homem sobre a mulher era atestada em diversos artigos deste que foi o primeiro Código Civil da República. Como exemplo maior temos o artigo 233 que expressava o papel do homem como chefe da família (“o marido é o chefe da sociedade conjugal...”).
Neste modelo familiar a mulher teve, até mesmo, a sua capacidade mitigada, sendo sempre relativamente capaz, dependendo da anuidade e consentimento do marido para a prática dos atos da vida civil como, por exemplo, trabalhar, nunca adquirindo uma capacidade plena.
Outro exemplo de supressão da mulher, em detrimento da autoridade do marido, que era o chefe da família nesta época era o caso de divergência, na qual prevaleceria o entendimento e as vontades do marido.
Eduardo de Oliveira Leite, em sua obra “Direito Civil Aplicado” (São Paulo: revista dos Tribunais, 2005. V. 5) dividiu o Direito de Família em três temas, quais sejam o casamento, o parentesco e os institutos de direito protetivo, como tutela, curatela, ausência.
Marise Soares Corrêa ressalta:
Assim, deve-se comentar também que a família brasileira guardou as marcas de suas origens: da família romana, a autoridade do chefe de família; e da medieval, o caráter sacramental do casamento. Desta maneira, a submissão da esposa e dos filhos ao marido, ao tornar o homem o chefe de família (...) encontra a sua origem no poder despótico do pater famílias romano. Ainda o caráter sacramental do casamento advém do Concílio de Trento, do século XVI.[25]
Na transição para o que temos como modelo e conceito atual de família, houveram algumas leis esparsas que inicialmente diminuíram as desigualdades, como o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62), fazendo com que esta passasse de “subordinada” a colaboradora do marido na sociedade conjugal e recuperasse a sua capacidade plena, e a Lei do Divórcio (Lei 6.515/77), sepultando a impossibilidade de dissolução do casamento.
2.3 A família constitucionalizada de 1988 e no código civil de 2002
Com a Revolução industrial, ocorreu o início da derrocada do modelo institucionalizado de família, por causa da necessidade de mais mão de obra, fazendo com que a mulher ingressasse no mercado de trabalho.
A Constituição da República foi o maior marco para todas as alterações havidas posteriormente no Direito de Família, alterando, inclusive, o conceito de família. Esta definiu a família com os preceitos da igualdade, da liberdade e com a máxima da dignidade da pessoa humana.
Três grandes modificações sofridas no Direito de Família com a vigência deste novo parâmetro foram a ampliação das formas de constituição da família, a família pluralizada ou eudemonista, a facilitação da dissolução do casamento e a igualdade de deveres e direitos entre o homem e a mulher na sociedade conjugal.
Nas palavras de Maria Berenice Dias:
o eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido de busca pelo sujeito de sua felicidade. A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento altera o sentido da proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se interfere da primeira parte do §8° do artigo 226 da CF: o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos componentes que a integram.[26]
Em decorrência das alterações trazidas pela nova Constituição, o Código Civil de 19616 perdeu muito a sua força, surgindo assim diversas leis para adequar a família aos novos preceitos Constitucionais, como, por exemplo, a Lei da União Estável 8.971/94 e 9.278/96. Não seria possível vivermos na sociedade atual com Leis do século passado, devendo estas se atualizar com a evolução da sociedade.
Com tantas evoluções à vista, foi elaborado um novo diploma Civil, que entrou em vigor no ano de 2003. Contudo, o projeto original deste diploma denominado “novo” era datado de 1975, sendo, portanto, anterior até mesmo à Constituição. Assim, estava em desacordo com a Carta Magna vigente, sofrendo diversas alterações e emendas visando a consonância com a Lei Maior, visto que já nascera velho.
Ana Clara Matos nos ensina:
Do ponto de vista legislativo, o advento da Constituição de 1988 inaugurou uma diferenciada análise jurídica das famílias brasileiras. Uma outra concepção de família tomou corpo no ordenamento. O casamento não é mais a base única desta entidade, questionando-se a idéia da família restritamente matrimonial. Isto se constata por não mais dever a formalidade ser o foco predominante, mas sim o afeto recíproco entre os membros que a compõem redimensionando-se a valorização jurídica das famílias extrapatrimoniais.[27]
A Carta Federativa trouxe um novo modelo familiar calcado na família pluralizada, igualitária, democrática, hétero ou homoparental. Neste novo modelo familiar, esta passa a ter o afeto como o seu maior e principal meio de formação, de modo que se ampliou as maneiras de se constituir família, dando especial proteção à todas elas, conforme expressa o artigo 226, §§3° e 4°
Artigo 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
Este é um ponto de muito questionamento e divergência na doutrina, pois parte da doutrina entende que o legislador exauriu os modelos familiares reconhecidos, sendo taxativos os três modelos familiares apresentados no texto constitucional (Família Casamentaria, União Estável e Família Monoparental).
Para estes doutrinadores, não é possível conferir status de família a outros modelos além dos explicitados, mais especificamente à família poliafetiva, objeto de estudo do presente trabalho, pois a família tem como pressupostos a fidelidade e a lealdade, além de se submeter ao (sub-) princípio da monogamia.
Desta forma, caso comprovada a existência de um relacionamento paralelo à uma família (formada por quaisquer modelos dentre os 3 anteriormente explicitado), é possível a aplicação da Súmula n° 380 do STF, onde equipara este relacionamento estranho à sociedade conjugal à uma sociedade de fato, prestando-lhe apenas indenização por serviços prestados.
Esta situação é degradante e humilhante, conflitante diretamente com tudo o que é pregado e explicitado pela Carta magna.
Para uma maior parcela da doutrina, o artigo é meramente exemplificativo, devendo ser reconhecida toda e qualquer forma de constituição de família, desde que respeitada a máxima do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Para esta parcela, os três modelos familiares foram citados expressamente na Constituição apenas por serem os modelos mais comuns encontrados na sociedade.
Quando tratamos de liberdade, é uma liberdade lato sensu, englobando a livre escolha do parceiro e, também, a livre escolha da maneira que se deseja constituir, manter e extinguir a entidade familiar.
Para Luiz Netto Lôbo, segundo Mariana Rodrigues Rendwanski,
O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas consequências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução “a família, constituída pelo casamento, união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”. A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos.[28]
O caput do artigo, anteriormente mencionado, da Constituição Federal, traz uma conceituação genérica e indeterminada de família, afirmando apenas que esta tem especial proteção do estado, porquanto abrangeria todas as demais formas de família que se encaixarem dentro da sua conceituação.
Para o Autor, conforme citado por Mariana Rodrigues Rendwanski,
A Carta Federal não é um sistema fechado, hermético; ao contrário se abebera das novidades da vida social e admite a atualização de seus princípios e regras, para não se engessar suas conquistas.[29]
Partindo deste princípio, deve-se, sempre, fazer a melhor interpretação de seus artigos. Por melhor interpretação, entende-se aquela que engloba o maior número de possibilidade e cidadãos, sem excluí-los ou discriminá-los por quais quer motivos. Exemplo concreto de tal interpretação pode ser dado citando o próprio Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou, em sentido vinculante e eficácia erga omnes, o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar[30]
A Constituição conferiu proteção à família. Contudo, é muito difícil concretamente conceituar o que seria família nos tempos atuais, dadas as mais diversas combinações possíveis e por não ser, este, um conceito imutável, estático. Contudo, é possível afirmar que a proteção conferida engloba todo e qualquer grupamento de pessoas onde se encontre o vínculo afetivo, onde os seus integrantes se enxerguem como família. Onde há um suporte emocional que proporciona o (s) outro (s) encontrar (em) a sua felicidade e realização pessoal.
“A família identifica-se pela comunhão de vida, de amor e de afeto no pão de igualdade, de liberdade, de solidariedade e de responsabilidade recíproca”, de acordo com Maria Berenice Dias.[31]
Imperioso ressaltar que o código as protege, com base no princípio da isonomia igualmente, não havendo qualquer tipo de hierarquia entre elas. Caso contrário, estaríamos legitimando uma possível desigualdade que nos levaria à resultados odiosos.
Desta forma, consoante o entendimento de Silvana Maria Carbonera, ”(...) o afeto, que começou como um sentimento unicamente interessante para aqueles que o sentiam, passou a ter importância externa e ingressou no meio jurídico”.[32]
Não obstante todas as mudanças ocorridas em nosso ordenamento jurídico, e, mais ainda, na sociedade, “pensar em família ainda traz a mente o modelo convencional, um homem e uma mulher unidos pelo casamento e cercados de filhos”.[33]
Esse pensamento conservador, apesar de não tão explicitado nos tempos atuais, ainda é o motivo de muitas discriminações em nossa sociedade. Discriminações que geram uma certa perseguição aos modelos não convencionais de família, como no caso da família poliafetiva. Estes mesmo olhares discriminatórios já pairaram sobre as uniões estáveis, anteriormente denominadas concubinato e, até recentemente, sobre as uniões homoafetivas, que eram repudiadas e não reconhecidas como entidades familiares, não gozando de qualquer proteção pelo Estado.
Em livre interpretação sobre o afirmado pela jurista Maria Berenice Dias, “mais do que uma sociedade de fato [como há muito fora considerada], trata-se de uma sociedade de afeto (...)”[34] seguindo e respeitando os mesmo preceitos de uma relação monogâmica (hétero ou homoafetiva).
Este modelo familiar de fato existe em nossa sociedade e não é dos tempos atuais. Desde o início da história das relações familiares, conforme estudado anteriormente, é possível verificar a existência de relacionamentos entre mais de duas pessoas.
Estes relacionamentos, com o passar dos anos, apenas foram sendo mascarados e escondidos, feitos à margem da sociedade e do próprio direito, por muitas vezes até mesmo sobre a forma de traição. Contudo, há quem tenha optado por conviver desta forma, respeitando a afetividade, a solidariedade e a dignidade de todos os envolvidos.
Ainda citando a grandiosa jurista DIAS, “Não se pode fugir de estabelecer analogia com as demais relações que têm o afeto por causa, ou seja, o casamento e as uniões estáveis. Não se podem confundir questões jurídicas com as questões morais e religiosas”.[35]
Estes relacionamentos, por muitas vezes, ostentam uma vida comum e pública, calcadas na afetividade, convergindo para a comunhão dos interesses dos envolvidos em busca de suas realizações pessoais, objetivando constituir uma família. Elas, de fato, são uma família, apesar da reticência do seu reconhecimento e aceitação pela sociedade e pelo judiciário. Porém, por serem uma família de fato, não pode, o direito, fechar os olhos e negar-lhes que este relacionamento gera efetivos direitos e deveres, devendo o legislativo ou o judiciário, subsidiariamente, ampará-las legalmente.
A derrocada do modelo sacralizado do matrimônio é um grande avanço no sentido da possibilidade de reconhecimento das mais diversas entidades familiares, pois a sua impossibilidade de convergência em casamento, não pode condená-la à invisibilidade.
Há que se reconhecer os preceitos maiores da liberdade de escolha do(a, os, as) parceiro(a, os, as), da livre formação da entidade familiar, da menor intervenção estatal e mais ainda, da dignidade da pessoa humana. Quando três ou mais pessoas decidem por bem conviver numa mesma família, não lhes carece a transparência e a lealdade, requisitos para o seu reconhecimento como entidade. Desta forma, não há como deixar de se reconhecer a validade deste relacionamento.
Negar-lhes esta validade, seria negar o reconhecimento de todos os direitos no âmbito do Direito de Família e Sucessório. A reticência negativa deste modelo familiar é proveniente de pré-conceitos e engessamento do pensamento. O amor não há como ser destruidor, visto que é um sentimento verdadeiro e puro, visando a sempre agregar, como já dito na música “Amar Alguém” da Marisa Monte:
Amar alguém só pode fazer bem
Não há como fazer mal a ninguém
Mesmo quando existe um outro alguém
Mesmo quando isso não convém
Amar alguém e outro alguém também
É coisa que acontece sem razão
Embora soma, causa e divisão
Amar alguém só pode fazer bem[36]