Famílias poliafetivas e a sucessão legítima

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3 DIREITO SUCESSÓRIO

3.1 Sucessão Hereditária

A sucessão é uma das muitas modalidades de aquisição de posse previstas pela legislação pátria. A sucessão hereditária, prevista no Código Civil de 2002, ocorre somente nos casos de falecimento e tem por finalidade, definir o destino do patrimônio do de cujus. Ela tem a sua abertura no exato momento do falecimento e segue regras criteriosas definidas na citada lei civil.

O Diploma Civil de 2002 estipulou duas modalidades sucessórias, a testamentária e a legítima. Por ser mais comum e frequente a sucessão legítima, trataremos mais especificamente dela na presente monografia.

3.1.1 Sucessão Legítima.

A sucessão legítima é aplicada por força de lei e em 2 casos específicos. O primeiro, é quando o falecido não deixou testamento; o segundo, é quando o testamento for caduco, inválido, revogado ou ainda quando não englobar e dispor sobre todos os bens que o falecido possuía. Neste caso, estes bens olvidados ou deixados fora do testamento obedecerão ao regramento da sucessão legítima.

Em ambos os casos são convocados os herdeiros legítimos (aqueles indicados pela lei), seguindo a ordem da vocação hereditária, estipulada pelo Código Civil no artigo 1.829

Art. 1829 sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III - ao cônjuge sobrevivente;

IV - aos colaterais.

Grande inovação trazida neste diploma legal é a escalação do cônjuge como herdeiro necessário, disposto no artigo 1.845 da referida lei. O Código Civil de 1.916 não elencava o cônjuge como herdeiro necessário, podendo ser afastado da sucessão pela via testamentária. Uma grave consequência desse afastamento era a exclusão do cônjuge na sucessão no caso de dissolução da sociedade conjugal.

Herdeiro necessário, como o próprio nome explicita, são aqueles necessários, que não podem ser excluídos da sucessão.

Desde o Novo CC/02, o cônjuge passou a ter direito à herança, além da meação. A meação é a parte que cabe ao cônjuge supérstite e se constitui da metade dos bens comuns, aqueles adquiridos na constância da entidade familiar. Ela é, pois, uma consequência da conjugalidade, não se confundindo com a sucessão ou a herança propriamente dita.

Imperioso ressaltar que o disposto no artigo 1.829, a respeito da vocação hereditária, apenas se aplica para as sucessões iniciadas após a vigência do novo diploma legal. Para aquelas que tiveram sua abertura anterior ao novo código, este é categórico ao afirmar, no artigo 2.041, que a sucessão respeitará o disposto no Código de 1.916.

 Por força do artigo 1.830 do Código Civil, é condição que o cônjuge sobrevivente, para que tenha direito sucessório do de cujus, não esteja separado judicialmente, ou de fato por tempo superior à 02 (dois) anos. Desta forma, nem todo cônjuge sobrevivente tem direito à sucessão.

Pela vocação hereditária prevista no artigo 1.829 da legislação civil, o cônjuge concorrerá com os descendentes e, na falta desses, concorrerá com os ascendentes. Na ausência de ambos, a sucessão será deferida integralmente ao cônjuge, segundo dispositivo 1.837 daquela mesma legislação.

No caso da concorrência com os ascendentes, esta ocorre em qualquer que seja o regime de bens que vige a sociedade conjugal. Já no tocante à concorrência com os descentes, esta depende do regime adotado pelo pacto antenupcial, não concorrendo nos casos de separação obrigatória de bens, prevista no artigo 1.641 do diploma civil e quando for adotada a comunhão universal de bens.

O pacto antenupcial é onde se determina o regime de bens adotado na constância do relacionamento, devendo ser celebrado por meio de instrumento público, sendo esse solene, sob pena de nulidade. Havendo qualquer vício no documento, o regime adotado será o da comunhão parcial de bens, assim como na ausência de definição pelos constantes da sociedade conjugal, caso em que o Estado supre esta vontade (artigo 1.640, CC/02).

Por esta razão, faz-se mister um breve estudo sobre os possíveis regimes previstos na legislação pátria.

O primeiro regime a ser estudado será o da comunhão parcial de bens, por ser o mais comum e a regra geral. Previsto nos artigos 1.658 e seguintes. À exceção das hipóteses do artigo 1.659, os bens adquiridos na constância do relacionamento comunicam-se pertencendo à ambos do casal.

Já no regime da comunhão universal de bens, prevista nos artigos 1.667 e seguintes, determina que todos os bens se comunicam, mesmo aqueles adquiridos antes do relacionamento; com exceção prevista no artigo 1.668. O oposto ocorre na separação de bens, onde nenhum bem se comunica, devendo cada um contribuir para as despesas do casal na proporção de seus rendimentos.

Outra inovação trazida pela nova legislação civil vigente foi o regime da participação final dos aquestos, prevista pelo artigo 1.672 e seguintes. Neste regime de bens, seguirá como uma separação de bens, não se comunicando os bens contudo, na dissolução da conjugalidade, aplicar-se-á como uma comunhão parcial, excluindo desta os bens anteriores à sociedade e aqueles sub-rogados, os que sobrevieram a cada cônjuge por sucessão ou liberalidade e as dívidas relativas a esses bens.

3.2 Sucessão do Companheiro (a)

O Códex Civil traz em seu artigo 1.725 a regra sucessória daqueles que mantém união estável, sendo esta equiparada ao casamento mantido sob o regime da comunhão parcial de bens, desde que não haja contrato escrito entre os conviventes dispondo de maneira diversa.

O artigo 1.790 daquela mesma lei traz regras mais específicas no tocante à sucessão do companheiro. Regras como a limitação a quota equivalente àquela atribuída ao filho, caso seja filho comum, em não sendo, aquele teria direito tão somente a metade do que couber a cada filho.

Caso concorra com outros parentes, terá direito somente a 1/3 (um terço) da herança. Na ausência de outros parentes, diferentemente do casamento civil, onde o cônjuge herda toda a herança, o companheiro herda somente os bens adquiridos onerosamente na constância da união, excluindo-se os bens particulares. Não é garantido, ainda, ao cônjuge, a beneficie do artigo 1.832.

Por estas razões, não se pode falar numa isonomia. Claramente há uma deterioração da união estável em face ao casamento. Por fazer estas diferenciações esta previsão fere gravemente a máxima da dignidade da pessoa humana, princípio basilar de todo nosso ordenamento jurídico atual, bem como a proibição do retrocesso social, como estudado nos pontos 1.1 e 1.7 do Capítulo 1 da presente monografia.

3.3 Sucessão Poliafetiva

Se a união estável, que já é reconhecida e regulamentada pelo ordenamento pátrio, sofre diversos preconceitos do próprio direito, conforme visto acima no tocante à sucessão, a união poliafetiva, constante de 3 ou mais pessoas, carece totalmente de reconhecimento e proteção legal para seus membros. Por ser mais comum o relacionamento a três nas suas mais diversas configurações (três pessoas do mesmo sexo ou duas do mesmo sexo e uma de sexo diferente), trataremos apenas dos relacionamentos à 03 (três).

Muitas vezes, ainda é possível encontrar o termo pejorativo concubinato para definir estas relações, mesmo quando há o consentimento de todos os envolvidos, convivendo com o intuito de formar uma família, constituindo, assim, em conformidade com todos os princípios do direito de família e em analogia à união estável, uma entidade familiar.

Ademais, deve, para ser reconhecida de tal forma, preencher os requisitos previstos no artigo 1.723 do códex civil, quais sejam a convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família.

Imperioso ressaltar que no presente estudo trataremos somente daquelas uniões onde é respeitada a boa-fé de todos os envolvidos no relacionamento, ou seja, onde todos os envolvidos têm conhecimento uns dos outros e se aceitam dessa forma. Caso contrário, não passaria de uma traição à parte que ignora o relacionamento mantido junto ao 3° (terceiro) envolvido.

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Por ser análoga à união estável, que, por sua vez, é equiparável ao casamento, estas uniões merecem total proteção do estado, tanto na constância da mesma quanto no momento de sua dissolução ou sucessão.

Por tratar tão somente sobre o direito sucessório no presente estudo, atentaremos, por óbvio, a este ponto específico do direito.

O cônjuge supérstite, como estudado anteriormente neste mesmo capítulo, goza do direito à meação, constante da metade dos bens adquiridos na constância da sociedade conjugal. Quando tratamos de direito poliafetivo, temos mais de 2 pessoas envolvidas, em se tratando de três pessoas, como dito no início deste tópico, tratamos da triação (PORTANOVA, 2005).

Triação é a meação que se transmuda para atender à necessidade específica deste tipo de relacionamento, constante da terça parte dos bens adquiridos na constância da conjugalidade, respeitando-se desta forma o princípio da igualdade.

Por respeitar o princípio da igualdade, os bens serão divididos pelo método da triação apenas a partir do momento em que se configurar e estabelecer a união tríplice. Caso aja uma união dúplice superveniente, os bens adquiridos na constância dessa união dúplice seguirão o critério da meação.

Conforme Marília Andrade dos Santos:

reconhecida a união dúplice ou paralela, por óbvio, não se pode mais conceber a divisão clássica de patrimônio pela metade entre duas. Na união dúplice do homem, por exemplo, não foram dois que construíram o patrimônio. Foram três: o homem, a esposa e a companheira. Logo, a clássica divisão pelo critério da meação é incompatível com a formação de patrimônio por três pessoas, e não mais por duas. Aqui é preciso um outro pensar, diria um outro paradigma de divisão. Aqui se pode falar em uma outra forma de partilhar, que vai denominada, com a vênia do silogismo, de "triação", que é a divisão em três e que também deve atender ao princípio da igualdade. A divisão do patrimônio pressupõe que os beneficiados sejam contemplados igualmente com sua parcela, da forma mais justa e equânime possível. Por isso, quando temos um único casal divide-se o patrimônio por dois. Mas quando o direito passa a regular a partilha da união dúplice nada mais responde ao critério igualizador do que a divisão por três.[37]

Nesse sentido temos o precursor julgamento do Des. Rui Portanova no Tribunal de Justiça do Estado do RS

APELAÇÃO. UNIÃO DÚPLICE. UNIÃO ESTÁVEL. PROVA. MEAÇÃO. "TRIAÇÃO". SUCESSÃO. PROVA DO PERÍODO DE UNIÃO E UNIÃO DÚPLICE. A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante a outra união estável também vivida pelo de cujus. Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. MEAÇÃO (TRIAÇÃO) Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre as companheiras e o de cujus. Meação que se transmuda em "triação", pela duplicidade de uniões. DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. POR MAIORIA.[38]

O Tribunal de Justiça de São Paulo vem, igualmente, julgando nesse sentido

Inventário - reserva de bens - meação - pretensão de ex-concubina em ação de reconhecimento do concubinato e partilha - admissibilidade - alegação verosimilhante - tutela antecipada - natureza adulterina da relação e contribuição indireta da companheira - irrelevância - improvimento ao agravo de instrumento - Aplicação do art.273, caput, e inciso I, do Código de Processo Civil, e da Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal. Pode ser concedida, a título de antecipada de tutela, e ação declaratória da existência de concubinato, cumulada com pedido de partilha, a reserva de bens capazes de garantir, no inventário, o alegado direito de meação da ex-concubina de de cujus, ainda que esse fosse casado e essa não trabalhasse fora.[39]

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) é reticente em reconhecer este modelo de relacionamento, o que é seguido pela maior parte do ordenamento pátrio. Entretanto, negar este reconhecimento é negar todos os direitos sucessórios aos envolvidos neste relacionamento; é cometer um atentado à dignidade dessas pessoas, é fechar-lhes os olhos e ignorar uma situação de fato e marginalizar estas pessoas, privilegiando uns em detrimento de outros, causando injustiças incalculáveis.

“O direito não deve pretender desconstituir fatos da vida”.[40] Essas relações são concretas e o direito não deve fechar os olhos para elas e nem tentar desconstituí-las, entendendo-as como uma sociedade de fato e menosprezando as relações construídas com base nos princípios basilares do direito de família, tal qual todas as demais famílias existentes no ordenamento jurídico brasileiro.

O fato de não vivermos da maneira como os demais não os torna excluídos ou inexistentes, apenas os torna distintos. Contudo, o direito deve trabalhar no sentido de igualar essas diferenças, tratando os desiguais na proporção da sua desigualdade.

Dessa forma, a sucessão transmudada em triação deve ser reconhecida e amplamente aplicada afim de garantir todos os direitos à todos os envolvidos na relação e, assim, garantir a igualdade e a dignidade de todos.

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Sobre o autor
Filipe Mahmoud dos Santos Vigo

Advogado atuante no Rio de Janeiro. Bacharel pelo Centro Universitário LaSalle com bolsa integral pela monitoria do Núcleo de Prática Jurídica. Iniciando a prática ainda no 1° período como conciliador do II JEC de Niterói. Após a conciliação estagiou na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, passando pelas Varas Cível, Violência Doméstica, Criminal e de Família, onde realizou atendimento ao público e elaboração de petições, das mais simples, como juntada, as mais complexas, como inicial de guarda com pensão, contestação, recursos dos mais diversos. Nos últimos anos atuou como monitor junto Núcleo de Prática Jurídica da faculdade nos núcleos Criminal e Cível, simultaneamente. Fluente em Espanhol e Inglês, hoje faz extensão em Inglês Jurídico (Contracts and Litigation) na FGV.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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